Viveu o luxo e a prosperidade. Perdeu tudo o que tinha. Está em Paz

 

Revela, a propósito da polémica sobre o sarampo, que já está vacinado contra a tuberculose. Mas da pior maneira.

U. contraiu-a quando era menino, no país onde vivia com a família. Isso foi há umas oito décadas. Pensou que ia morrer, queria até pôr termo à vida, mas não teve coragem.

Relata que a doença desapareceu por milagre, sem que os médicos, que apenas lhe detectaram uma mancha pulmonar e o declararam curado da patologia, conseguissem explicar porquê.

Mudou de continente com os pais, para uma nação onde já tinha familiares. Viviam-se tempos de ditadura.

Estudou, trabalhou. Com persistência e tenacidade, conseguiu emprego numa próspera multinacional.

O seu chefe levou-o a almoçar a um lugar de luxúria e segredo, que ninguém conhecia. Era o ponto de encontro dos mais poderosos da sociedade.

Chegou a ser dono de uma empresa e a ter uma vida de prazeres e luxos. A amante fez correr, falsamente, que ele era contra o regime. Nunca mais conseguiu trabalho e perdeu tudo o que tinha.

Decidiu ir estudar gratuitamente numa faculdade estatal, já que não havia mais nada a fazer. Trabalhou para a instituição de ensino, dando consultas, que os pacientes procuravam, também por serem grátis.

Mesmo ali, foi perseguido pelas falsas acusações de envolvimento político. Foi a uma espécie de julgamento universitário, mas a sua sensatez e inteligência, aliadas à sabedoria e ao relato detalhado e circunstanciado de todas as perseguições políticas que sofrera, fizeram com que fosse ilibado.

Os anos seguintes ao curso passou-os a viver sem nada, nas ruas, por vários continentes.

Aterrou em Portugal. Sem tecto, aceitava de vez em quando alimentos frugais e alguns momentos de conversa com voluntários de várias instituições.

Diz que essas são pessoas muito boas e generosas, que se preocupam com os outros.

Sofre de várias doenças agravadas pela idade e acabou internado, contra a sua vontade e a sua liberdade, numa instituição que, embora não pareça de todo adequada para uma alma tão livre e sábia, lhe proporciona cuidados, acompanhamento e apoio a nível de saúde.

As horas do Sábado que antecede as presidenciais francesas, um dos inúmeros temas que segue com enorme interesse e analisa com profunda lucidez, passam em minutos.

Relata uma derradeira história. No segundo local onde viveu, quando ainda tinha casa e trabalho, encontrou uma cadelinha que estava a ser devorada viva pelos parasitas.

Pensou ir a casa buscar uma potente Smith & Wesson, acabar com o sofrimento do animal. Mas ninguém ia perceber.

Achariam que era um assassino, e não alguém que queria fazer o bicho parar de sofrer.

Foi a uma loja especializada, comprar um produto anti-parasitas. Os vermes que estavam a matar a amiga, a quem já dera nome, morreram no momento.

A pequena bebeu, e bebeu, e bebeu. Estava desidratada. Ainda teve um cachorrinho, a quem U. deu um nome tão inspirado como o que atribuíra à mãe.

Quando saiu do país de algibeiras vazias, tendo vendido por nada tudo o que tinha, os dois felizes caninos ficaram para o novo dono da casa.

Antes tijolos que telemóveis

Era coisa normal verem-se pelas ruas conjuntos de adolescentes com um estrondoso e catastrófico tijolo aos ombros:

Um rádio enorme, que funcionava a electricidade ou a pilhas, podia ser sintonizado em AM ou FM e tinha um ou dois leitores de cassetes aúdio, sendo usado para espalhar o barulho de uma banda de rock, de um concerto ou de uma discoteca por todos os lugares onde passasse.

Cheguei a fazer parte desses grupos, embora não fosse o promotor principal de tal barulheira desproporcionada, até porque não tinha um desses dispositivos imponentes e vistosos.

Eram usados para ir à praia a ouvir temas como o marcante “Is this love”, dos Whitesnake, por exemplo. Quem estivesse a apanhar sol num raio de cem metros lá tinha que deixar entrar nos ouvidos os sons das guitarras apelativas, quisesse ou não.

A moda passou e a música tornou-se um prazer mais individual. Toda a gente tinha o seu walkman, os seus auscultadores ou fones e as suas cassetes pessoais, que se compravam já com música ou se adquiriam virgens, para acolher os temas e os álbuns preferidos de cada um.

Em casa, ouviam-se os rádios, os gravadores ou as aparelhagens.

Os computadores ganharam novas capacidades e funções, e essa foi uma delas. Passaram a descarregar-se ou partilhar-se músicas de todos os estilos e feitios, em vez de comprá-las, sendo escutadas na privacidade caseira.

Os extintos walkman foram substituídos pelos sons que saem de dentro do telemóvel, ou de qualquer outro pequeno aparelho de alta tecnologia que se leva no bolso, ligado aos convenientes fones ou auscultadores.

Hoje em dia as festas caseiras de amigos são animadas por um computador com o Youtube a trabalhar a todo o vapor. Cada um sabe de cor o que quer dar a ouvir, ou pesquisa no telemóvel e depois escolhe no PC do anfitrião.

Mas como todas as modas acabam por regressar, o mesmo acontece agora com o hábito de oferecer bandas sonoras pelas ruas, às vítimas inocentes que por acaso vão a passar.

Ouve-se uma chinfrineira de alegados contornos musicais e não se sabe de onde vem. Observa-se esforçadamente e percebe-se.

Há um pequeno grupinho, ou um indivíduo, que decidiu colocar música no telefone, ou num dispositivo de um a quatro centímetros, ligado sem fios a uma pequena, elegante e omnipotente coluna portátil, e espalhar a alegria por toda a gente.

Percebe-se e compreende-se a boa intenção. No entanto, com mais uns trinta anos e menos paciência do que tinha no tempo dos tijolos originais, fica a sugestão.

Deixem o pessoal escolher as suas próprias músicas, e decidir quais os momentos em que decidem rebentar com os tímpanos, bem como aqueles em que preferem estar em sossego… Ouçam a vossa musiquinha, mas não a imponham aos outros! Usem fones.

A notícia que não aconteceu

A notícia saiu do bloco de notas do jornalista e foi alojar-se na máquina de escrever, onde ficou durante algum tempo a ganhar corpo e a aperfeiçoar-se.

Dali seguiu para a gráfica, onde foi juntar-se às fotos, aos títulos e às outras notícias.

Foi impressa horas depois e distribuída, em milhares de cópias, por homens e mulheres que já tinham começado a ouvir o acontecimento na rádio mas queriam saber o que se tinha passado, com todos os pormenores.

A notícia andou nesta vida durante muitas décadas, em que toda a gente pegava no papel para perceber a realidade que se vivia na sua vila, na cidade, no país e no mundo.

Chegaram os computadores e a Internet e tornaram tudo muito mais fácil, rápido e eficaz.

As pessoas compravam jornais mais bonitos e coloridos, que continuavam a ajudá-las a ver mais longe e a pensar melhor sobre o que diziam os políticos, os economistas, os homens e as mulheres da rua, os que faziam vida nos palcos, os que davam cartas nos estádios.

Foram vindo as redes sociais… Com o tempo, passou a aterrar informação de todos os lados, fornecida por toda a gente, muitas vezes sem grande crédito ou fundamentação.

As pessoas começaram a deixar de ter paciência para gastar dinheiro e andar com desconfortáveis pedaços de papel que já não lhes pareciam interessantes ou importantes.

Preferiam ficar a saber das últimas na televisão, no computador, no telemóvel.

Toda a gente tinha uma ideia, uma informação falsa ou verdadeira, uma frase ou um argumento para partilhar. Podia fazer isso em alguns segundos, e ver também o que todos os outros andavam a dizer, fosse verdadeiro ou não.

Cada um podia ser o seu próprio órgão de informação, criar a sua audiência individual e juntar-lhe mais algumas dezenas ou centenas de pessoas.

A verdade credível, fundamentada e rigorosa, construída pela investigação e pelo cruzamento de várias versões contraditórias, deixou de ter importância.

A notícia, aquela coisa que nos dava alegria ou tristeza pela manhã e nos oferecia olhos que viam mais, foi ficando velhinha, desprezada, maltratada.

A notícia que nos fazia vibrar, que nos preocupava ou irritava, pela noite ou pela madrugada, foi-se diluindo e desaparecendo no oceano imenso da informação sem garantias, da desinformação, da propaganda e das opiniões gratuitas e sem alicerces.

Ficámos mais ricos ou mais pobres? Vou procurar e ler um bom artigo de jornal em papel para ver se percebo.

“Quem está a matar aquela pessoa não sou eu. É Deus”

Mudaram-no de lugar. Desta vez, além do pijama, está também convenientemente vestido com um roupão confortável, calçado, e, além de lhe cortarem o cabelo bem curto, também lhe tiraram todos os vestígios de barba.

Ao lado, há uma senhora igualmente idosa, olhos azuis e brilhantes, momentaneamente ausentes. Chinelos, um pé calçado com uma meia castanha, o outro descalço.

O meu amigo E., de 84 anos, internado compulsivamente e fechado à chave neste lugar, está hoje mais falador. Diz que o levam de um sítio para outro, como uma bola de pingue pongue.

Continua a ser visitado por pessoas que o conheceram quando vivia na rua (até há um mês) e querem saber como está. Falamos sobre a tensão entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte, bem como os ataques na Síria e no Afeganistão.

Afirma que americanos e coreanos devem pensar duas vezes antes de fazer alguma coisa. “O armamento atómico deve ficar como está, bem quieto e sossegadinho”. Gesticula expressivamente, com a palma da mão a empurrar para baixo

Diz que Donald Trump pode ser criticado e refreado pelos membros do Governo que escolheu, e que foi buscar ao Partido Republicano. Mas na Coreia do Norte, se o líder disser que amanhã toda a gente tem que sair à rua de calças vermelhas, toda a gente sai à rua de calças vermelhas no dia seguinte e ninguém se atreve a contrariá-lo.

Chega a hora do lanche. É, por assim dizer, Sábado de Páscoa, e a refeição leve é constituída por iogurte sólido misturado com bolachas doces. O meu amigo e a sua companheira do lado mostram gostar bastante da escolha, que deita um cheiro adocicado.

E. sofre de cataratas e não vê. Depois de lhe ser fornecida a tijela e a colher, observo com enorme atenção à medida que vai comendo tudo devagarinho até ao fim, sozinho, sem desperdiçar nem entornar uma gota.

A terceira senhora a contar da esquerda assiste à nossa conversa de grande proximidade física, porque ele ouve mal e eu falo muito baixo, e comenta. “Assim é que é conviver! Assim é que é bom conviver”. Sorrio para as duas mulheres e aceno positivamente.

O meu interlocutor viveu em vários países do mundo, está aqui encerrado contra a sua vontade e, por razões indeterminadas, não consegue ter acesso à sua reforma. Já não vai poder realizar o seu sonho.

Embora não seja português, gostava de poder acabar a sua vida em Portugal, no campo, num sítio onde pudesse estar próximo do animais.

Vai recordando algumas histórias de um dos países onde viveu, o Brasil. Uma vez estava sentado num café com um médico, a conversar. Entrou um homem, cumprimentou toda a gente, bebeu o seu café e foi-se embora.

O médico disse-lhe que aquele era um dos maiores assassinos do Brasil. Já tinha morto mais de 30 pessoas. Uma vez, em tribunal, o juiz disse-lhe isso mesmo.

Você é considerado um dos maiores assassinos. É relacionado com dezenas de homicídios”.

Ao que este respondeu: “Vossa senhoria, eu, se for ameaçado por alguém, vou ter que me defender. E se me defender, vou fazê-lo com uma arma. E se me defender com uma arma, vou apertar o gatilho. E se eu apertar o gatilho, alguém vai morrer.

Mas olhe, Vossa Senhoria: Quem está a apertar o gatilho sou eu. Mas quem está a matar aquela pessoa não sou eu. É Deus”.

Turistas fartos de Portugal

Olha para a T-shirt, berrante e fluorescente, e faz uns trejeitos com a boca. Depois fita a barriga saliente, ri-se e pergunta se não faço desporto. Digo-lhe que o desporto não é suficiente.

Tem talvez uns 30 e tal anos, figura seca, roupa descontraída. Diz que não está a gostar de Lisboa, de Portugal e dos portugueses. Afirma que é de Espanha, mas fala com a amiga numa língua que parece claramente da Europa de Leste.

Comigo, mistura espanhol, italiano, inglês e português. Diz que há muita gente em Lisboa, que os portugueses não falam e que os espanhóis são mais simpáticos.

Acrescenta que em Lisboa não há nada de interessante para ver. Exemplifico com os monumentos e as igrejas. Responde que não há museus para visitar.

Pergunto-lhe se tem um guia em papel para se orientar. Acena que sim mas não parece perceber a pergunta.

Falo-lhe de Belém, do Mosteiro dos Jerónimos, do museu que pode encontrar ao seu lado, dos jardins e do Centro Cultural de Belém. Também não parece conhecer nada disso.

Pergunta-me se há ilhas em Portugal. Digo-lhe que sim, os Açores e a Madeira. Que são muito bonitas e devia visitá-las.

Parece interessar-se, mas declara que não vai dar para fazer isso agora. Vai ter que ficar para outra vez.

Sai do café e volta a entrar duas ou três vezes. A sua amiga olha para mim disfarçadamente e ri-se. Põe-se a falar ao telefone, na tal língua que soa a Leste, mostrando-se muito convicta e irritada.

Passa mais um bocado, ninguém decide aprofundar o diálogo e a dupla acaba por se ir embora, tão discretamente e sem aviso como encetou os primeiros momentos de conversa, meia hora atrás.

No final de Março a cidade já está totalmente repleta de turistas. Mais dois meses e será inimaginável.

Haverá muitos deles a considerar que a metrópole é uma confusão, cheia de pessoas que não falam com eles e sem pontos de interesse para visitar?

Alguns portugueses dizem que estão fartos dos turistas… Resta saber se os visitantes estão a gostar do que vêm ver.

“Porque é que me hei-de calar?!”

Entro numa de duas igrejas dispostas uma de frente para a outra, na zona mais cosmopolita e turística da cidade. Buscando sossego e frescura, sento-me. À entrada, ninguém pergunta se acreditamos na existência de deus.

Procuro perceber se decorre alguma missa barulhenta e incomodativa, ou algo igualmente perturbador e entediante. Há apenas uns moços à paisana salmodiando cânticos pascais, eventualmente dirigidos por um superior religioso.

O som da cantoria é até agradável e relaxante. Avizinham-se alguns momentos de tranquilidade agnóstica. De repente, entra um grupo de portuguesas, mães e filhas.

Conversam tal como se estivessem na tasca ou no bar da kizomba e das caipirinhas, ali a meio quilómetro de distância. Já que não estou em tal lugar para rezar ou receber dos céus a graça divina, fico calado.

O rumor sobe de intensidade. Um casal de estrangeiros olha-as, escandalizado. Salta-me a tampa, e os meus tímpanos ateus ouvem sair da minha garganta: “Isto é uma igreja. Vieram para aqui conversar?”.

As senhoras fazem um ar incomodado e um olhar de quem se sente profudamente injustiçado e remetem-se ao silêncio.

Do outro lado, um casal português e idoso fala animadamente. Ela acaba por mandá-lo baixar a voz. Mostra-se profundamente indignado. “Porque é que me hei-de calar? Qual é o problema? Porque é que me hei-de calar? Não me vou calar”. Dada a gressividade do ancião, ela desiste, e eu também.

Acaba por ser um funcionário local que consegue silenciá-lo. Embora de má catadura, perseguindo o rapaz com olhos faiscantes, cede.

Faz lembrar uma cena parecida, mas numa sala de cinema, durante o filme. Um dos três ou quatro espectadores decide atender o telemóvel e falar calma e tranquilamente, em voz alta, tal qual como em casa ou na rua.

Umas fila atrás, há um homem que se insurge e lhe diz que não pode efectuar chamadas naquele local. O visado responde:

Você está a mentir! Porque é que me está a acusar de uma coisa que eu não estou a fazer? Eu não fiz uma chamada, eu atendi uma chamada! Já viu, agora destruiu-me a cena do filme que eu estava  ver! Não se faz!”.

E continua, com a maior tranquilidade do Mundo, a ver o filme e a falar ao telemóvel como se a sala fosse um café.

A eliminação de todo o sofrimento

Do outro lado da porta, duas mulheres, com bom aspecto e apresentação, e ar inofensivo. Abro, tentando perceber o que querem.

Uma delas fala comigo em português do Brasil, com a descontracção própria dos naturais do país. Tem um convite para me fazer.

Quer que assista à comemoração da morte de Jesus, e entrega-me um papel que diz isso mesmo.

A pequena folha dobrada em duas tem na capa um desenho com um grupo de pessoas de várias idades e etnias, felizes, tranquilas e pacíficas, num vale fértil e inspirador, cheio de árvores de fruto, aves, rios e arbustos.

Promete paz, saúde e prosperidade e fala de um evento público de entrada livre. Do lado de dentro, algumas referências bíblicas e o enquadramento histórico ou religioso.

Um profeta divinamente inspirado previu um tempo em que o homem estaria em paz com a natureza. Jesus, afirma o folheto-convite, realizou obras poderosas, mostrando que as profecias se tornariam realidade.

A morte de Jesus “foi tão importante” que ele ordenou aos seus discípulos que a comemorassem. A sua morte “é fundamental” para a eliminação de todas as causas de sofrimento…

Assim, a comemoração da morte de Jesus foi agendada para terça-feira, dia 11.

Os convidados das testemunhas de Jeová são desafiados a perceber como esta morte os pode beneficiar – a eles e à sua família.

Não estou convencido que a morte de Jesus tenha alguma relevância ou utilidade para a humanidade. De qualquer maneira, esta gente jovem e de aspecto apelativo simboliza uma mudança.

Nos anos 1980, quem procurava adeptos para o culto das testemunhas de Jeová cabia em duas categorias. Ou eram pares de velhinhas muito insistentes e convictas, que o pessoal tentava despachar rapidamente, ou duplas insípidas, com homens de fatinho e gravatinha, e o ar postiço de quem nada tinha a ver com aquele guarda-roupa.

Do lado da abordagem e da imagem pessoal, estes crentes modernizaram-se. Quanto aos princípios em si, é possível que não tenham mudado muito. Mas também, não faço a mínima ideia de quais são.

Parecia Marrocos mas não era

Tinha acabado o meu primeiro ano a dar aulas (continuando simultaneamente a trabalhar como jornalista). Estava exausto, arrasado e extremamente feliz. Estava de férias.

Saí de casa com um saco com duas ou três T-Shirts, com o objectivo de rumar ao Malavado, ao pé da Zambujeira. Passei uns dias abençoados no Alentejo com os meus pais, em que a minha função era comer, beber, dormir e deixar-me conduzir para a praia, onde lia os meus livros e me escondia do sol à sombra.

Os meus pais foram-se embora e vieram os meus amigos. Mais jantaradas, copos e guarda-sóis. Dias depois estávamos a caminho de Marrocos, de carro. Pelo menos era esse o plano.

Andámos pelo Sul de Espanha, comendo, bebendo, acampando, apreciando as belezas naturais e humanas do país. Enquanto o Pedro parava numa bomba de gasolina para ser multado por ter entrado “à queima” na via para a qual se se dirigia, eu dava conversa à menina da Galp, que era gira de morrer.

O carro do Zé avariava e eu andava a passear pelas ruas, encetando diálogos com indígenas locais, sempre afáveis e amáveis. Tínhamos um diário que dizia na capa qualquer coisa como “Marrocos talvez 2002 – Life can be so… Simple”.

À noite, as cervejas e as Margueritas punham-me a falar a minha versão muito peculiar de Espanhuel, que nem os castelhanos nem os tugas perceberiam.

Desatava a cantar o Nueva Iuerque, Nueva Iuerque do Frank Sinatra em Espanhuel. De tal maneira que o Pedro e a Teresa tinham medo que eu me avariasse, acordasse a falar espanhol e não fosse mais capaz de pronunciar palavras na língua de Camões, que devia dar voltas no túmulo junto com Cervantes.

O objectivo era Marrocos, só que nesta viagem imprevista e improvisada ninguém levou passaporte. Chegámos onde era possível, a Ceuta, que, na altura, classifiquei como um esgoto ou subúrbio da Europa. Não era Ocidente nem África, não era carne nem era peixe.

Aterrámos num restaurante muito, muito manhoso, onde toda a comida parecia ter vindo de um bazar de alimentos fora de prazo. Não havia fruta.

Pedi sobremesa. Apresentaram-me uma lata enorme de pêssego em calda, nitidamente oriunda dos tempos da Segunda Grande Guerra, ou da Guerra Civil Espanhola. Aceitei e sobrevivi-lhe.

A nossa primeira viagem a Marrocos não foi bem, bem a Marrocos. Mas o que não faltou foi diversão, tontería, maluqueira, descontracção, copos e amizade. É que, na altura, a vida podia mesmo ser muito, muito simples!

O Pregador

Tem o olhar convicto e profundo daqueles que interpretam os textos sagrados à letra, sem qualquer mediação ou espécie de dúvida.

Na mão direita a Bíblia, na esquerda o recipiente com água fresca para molhar a garganta. Calças azuis, blusa e casaco cinzento, cabelo escuro, uma barba simples e elegante, lembrando os intelectuais da Era Clássica.

O homem dos seus vinte e poucos anos tem uma missão. Trazer-nos a Paz de Cristo. Prega durante horas a fio, para uma dúzia de ouvintes surpreendidos por tal fervor religioso.

Está no centro da cidade, em hora de ponta. Vai lendo passagens d’O Livro, que usa para dar força às suas proclamações divinas.

Revela que foi viciado em drogas, álcool e pornografia. Hoje já não peca e encontrou a Luz e o Caminho, graças a Cristo.

Durante horas incita-nos a não viver mais da mesma maneira, a abandonar as substâncias proibidas e a deixar de fornicar.

Intervala cada conjunto de frases com um (…) “, minhas pessoas”, dirigindo-se enfaticamente a nós. As minhas pessoas somos nós.

Diz que, agora, vê claramente as trevas, as chamas, o Inferno e a maldade à sua frente, debaixo do chão, perante os seus olhos. Relata que só há um caminho entre a maldade e a bondade, as trevas e a luz, sem qualquer possibilidade intermédia.

O pequeno grupo de estrangeiros e nacionais, que vai alterando a sua composição, ouve-o atentamente. Alguns de semblante sério e pensativo, outros rindo com comentários jocosos. “Quando ele ficar sem voz, Deus vai pô-lo a falar outra vez!”.

Não fala de Igrejas, de padres, de homens do clero. Fala da Salvação das Almas. Jesus salvou-o e trouxe-o aqui, para que também nós possamos receber a divina luz e sentir a Graça dos Céus.

Teremos que submeter-nos, porque só o filho do Senhor é o Amor e o Bem. Todos os que não o reconhecem erram e andam mal.

Haverá duas ressureições, a dos corpos e a da condenação. Ele já sabe que vai receber dos Céus um corpo novo, perfeito e incorruptível, e propõe-nos idêntico benefício.

Recorda sempre que há apenas um caminho a escolher e a seguir. Porque o Inferno, as chamas e as trevas foram feitos para alguém. Para os que pecam e se desviam do caminho.

Meia hora de pregação leva à única conclusão possível. É tempo de ingerir uma cerveja, umas batatas fritas, uns cogumelos e temperar tudo isso com a leitura de algumas das melhores obras do Marquês de Sade.

Era óbvio que não fomos feitos um para o outro

Foi o primeiro carro que comprei. Vivia na Margem Sul e trabalhava numa revista em Lisboa, com um patrão prestável que, depois de eu ter tirado a carta e ter dado um fim inglório ao valente e audaz Morris Marina idoso que o meu pai me oferecera, quis dar-me uma mãozinha.

Foi comigo a um comerciante de automóveis seu conhecido, negociámos o preço e trouxe um Renault Super Cinco cinzento metalizado em segunda mão. As conversas de vendedor são sempre mais ou menos parecidas, pelo que não as tomei como um indicador de estar a fazer um bom ou mau negócio.

O meu tio tinha vivido em França e trabalhado na Renault, e dizia que este era um carro com um motor “muito nervoso”: Andava bem e acelerava bastante, é um facto.

A verdade é que, desde os primeiros tempos, começou a precisar de peças e mais peças, reparações e novas reparações. Em muito pouco tempo, tinha gasto nos arranjos bem mais do que paguei por ele.

De vez em quando começava a não querer pegar, e isso podia sempre ser por inúmeros motivos. Até se acertar com a razão, havia que continuar a investir.

Era uma complicação ter que empurrá-lo, de manhã, antes de tomar o pequeno-almoço – especialmente porque nem sempre dava para deixá-lo numa descida, ou mesmo num plano recto.

Lembro-me de vir da Costa da Caparica, na faixa da esquerda (não dava multa), com o motor em greve e uma fila de automobilistas furiosos a apitar atrás de mim. Ou de empurrá-lo, ele ganhar balanço e ver uma amiga minha a mergulhar pela janela, com um vestido bem curto e florido, para puxar o travão de mão antes que ele se espetasse contra algo ou alguém.

Quando ia de férias para a Zambujeira, tinha que se desmontar o banco detrás e tirar as malas do porta-bagagens por aí: Ele só tinha uma chave, e o porta-bagagens só abria com ela… Mas, se a retirássemos da ignição, ia abaixo e já não pegava. Primeiro tiravam-se as tralhas, e depois ia estacioná-lo. Numa descida.

Acabou por não ter uma vida muito longa. Nos seus últimos dias de existência, antes de o despachar por tuta e meia, já só conseguia andar em segunda. Embora ainda metesse respeito.

Acelerava, acelerava, acelerava, deitava fumo e fazia barulho como um foguete. Nunca percebi se encontrou o dono errado (eu) ou se foi a minha pessoa que teve pouca sorte em calhar com ele. De uma forma ou de outra, a conclusão óbvia é que não fomos feitos um para o outro!