“Desculpa não responder mas posso estar a defecar”

Sentado confortavelmente no sofá, Dick interroga-se nestes termos: Sempre pensei qual seria o dispositivo tecnológico sem o qual nunca conseguiria viver, e quais os que poderia dispensar.

Sobrevivia perfeitamente sem telemóvel, Internet, televisão ou gás canalizado. Mas sem frigorífico é que não.

É uma inovação tecnológica incrível. Imaginem. Em qualquer altura, aconteça o que acontecer, posso sempre ir ao meu frigorífico e retirar do seu interior um alimento fresco, bem conservado, em perfeitas condições para ser consumido.

Ao lado, descansando no chão, Doof demora algum tempo a reagir: Bom, talvez tenhas razão. A tecnologia é um pau de dois bicos.

Quando éramos miúdos não tínhamos computador, Internet, telemóvel ou até mesmo telefone fixo. As pessoas viviam e eram felizes.

Estive a ver um documentário na televisão, no outro dia. Sobre uns indígenas duma tribo que habita numa ilha e não deixa lá entrar ninguém nem qualquer influência do exterior.

Passam helicópteros e eles atiram-lhes flechas e pedras. Se entrar alguma pessoa, é logo morta. Ali não chega nenhum tipo de tecnologia ou progresso. E eu acho que eles é que estão bem.

Eu, se tiver um familar doente ou com alguma dificuldade, graças ao telemóvel posso ir ajudá-lo imediatamente…

Mas o facto de ter Internet e e-mail no telefone pode ser bastante prejudicial. Por exemplo, posso estar numa festa a meio do fim-de-semana e ter que responder a mails de trabalho, porque estou contactável e tem que ser.

Ou então, mandam-me uma mensagem pelo Facebook  e acham que eu tenho que responder imediatamente.

Mas eu posso não querer, ou não ter possibilidade de reagir no momento! Posso estar a cagar: Épá, desculpem, não posso mandar já, já, a mensagem, porque estou na sanita.

Bem vistas as coisas, tanto Dick como Doof têm muita razão. Seria incómodo e pouco prático viver sem frigorífico, embora a esmagadora maioria da Humanidade o faça.

E ficar sem computador, Facebook, Internet, telemóvel e telefone fixo, como fazíamos há apenas umas duas décadas, como seria?

Uma entrevista de emprego fofinha

A mulher sobe no elevador, bate à porta, entra no escritório e é acolhida com grande amabilidade. Espera enquanto contempla uma vista invejável.

Entra um rapaz jovem, moreno, de lábios grossos, vestido com bom gosto mas informal.

Parece uma entrevista ao contrário. O interlocutor é invulgarmente simpático. Faz-lhe meia dúzia de perguntas mas nem lhe dá muito tempo para responder: Passa dois terços do tempo a falar da empresa.

É uma organização fantástica que fabrica peças de vestuário femininas, feitas à mão e mediante as exigências de cada cliente. Trabalha a partir do seu país para o mundo inteiro.

A companhia está repleta de eventos de construção de espírito de equipa, várias vezes por mês. O trabalho é exigente e muito variado mas o ambiente é excelente.

Enquanto ouve, interessado e atento, algumas das respostas, o recrutador ainda fala sobre a sua vida pessoal. De onde veio, o que faz aqui, as coisas que lhe agradam a nível profissional e fora do trabalho.

São 800 euros limpos, mais coisa menos coisa. Acima das últimas dez ofertas que recebeu. Mas a simpatia é tanta que a candidata fica completamente baralhada: Causou uma boa impressão ou teve um mau desempenho?

Mais tarde, haverá mais passos no processo de selecção… Mas uma ou duas horas depois, percebe que não perguntou quando será informada sobre o resultado da entrevista.

Acaba por enviar um mail a colocar precisamente essa dúvida. Não reagem logo, demoram umas quatro ou cinco horas. No final desse período, chega a resposta.

Lamentamos muito, mas não foi seleccionada. Foi um prazer conhecê-la.

A partir de agora já sabe. Quando o entrevistador é tão, tão amável que quase parece querer ajudá-la a ir passear o cão, é sinal de que provavelmente está tudo a correr muito mal.

600 euros não alimentam os meus filhos

Mais uma noite destapado”, diz, soprando sobre as luvas enquanto sente nas faces o soco frio de Dezembro. Se tivesse dinheiro escondido na sola arranjava maneira de fugir à geada da madrugada, agora que o estio se foi de vez.

O bolor dos sapatos é o companheiro que lhe resta na solidão da noite. Assiste ao revoar do pó da rua e tenta não pensar em nada.

Do outro lado da estrada, dentro do hotel brilhante e moderno, a sessão fotográfica da celebridade desenrola-se. Mais para a esquerda. Agora para a direita. Não, para o centro. Assim. Assim. Um bocadinho para cima. Isso. Isso. Perfeito.

Horas depois, uma mulher de 50 anos, ainda bela, bem vestida e maquilhada, entra no edifício do lado. Senta-se com alguma ansiedade, enquanto aguarda.

Ao colo uma revista e um livro, que terá tempo para folhear. 15 minutos depois, dois homens jovens e vestidos sem formalidade dão-lhe as boas vindas.

Perguntam-lhe porque está ali e quais são os seus objectivos. Explicam-lhe o essencial sobre o negócio, os clientes, os fornecedores, os operadores.

Fazem-lhe meia dúzia de perguntas em inglês e apresentam-lhe vários casos para resolver, usando o mesmo idioma.

A loira cativante quer saber qual é a remuneração. Feitas as contas, não dá mais de 600 euros.

Obrigado, Mister White e Mister Blue, mas com esse valor não consigo alimentar os meus filhos. Agradeço o facto de se terem lembrado de mim, desejo-vos uma óptima semana e bom trabalho.

Ao sair, repara no hotel colorido e alegre. Da pequena Babel saem turistas que falam dezenas de línguas diferentes.

Não verá o homem que há muito se levantou do pedaço de cartão onde dormiu, tentando sacudir o frio do corpo e obter algumas moedas para um hipotético pequeno-almoço.

À espera, vários anúncios por responder.

 

Não comia há 24 horas

“Eu vi!”.

“Viu o quê? Alguma coisa no facebook?”.

“Não. Vi-o a falar com um homem sem abrigo, na sua pausa de almoço, sentado ao lado dele a ouvi-lo com atenção”.

“Ah, sim, já o conheço há muito tempo, gosto bastante de conversar com ele. E tentar ajudar estas pessoas passa antes de tudo por dialogar com elas e criar relações”.

“Sim, mas nem toda a gente percebe isso”.

Depois destas observações, conta-me a sua própria história. Também passou por uma situação difícil e foi apoiado por uma instituição de solidariedade, que o ajudou a reerguer-se.

O problema é que, há três anos, o Governo decidiu fazer um corte profundo nos programas usados por algumas IPSS para reconstruir a vida destes homens e mulheres.

Se antes era possível fazer um contrato de trabalho de três anos, receber o ordenado mínimo e ter subsídio de férias, de Natal e direito à prestação social de desemprego (caso depois desse contrato não conseguissem uma nova colocação), agora já não é assim.

Estes vínculos contratuais reduziram-se a um ano, a remuneração desceu para 430 euros e os beneficiários deixaram de ter direito a subsídio de férias, de Natal e de desemprego, se precisassem de recorrer a ele no final do contrato. Critica esta mudança profunda e deseja-me bom fim-de-semana.

Horas depois, encontramos o mesmo amigo com quem me tinha sentado, dias antes, a ouvir as histórias da sua vida.

Observa que os recursos do planeta são finitos. Dependemos muito do petróleo, e esse combustível vai acabar um dia.

Quando isso acontecer, como vão voar os aviões? As outras fontes de energia não chegam para abastecer as aeronaves, quando atravessam os continentes e oceanos transportando as pessoas.

E os camiões e comboios, como vão circular e transportar as mercadorias? Um camião poderá usar outro combustível, mas será um veículo muito diferente”.

Ficamos a saber que não comia há 24 horas. “Bem, agora vou jantar. Também tenho direito”, diz, lavando as mãos com água enquanto se prepara para fazer isso mesmo. Damos-lhe mais um saco de comida e um segundo iogurte.

O lacticínio contido no pequeno frasco de plástico faz também as delícias de um arrumador que encontramos no centro da cidade. Aos 40 anos já é avô e mostra, deliciado, as fotos da bebé.

Partilha as imagens das suas duas filhas. Uma deixou-o um pouco triste:

Antes era tão linda, tão feminina. Agora, depois de ter ido estudar para outro sítio e fazer novas amizades, mudou completamente. Veste-se e corta o cabelo à rapaz. Está muito mais masculina. Antes era mais bonita”.

Sublinhamos que o importante é que a rapariga seja feliz e se sinta bem e entregamos-lhe o desejado iogurte…

Dentro de um saco igual ao que foi oferecido, pouco antes, ao efusivo amigo que vive à frente de uma garagem. Quando chegamos ao pé dele está mais que irritado.

Precisava de urinar, eventualmente nalgum café, e não o deixaram. Gesticula e fala em voz alta. Ao longe, abanamos o saco para que o veja. Os gestos e imprecações detêm-se imediatamente.

Ah, não se preocupe! Não estou chateado com vocês, não!”. Explica o que aconteceu, agradece a comida com a simpatia de sempre e diz-nos boa noite.

Eu estou preparado. E você?

Estou em paz e estou preparado. E você?”.

Respondo a U, meu amigo e profeta de 85 anos que vive e dorme na calçada, que fui a duas entrevistas de emprego. Numa delas ofereceram-me o equivalente ao ordenado mínimo.

Não tem o que comer? Vai ficar a viver na rua? Então não aceite. Responda a vários anúncios diariamente, e tente por todos os meios possíveis.

Houve uma altura da minha vida em que procurava emprego de manhã à noite, e isso aconteceu durante bastante tempo. Chegava a casa todos os dias de mãos vazias, até conseguir resolver a situação. É difícil. Continue a tentar”.

A conversa vai parar aos animais, um dos temas do futuro livro do Cronista Sem Abrigo. E aos gatos.

Os gatos são maravilhosos. Vivi histórias fantásticas, com os gatos e cães que salvei e que tive. Aquilo que distingue os seres humanos dos outros animais é a fala.

O papagaio, por exemplo, fala mas tem um cérebro muito pequeno. Se tivesse a memória do elefante, seria um ser extraordinário.

Imagine como nasceu a linguagem nos seres humanos: Nessa época, há muitos milhares de anos, havia pequenos grupos de homens espalhados pelo planeta. Um dia há um que vê um fruto e começa a emitir um ruído e a apontar para esse alimento, que ganhou assim o seu nome.

Noutra altura vê outra fruta, com uma forma e uma cor diferente, e inventa um outro som. Ao mesmo tempo, noutros continentes, acontecia o mesmo com outros homens. É por isso que temos tantas línguas diferentes no Mundo”.

Pergunta-me pelos meus pais. Conto-lhe as sagas familiares dos últimos anos e digo-lhe que a minha mãe, depois de um período difícil em todos os aspectos, decidiu oferecer a si própria um pequeno perfume, e a mim um desodorizante de fragrância irresistível.

Explico-lhe que a minha mãe acha que a vida deve ser aproveitada ao máximo, e não devemos guardar aquilo que temos até já não estarmos cá para poder usufruir.

Afirma que ela tem toda a razão, e que faz exactamente o mesmo. Vive a existência com toda a intensidade.

Entretanto levanta-se, apesar de cego e debilitado, sobe com perfeito sentido de orientação as escadas, entra no edifício à sua frente, trepa mais uns quantos patamares e vai à casa de banho.

Aproveita para lavar cuidadosamente as mãos. Elogia o facto de o lugar ter agora, em vez de sabonete líquido, espuma desinfectante para as mãos, e dispositivos que permitem secá-las e aquecê-las.

Quando se vive na rua, ao fim de algum tempo temos pó nas mãos. É bom poder lavá-las bem”.

O facto é que, ao longo de sete anos de permanência nesta rua, U nunca me cheirou mal nem me pareceu sujo ou desleixado. Como consegue assegurar isso, será sempre um mistério para mim.

Decidiu ir até ao fundo do poço

Senta-se connosco à volta e começa a falar. Os antecedentes eram fortes. O pai tinha problemas de alcoolismo, e só um dos irmãos não caiu na bebida ou na droga.

As substâncias arranjavam maneira de ir ter com ele. Mas durante muito tempo, teve aquilo a que se chama “uma vida normal e funcional”.

É carpinteiro especializado em cofragens, trabalha bem e essas tarefas não são mal pagas.

Há uns anos, começou a ter uma proximidade maior com o mundo do tráfico e do consumo. E acabou por ficar viciado.

Nessa altura, tinha uma amiga que tratava dele, lhe dava cama, apoio e conselhos. Chegou à conclusão que, enquanto tivesse essa pessoa para lhe aparar os golpes, nunca ia deixar a droga.

Decidiu ir viver para a rua, para chegar ao fundo do poço e depois regressar. Uma experiência que não deseja ao pior dos inimigos.

Levantava-se e deitava-se a pensar naquilo e no que tinha que fazer ao longo do dia para arranjar dinheiro para a dose. Roubou, enganou, pediu, a toda a gente.

Amigos, estranhos, conhecidos, pessoas que o ajudaram e fizeram tudo por ele.

Se comprava umas doses a mais, não podia levá-las para casa. A ideia era guardá-las para o dia seguinte, mas claro que as usava logo. Passou a deixá-las num sítio que ficava a uma viagem de comboio de distância.

Mas já não dormia, porque passava o tempo a pensar no que estava à espera dele no dia seguinte, quando já houvesse transporte outra vez.

Um dia esperou que os pais saíssem de casa, entrou lá com a sua chave e serviu-se. Levou tudo. Para gastar naquilo.

Noutra ocasião, a roubar, deu uma queda de 25 metros, partiu-se todo. Tem agora um ferro dentro da perna.

Durante esta fase da sua vida contraiu o vírus HIV, mas, felizmente, a doença não está activa neste momento.

Hoje está no centro de reabilitação e comunidade terapêutica de Fátima, da Comunidade Vida e Paz. Este é o segundo tratamento que faz.

Da última vez sentiu que estava reencaminhado e tinha retomado a sua existência normal. Trabalhava, tinha a sua companheira, a sua casa, os seus amigos.

Um dia, no café, decidiu beber uma amêndoa amarga. Atrás veio um charro, e a seguir a dose de heroína. E acabou tudo.

Mas agora, depois de mais de uma hora de conversa entre este homem e sete voluntários da Comunidade Vida e Paz, dedicados a retirar da rua pessoas em condição de sem abrigo, sente-se que algo é muito diferente.

Passa grande parte do tempo a falar da família, descreve a vida e a carreira de cada um dos sobrinhos, com os olhos a brilhar de emoção. Perdeu muito, demasiado, nestes anos que passaram.

Quer compensar esse tempo, estar com a família, dedicar-se aos seus. Deseja ser pai. Planeia viver, após o fim do tratamento, num espaço seu, por mais pequenino que seja.

Trabalhar, viver as alegrias e os triunfos dos familiares e amigos e constituir, também ele, o seu próprio núcleo.

Acredita em Deus mas acima de tudo crê em si mesmo. Sabe que se facilitar demasiado as coisas nenhuma ajuda externa vai fazer a diferença.

Esse grande querer que os voluntários e os terapeutas sentem visivelmente nele tem que vir de dentro, e é aí que está a nascer.

 

Foto: António Santos

Um norueguês chega a Oslo

O segurança volumoso e anafado sorrira para nós às quatro da manhã, à porta do Oslo, e dissera: “São cinco euros”.

Há muito tempo que não me lembrava de ser tão espontâneo e oportuno.

Bem, é a primeira vez que me pedem dinheiro para entrar aqui. Costumamos vir cá regularmente. Conhecemos perfeitamente aquele senhor enorme que costuma estar ali à porta, aquelas meninas simpáticas que estão a servir… E nunca nos pediram dinheiro para entrar!”.

Bem, conhece-o, então como é que ele se chama?”. “Ora, estou sempre a cruzar-me com ele, mas o nome, não sei!”.

Ri-se e acaba por nos deixar passar. O tal senhor e as meninas estão lá dentro e também sorriem francamente, o que muito agradecemos e retribuimos.

Uma imperial depois, surge um jovem loiro e simpático de olhos azuis, norueguês. Fala inglês com carregado sotaque do seu país. Não percebo patavina do que diz.

A minha amiga está habituada a estas situações e entende tudo. O visitante pergunta-nos onde vivemos, e falamos-lhe de Lisboa e das praias da Margem Sul.

Ao contrário do que pensa, não são apenas as melhores. São, isso sim, “As Praias. As Verdadeiras”, explicamos.

É estranho encontrar alguém oriundo do Norte da Europa e tão conversador, mas a minha companheira de aventuras tem este efeito em toda a gente.

Além disso, o viajante explica-nos que os os seus conterrâneos não são bem nórdicos nem latinos, na personalidade. Estão a meio caminho.

Quer aprender a nossa língua e compara-a com a sua, perguntando-nos como se dizem algumas palavras. Elogia o feitio dos portugueses, gesticulando com os braços abertos, sublinhando que somos muito afáveis.

Critica os norte-americanos: Segundo ele, são péssimos. Exactamente ao contrário de nós.

Vou à casa de banho e volto. Vejo-o a fazer o caminho contrário, mas depois já não o encontro. No regresso, pergunto por ele à minha amiga.

Tinhamos-lhe falado, com múltiplos louvores, do Jamaica. É ali à frente, do outro lado da rua. Por causa da nossa veneração por esse lugar, se calhar foi para lá…?

Responde-me ela: “Não, tu não estás bem a ver! O gajo enganou-se na casa de banho. Foi à das mulheres. E o homem que costuma estar aqui à porta foi buscá-lo… Meteu-o fora do bar”.

Coitado do rapaz. Já não pode continuar a falar connosco. Pelos vistos é melhor a dialogar com raparigas desconhecidas do que a descortinar quais são as casas de banho masculinas e as femininas num bar de uma cidade estrangeira.

Um dia para esquecer

Há cães, gatos e humanos espalhados na recepção, às oito e meia, à espera de serem atendidos. Todos os bichos escolheram o dia para adoecer.

Sou persuadido a pesar os meus, sozinho: As auxiliares estão todas ocupadas.

A seguir, entro num gabinete mas acabo por sair, para dar a vez a alguém com uma situação mais urgente.

Chega a vez de a Matilde, o Jeremias e a Amélinha, a “Gááta!!”, fazerem as análises quadrimestrais e, no caso dos dois primeiros, também o soro, o Ornipurol e o Cerénia.

O Jeremias piorou um bocadinho da insuficiência renal, e é difícil dar-lhe o tipo de medicação, líquida e pastosa, que poderia ajudá-lo mais, em conjunto com os comprimidos que já toma.

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A Matilde melhorou no que toca à Ureia, Creatinina e Hemoglobina.

A “Gááta!!” está um bocadinho pior, e ainda é só uma miúda ronronante de cinco anos. Felizmente rejubila com comprimidos, com ela o único risco é que tome demasiados.

Vamos trocar um dos Lesperim diários por Banacep, um fármaco mais eficaz.

A propósito de medicamentos, hoje também é dia de comprar uns quantos. No final, a conta dos três gatos daria para sustentar uma família humana durante umas duas semanas.

Chego a casa e vejo que a auxiliar me deu a pasta errada para combater a formação de bolas de pêlos. Volto atrás, e na clínica cobram-me mais alguns produtos que se tinham esquecido de contabilizar.

Regresso ao carro. Não pega. Dou várias voltas a pé, com o bólide em segunda fila, e vou fazendo tentativas. Aproveito para me pesar e ficar mais irritado.

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Continua a recusar-se. Vou a uma estação de serviço e peço emprestada uma pequena e prática bateria, com uns curtos cabos eléctricos.

Chego ao café e peço a ajuda a um desconhecido simpático e paciente que ali trabalha. Sou completamente nabo, tenho medo de dar cabo do carro.

Ligamos o aparelhómetro, que ele acciona correctamente, dou à chave, ouço o almejado barulho do motor. Assim começou a semana.

“Qualquer dia mato alguém”

“Qualquer dia ainda mato alguém. Estou farto de pedir ajuda e não serve de nada. Tenho um problema com a branca.

Pensava que conseguia controlar, mas não. Tenho grandes picos de ansiedade. Estou muito nervoso. Não me posso afastar muito daqui para pedir ajuda.

Já me vieram mexer nas coisas, e mijar em cima dos meus pertences. Aqui onde estou vi várias vezes prostituição a céu aberto, com mulheres ou homens, vi acampamentos de ciganos, e ninguém os chateou. Mas a mim não me deixam em paz.

Estive preso, já cometi uma agressão. Mas quero ir falar com a funcionária que agredi, quero ser eu a explicar-lhe pelas minhas palavras como tudo aconteceu.

Chamo-me X, tenho Y anos, costumo estar aqui neste sítio. Podem vir aqui ter comigo. Ajudem-me, preciso mesmo de ajuda”.

A situação é rapidamente reportada, para que as experientes estruturas de reinserção da Comunidade Vida e Paz (CVP) possam apoiar este homem perdido e desesperado.

Logo a seguir a equipa dá de caras com A… E não é que uma das voluntárias conseguiu mesmo arranjar um bom e funcional aspirador, sem saco, para que ele possa limpar irrepreensivelmente o quarto que obteve graças aos seus esforços e com a ajuda de instituições de solidariedade?

A rapariga abre e fecha o electrodoméstico, mostra-lhe todas as funcionalidades, o modo de usá-lo e explica-lhe que já mudou os filtros, com os quais não terá que se preocupar durante mais de um ano. O homem brinca connosco e ri de felicidade.

Mais tarde encontramos o pequeno habitáculo de cartão de G, que não está. Nem ele nem N, a sua cadelinha irresistível.

Mas vemos sapatos e pantufas de bebé, e vários brinquedos. Sinais evidentes da presença de outras pessoas: Uma família com bebé. Um dos voluntários fica particularmente chocado com a situação.

A CVP é informada segundos depois. As dezenas de equipas de voluntários da instituição são instadas a manter-se totalmente alerta em relação a este caso, para que possa intervir-se com toda a celeridade possível e trazer ao terreno as entidades competentes. Ou seja, a Segurança Social.

Não vale a pena forçar as coisas

Naqueles momentos em que o lençol se desloca para o lado e a cabeça convence o corpo de que a noite acabou, o Jeremias vem ocupar a minha barriga e o meu peito, ficando ali a ronronar.

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Cinco minutos de prazer e carinho não vão atrasar o dia.

Ainda está escuro e é a hora ideal para ir correr. Mas a preguiça ataca mais um bocadinho.

Nada como um quarto de hora a ler na sala para ganhar coragem antes de ir treinar. O Jeremias gosta muito mais de vir para o meu colo quando ainda não estou vestido, e é isso mesmo que faz.

A Matilde fica sempre baralhada nestas situações. Como 90 por cento dos gatos, adora o conforto da roupa, ou de qualquer coisa igualmente acolhedora, para se sentar em cima.

Acaba por se encaixar em mim e ficar dedicadamente abraçada e encostada a mim, em vez de ao meu colo.

O Chiquinho sente a falta da T-Shirt vestida, para me amassar a barriga. Coloca-se sobre o lado esquerdo do sofá, a fazer companhia.

A Amélinha, a “Gááta!!”, passeia pela casa.

Depois de ir correr, fazer compras, tomar banho, limpar a casa e almoçar, está na altura da escovagem da família felina.

A “Gááta!!” está deitada em cima do micro-ondas, que ainda se encontra quente. Acaba por ficar a abrir e fechar os olhos, feliz e tranquila, enquanto a escova vai e vem.

O Jeremias, hoje, não colabora. Após muita insistência e fracos resultados, passo ao gato seguinte.

O Chiquinho mostra-se como é. Muito carinhoso, agradece vocalmente a atenção especial mas de vez em quando volta para o chão, pelo que a eliminação dos seus pêlos mortos se processa em várias fases.

Chega a vez da Matilde.

É prático escová-los todos no mesmo sítio, que depois é rapidamente re-aspirado. Pego nela diplomaticamente e levo-a da sala para a cozinha.

Tal como da última vez, não está para aí virada.

Transporto-a para o pequeno anexo onde entra o ar da rua e a roupa está a secar. Os quatro apreciam este lugar, e para ela é um refúgio especial.

A coisa começa a correr melhor. Vai-se escondendo debaixo das roupas penduradas, persigo-a suavemente e passo o instrumento de borracha pelo seu corpo.

Tenta em vão enfiar-se dentro dos sacos para congelados que também ali estão encostados, e prossigo o meu trabalho pacientemente.

No final, cada um deu origem a uma bola de pêlos com metade do tamanho de uma de pingue pongue.

Apenas o menino Jeremias se portou mal, mas estas coisas só se conseguem forçar até um certo ponto…