Três amantes da Paz no caminho da montanha

Buracos, crateras, barrancos. Uma subida a pique, 15 minutos. Uma estrada perdida. Lá em cima a estátua do Cristo Rei, primo irmão do Redentor do outro lado do Atlântico.

Secção perfeita de um percurso de uma hora de corrida num dia considerado frio, para um país de clima mediterrânico.

Até chegar junto daquele Jesus de dezenas de metros, aprecia-se o ambiente de serra e sossego.

Quem vai para aquele lugar é quem adora a natureza. Um português de vez em quando, um turista ou outro em certas alturas.

Num dos troços mais difíceis de subir do que há muitos anos foi uma via rodoviária, um homem e uma mulher de 60 e muitos anos, ar europeu.

Os viajantes não se conheciam. Mas, estando ela de bicicleta, com o seu ar de avó, o homem, vigoroso e com jeito de desportista, oferece-se para lhe carregar o veículo pelo meio daqueles veios e sulcos no antigo alcatrão inclinado em direcção ao céu.

Ela vai-lhe contando que já viajou por aqui, por ali e por acolá, com a sua companheira de duas rodas.

Minutos depois, a senhora continua para cima, ele prossegue descendo rumo ao rio, por entre pedaços de floresta e uma paisagem deslumbrante.

O cronista desportista ia “correndo”, devagarinho, rampa abaixo e acima, enquanto tudo isto se desenrolava.

Dedica uma vénia ao homem, um sorriso à mulher.

Três amantes do silêncio e das colinas cujos destinos se tocaram por momentos.

A arte de que falo?

…Portanto, um actor que deseje interpretar uma personagem homossexual, para poder fazê-lo, vai ter que desatar a sorver falos avidamente, ou interiorizá-los por outra via.

Uma actriz que tenha por fim representar uma mulher lésbica deverá, também, dedicar-se a saborear clitóris alheios afincadamente.

Quem queira mostrar-nos alguém que quer mudar de género será, quando chegar a sua hora, forçado a deglutir os seus próprios testículos ou seios, ou a implantá-los em si, quando os não tenha…

Não sei se é bem este o caminho…

O jornal vem com agrafos

Desço a avenida dos restaurantes.

É Domingo, hora de almoço e o tempo está a fazer muitas caretas.

Nem todos estão abertos, e a clientela escasseia.

A grande esplanada do novo largo, a enfrentar o rio metida numa praça espaçosa e bonita, está completamente vazia.

Não há toldos para manter os clientes a seco, mas, para já, não é necessário.

As cadeiras estão molhadas. Não é problema.

Por baixo do rabo vai ficar o saco multi-usos, que anda no bolso para estas ocasiões.

Apesar do bulício típico do local, neste dias e nestas condições há um nível muito razoável de sossego.

A grande notícia de hoje é que o diário de referência voltou, aparentemente, a ter agrafos ao Domingo.

É uma novidade extraordinária. A existência dos pequenos ganchos de metal, que o periódico traz nos outros dias da semana, torna possível a leitura na esplanada, na praia, de pé, só com uma mão…

Jornais desconjuntados e desacertados, com páginas a fugir de um lado para o outro, são a coisa mais odiosa que existe.

Assim, com a digestão tranquila das novas das últimas horas e dos quebra-cabeças que vêm nas páginas próprias, o dia pode finalmente começar.

A roupa colada ao corpo

— Ouve lá! Vais ter que ir buscar a miúda à creche. Mas não vás já, espera um bocadinho, porque com este tempo vai ser difícil. Já deves ter percebido, está toda a gente a querer ir recolher os filhos ao mesmo tempo.

É o tipo de conversa mais ouvida no momento.

O final da manhã é inesperado. Ir de casa ao Multibanco (menos de 5 minutos) traz o benefício de ficar cheio de água dos pés à cabeça.

Voltou a chover desalmadamente, e o vento intenso torna o cenário mais agitado.

Adquiridos os sacrossantos euros, não há muita vontade de voltar.

As grossas pingas em trajectória descendente acalmam um pouco. Óptimo.

Há um café que tem no exterior vários toldos grandes e credíveis.

O estabelecimento está encravado na parede do prédio, com as varandas a duplicar a protecção.

Será aqui a primeira bebida quente e estimulante do dia.

Mesmo com tanto abrigo, ficar sentado no exterior a ler e preencher passatempos, e manter a secura, mostra-se tarefa difícil.

Mas a missão lá é cumprida, durante uns vinte minutos.

A seguir é regressar a casa.

O almoço serão cogumelos e feijão branco, com molho de tomate, azeite e mostarda. A sobremesa… Amendoins torrados e sem sal.

A seguir a tudo isso, nove horas de trabalho.

E não está nada mal, não!

“Ah, ele agora vai ter que andar com um lenço na cabeça!”

Torra-se totalmente ao sol no Largo da estação, a seis de Janeiro.

Na mesa do lado sentam-se uma mulher negra e bela de idade totalmente indefinida e um homem, sexagenário.

Guardam gentilmente o casaco e a literatura portátil enquanto vou, mais demoradamente do que desejava, buscar um café lá dentro.

Mensagens para aqui, palavras cruzadas para ali, o jornal parece quase abandonado em cima da mesa.

A simpática senhora pergunta, para o seu par, se é possível emprestar o periódico, “para ele não adormecer”.

Apostado em ler as notícias do dia, proponho a edição do dia anterior:

“É um bom jornal, penso que mesmo assim poderá gostar”.

Agradecem, e o leitor fica a folhear as informações durante mais de meia hora com interesse.

Começo a ouvir os comentários da hipotética esposa.

“Ele (o Ronaldo) vai ter que passar a andar com um lenço na cabeça! Ele ainda é muito novo. Há muitos que jogam até aos 40”.

“E ela também vai ter que andar com lenço na cabeça, senão não a deixam entrar nos sítios! Eles são muçulmanos. Eu sei que é assim, porque o meu pai também é muçulmano”.

Trocamos algumas palavras, tantas quantas quis. Umas sobre o futebol, outras sobre o sol. Rimos. O casal é bem disposto e amável.

Meia hora mais tarde, o homem, satisfeito, devolve o jornal atrasado.

Trocamos alguns sorrisos e saudações de ano novo. Durante mais uns quantos dias é perfeitamente legítimo desejar às outras pessoas bom ano.

Termina uma manhã quente, calorosa e simpática.

A chuva lava tudo

A esplanada convida.

É lá que se instalam o livro policial, os jornais dos dois dias anteriores, os óculos e o dono de tudo isso, perante o olhar descrente dos empregados.

Chove. Na primeira metade do almoço, os toldos chegam para proteger da água, com várias mudanças de cadeira para o efeito.

Uma ou duas horas depois, as palavras cruzadas já estão quase a nadar em gotas caídas do céu, mesmo se o conjunto humano-mais objectos se deslocou para o centro dos toldos da mesa tripla.

O prato é arroz com múltiplos legumes e gengibre, acompanhado por um copo gigante de sangria que supostamente teria álcool, mas se parece mais com uma bebida detox.

Há um homem que vem passear o cão velhote e simpático, o “Leão”, mas é obrigado a desistir. A carga de água que se mantém durante duas horas ininterruptas torna a tarefa impossível.

Um casal de turistas faz o que não seria de prever.

Também se mantém corajosamente na esplanada insegura até ao fim da refeição.

Os três ocupantes das mesas ao ar livre ficam a saborear o exotismo do Oriente. A água cai com força e vai molhando mais de metade das cadeiras.

No final, o visitante de terras distantes comenta: “The rain washes everything for the new year! A chuva lava tudo para o Ano Novo!”.

O sangue saltou sobre o rosto

Sentiu o sangue jorrar pela cara.

A verdade fria e cortante foi que tinha usado a navalha novinha para se barbear à pressa, antes de viajar.

As patilhas ficaram com diferenças de vários centímetros.

Iluminado por uma fraca candeia, à frente de um caco de vidro, decidiu acertá-las.

Agora ambas se encontravam absolutamente rectas.

O problema foi o líquido vital que saiu da pele, se espalhou pelo espelho improvisado, pela bacia, pelo chão e pelo quarto.

Foi assim, como se houvesse acabado de sair das trincheiras, que se apresentou à mesa da Consoada.

Foi duramente censurado pelos pais e pelos irmãos.

Ignorou tudo.

Devorou o pão, os figos, as favas, as nozes, os damascos, as passas, os bolos e tudo o que havia sobre a mesa.

Pouco lhe importavam as opiniões. Só queria que aquela estação terminasse e regressasse o calor.

Desejava o Sol, os cafés cheios de animação, os almoços ao ar livre a olhar para o Mar.

Aquele tempo de nuvens, de humidade, de casacos compridos e chapéus não lhe dizia nada.

Procurava a Luz!

O Ritual

Imersos na escuridão profunda, espessa e impenetrável, os três vultos avançavam nas trevas.

As enxurradas tinham povoado o caminho de pernadas, paus, pedras e lama.

Charcos dificultavam a progressão.

Os três contornavam, abriam caminho, pontapeavam os obstáculos com persistência.

Conversavam com animação, mas em surdina, respeitando a hora e sem pensar que naquele lugar remoto e sombrio ninguém iria escutá-los.

Ouviam-se os corvos e os mochos ao longe, a canção do rio, o borbulhar das fontes.

A peregrinação nocturna prosseguia, rumo a um monumento milenar oculto entre a vegetação, em paragens onde pessoa alguma se dirigiria.

Chegadas ao seu destino, as três figuras descobriram-se parcialmente.

Do interior dos casacos compridos e escuros saíram três facas longas, três malaguetas de três centímetros, três cabeças de alho redondas e grandes e três páginas de um livro misterioso, cheias de pó e humidade.

As três vozes começaram a soar no silêncio, ainda que não chegassem a ouvidos nenhuns.

— Grande mestre e dirigente de todas as coisas do universo, atendei-nos.

— Aqui te ofertamos três gotas de fogo, três fragrâncias antigas, três páginas do grande livro.

— Nós te pedimos Paz, Harmonia, Futuro.

As três frases foram repetidas três vezes, cada vez mais alto, mas nunca vieram a ser escutadas por humanos.

As três figuras voltaram-se e desvaneceram-se na noite.

Uma nuvem carregada ocultou tudo o que pudesse ser observado na clareira.

Uma estrela brilhou com uma luz fraca ofuscada pela dúvida.

A manhã chegou, três horas depois.

O dia em que Lisboa parou

Nenhuma ideia do que ia acontecer, era isso que se passava na minha cabeça. Era 13 de Dezembro, um dos dias mais chuvosos em Lisboa e em todo o país em muito tempo.

Tinha encomendado um pacote de sete latas de patê na clínica veterinária, na capital, e não era muito agradável pensar que iam ficar lá, sozinhas, até ter oportunidade de passar pelo lugar.

Já que havia tanta água, decidi que o melhor era ir de barco. Com os cacilheiros estava tudo normal, ainda que abanassem de forma razoavelmente emocionante.

Do lado de cá, aparentemente, o Metro de superfície estava parcialmente não operacional.

Na grande cidade, nessa altura, só uma estação do metropolitano não funcionava. Algumas das linhas de comboio terrestre já estavam encerradas.

Para fazer o percurso de Cacilhas ao Areeiro e o regresso, bastou o período entre as oito e cinco e as nove e doze.

Encontrei de passagem a Minha Querida Doutora, na clínica, e uma das gentis auxiliares, além de um dos outros médicos, todos um pouco perdidos com o temporal que assolava o território.

Depois da viagem estranhamente tranquila, estive a olhar para o rio. Um cenário de filme. Águas agitadas, nuvens negras, a Ponte 25 de Abril ao fundo.

Nessa altura, tratou-se de arranjar qualquer coisa (um saco) para me sentar sem me molhar na melhor esplanada de café, de onde se vê a bela e renovada área da estação, e a outra margem; iniciar as infusões diárias de cafeína, fazer as palavras cruzadas e ler o jornal.

A seguir, visitar os meus amigos cães e gatos de loja e de rua que estavam disponíveis para tal, voltar a casa, iniciar o dia de trabalho. E ir acompanhando as notícias de caos, inundações, cheias, cortes de estradas, condicionamentos de transportes. 

Quase como se fosse noutra nação.

Eu, Ocultista

Já devia ter terminado a minha licenciatura, mas ainda demorou uns tempos. Vinte e quatro anos, mais mês menos mês, era a minha idade. 

Tinha tido uma sequência de acontecimentos variados no último ano. Estagiara no Diário de Notícias e na RDP, não conseguia estabilizar o meu início de profissão e andava a fazer cursos no CENJOR, o Centro Protocolar de Formação Profissional para Jornalistas.

Sabia bem o que queria, mas era muito difícil atingi-lo e não estava contente com isso.

No CENJOR, conheci uma professora de técnicas vocais competente, dedicada e amiga dos formandos.

Dizia que eu era muito mental, pensava demasiado sobre as coisas e a verdade é que nos exercícios de relaxamento corporal havia duas ou três pessoas a tentarem ao mesmo tempo ajudar-me a descontrair, sem sucesso.

Fui ficando amigo da docente, do marido e do filho. Interessavam-se muito por ocultismo, esoterismo e astrologia (numa perspectiva séria e profunda, não a da revista Maria ou da TV Guia).

Fernando Pessoa e a aclamada autora Helena Blavatsky dedicaram muitos anos, e livros, a alguns destes temas.

Vou explicar o que se pode entender por ocultismo e esoterismo, na perspectiva de alguém (eu) que esteve próximo dessa área durante algum tempo.

Trata-se, em parte, de um pensamento, uma filosofia, um caminho, uma forma de viver e ver o Mundo. Tem mais a ver com isso do que com religião, embora tenha o seu lado místico.

Vai buscar alguns princípios ao budismo e a outras fontes. Algo que agradaria facilmente a um agnóstico como eu, que, não tendo certezas sobre a existência ou não de uma (ou mais) Entidades Superiores, mais dúvidas tem sobre o que serão ou como se apresentarão.

A verdade é que nunca aceitei que a vida fosse só isto: Matéria, células, impulsos químicos. Estou mais que certo de que existe mais. E até mesmo muitos cientistas e médicos poderiam provavelmente dizer o mesmo.

Certas correntes esoteristas crêem que existem Seres Luminosos, que se encontram num Plano Superior, e a quem nós podemos, de alguma forma, tentar apelar, fazer aproximar de nós, para ajudar a Humanidade a evoluir.

Os verdadeiros ocultistas que me perdoem por tão grosseira simplificação, mas espero estar a conseguir transmitir uma ideia aproximada destas correntes, que continuo a considerar belas e interessantes.

Ainda participei nalgumas bonitas celebrações rituais, pacíficas e inspiradoras, que apelavam precisamente à aproximação desses Anjos, Espíritos, Seres de Luz, para que viessem colaborar connosco, orientar-nos, guiar-nos, auxiliar-nos no nosso caminho. Foi agradável e enriquecedor.

Só que o problema (o meu) continuava lá: Se sou agnóstico e acredito que tudo isso pode ser, ou não, real, estou sempre à procura de uma espécie de prova. Quero, não apenas crer, mas ver comprovado e Sentir que é mesmo verdade.

Foi assim que acabei por afastar-me do Esoterismo, como me retirei de muitas outras coisas. Não acredito nem deixo de crer. Mas continuo a ter uma simpatia e um carinho especiais por essas correntes de pensamento, que talvez nos pudessem ajudar… E nós, que precisamos tanto.