Dois minutos

Dois minutos. O que valem dois minutos? O que é possível dizer? Que podemos contar em 120 segundos? O tempo que separa o final da manhã da hora de almoço…

Durante uma semana e meia estive a esclarecer – em dois minutos – os utilizadores do serviço sobre aquilo que tinham que fazer para manter a sua actividade dentro dos regulamentos nacionais, sem que ninguém os fosse perturbar a esse propósito.

O único problema é que os novos seres humanos não lêem mensagens, não percebem emails e não querem fazer dois cliques no computador, mesmo que isso lhes permita não terem chatices com o fisco.

Até as explicações passo a passo e os vídeos demonstrativos não lhes assistem.

A vantagem desta mudança temporária foi que tive direito a um fim-de-semana inteiro de folga e durante alguns dias fiz o horário das 9 às 18. A compensação por estar sempre a dizer a mesma coisa de formas diferentes (em 120 segundos) durante sete dias e ninguém querer atender nem entender.

Por outro lado passei esse período livre do trabalho de assistência clássico, em que nunca sabemos quem vai chegar do outro lado da linha.

Se uma besta, se um príncipe – ou princesa. Se uma situação em que basta expormos o óbvio para a pessoa ficar esclarecida e satisfeita, ou um caso daqueles em que não há grande coisa a fazer, o resultado não depende de nós e a nota que nos darão vai sempre ser um grande, redondo e inalterável zero.

Naquele andar as efectivas da humanidade feminina são mais vistosas e ataviadas.

Mas o ambiente é um pouco mais frio e quando o pessoal atravessa a longa e interminável sala, o que também demora dois minutos, parece sempre que estamos a ver os modelos na passerelle.

É o que dizem a sua postura e atitude, previamente ensaiadas para mostrar e impressionar.

A empresa é toda ela o mesmo mundo, mas estes parecem dois continentes bastante diferentes. A 120 segundos um do outro.

O Homem de Pedra

Disse-lhe que ele era o Homem de Pedra: Que absolutamente nada mudava na expressão dele, nem um único traço em todo o rosto. Quer experimentasse a felicidade suprema ou o mais dilacerante sofrimento.

Isso só poderia significar que não sentia nada. Que não sabia o que eram as emoções. O bem estar ou a tristeza, o negrume ou a euforia.

Mas na verdade não era nada disso que se passava. O Homem de Pedra sentia, e não era ligeiro o seu sentir. Só que essas sensações ficavam apenas para ele.

À sua volta ninguém sabia o que lhe passava pelo espírito.

Preocupava-se com o andamento do Mundo? Exultava com uma boa notícia? Fartava-se da sua enxada e de andar sempre a desbravar a beira da estrada, um dia depois do outro, uma hora e a seguir outra? Observava com prazer as senhoras a passar, com os seus trajes de Verão e na ponta da trela os seus cães, de raça ou rafeiros?

Ninguém diria o que viam os seus olhos.

O Homem de Pedra ali estava sempre, levando à frente as ervas daninhas, limpando o solo com uma energia sem limites, agitando-se freneticamente, caracóis esvoaçando com o movimento do corpo, rosto imóvel e impenetrável.

No dia seguinte lá se encontraria, inalterável na sua rotina e na sua ausência de expressão. E no outro, e depois também. Acontecesse o que acontecesse.

Acordar antes das cinco

Usei a hora de almoço para dormir no terraço do quinto andar, em sossego e com o Sol a bater-me na cara por cima do meu chapéu cinzento.

Quando uma pessoa está muito sonolenta e cansada o sistema entra em ruptura geral. Ficamos apáticos e desprovidos de energia. Só pensamos em parar.

Naquela noite, da nossa equipa de nove, só quatro voluntários podiam ir distribuir comida e uma palavra de conforto às pessoas sem abrigo de Lisboa.

Assim, sobraram menos de quatro horas para fechar os olhos.

A minha doce e querida Matilde, coitadinha, aparentemente perdeu-se a meio da noite. Fechou-se na minha casa de banho e, claro, não conseguia sair.

Tive que ir libertar a minha princesinha. Depois disso, já só tinha uma hora de descanso. A gordinha irresistível veio então juntar-se ao resto do grupo na cama, enroscando-se nas minhas costas.

Por essa altura, a Amélinha, a “Gááta!!”, sempre a ronronar em cima de mim, decidiu pegar-se à traulitada com o meu lindo lince doméstico, o Jeremias. Apesar de tudo ainda voltei a adormecer, minutos antes de ter que acordar.

Os meus três pequenotes já não estavam habituados a este turno que me faz acordar antes das cinco. Hesitaram muito… Mas acabaram por se levantar, alguns deles só depois de devidamente persuadidos, ir para a cozinha e receber os tratamentos matinais, além do patê e da ração.

Enquanto me lavava, vestia e preparava para ir trabalhar, esses três seres carinhosos foram regressando calmamente aos seus lugares naturais, já que ainda eram só seis horas.

A Matildinha foi para o escorredouro de loiça coberto de panos que lhe serve de morada principal. Só vai para o meu quarto quando estou lá.

O Jeremias e a Amélinha passariam as horas seguintes agarradinhos um ao outro sobre o meu édredão, não encontrando qualquer razão para se dedicarem a actividades quotidianas muito agitadas em hora tão matutina.

Despedi-me da Matilde lá no seu lugar cativo. Ao Jeremias disse adeus entre a cozinha e o quarto, para o qual já regressava. Esperava-o a Amélinha, imóvel e serena. Dei-lhe uns beijinhos e umas festinhas, enquanto a sentia vibrar e fazer “rrrr, rrrr, rrrr”.

Um raio de esperança

– Nem sei bem o que lhe aconteceu. Está toda ferida.

– Oh, que tristeza… Que idade tem ela?

– 17 anos.

– Pois, já é uma velhota!

– Nunca devemos receber um cão em casa sem saber o comportamento dele… Os da raça dele são pequeninos mas muito agressivos. Brigou com ela e deu-lhe pancada.

– Coitadinha!

Cinco minutos depois, a senhora de 70 e muitos anos e a sua cadelinha de longevidade correspondente são atendidas pela minha querida doutora.

Mas não é fácil concretizar essa vontade. A simpática mulher está sentada há muito tempo. É difícil levantar-se.

Acabo por erguer da cadeira as duas em peso, gentil humana e canina minúscula e apática. Pergunto se precisa de assistência para dar os sete passos que separam a pequena sala de espera do confortável gabinete. Não, chega lá sozinha.

Fico a olhar para ela, a ver se se equilibra bem com a sua idosa amiguinha nos braços.

A bichinha vai ser toda desinfectada das patas de trás às da frente, passando pela barriga e pela cabeça. E levar uma injecção de anti-inflamatório.

Como é que esta utente, com quem já me cruzei outras vezes, veio de casa até aqui e regressará ao seu lar, se mal pode andar e levantar a sua companheira de três quilos?

Há tempos, embora ela estivesse de muleta, tive que deixá-la ajudar-me a levar as minhas quatro transportadoras de gatos até à rua. Não sei como o fez, mas percebi que esse acto proporcionou prazer ao seu espírito doce e generoso.

Este ser meigo e bondoso, a avó que todos gostariam de ter, deixa-me sempre enternecido com o seu carácter e preocupado com o seu bem estar, e o dos seres de quatro patas que são a sua companhia.

Mas também me revela um raio de esperança, um mundo melhor do que aquele que vemos todos os dias nas notícias.