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Eu estou preparado. E você?

Estou em paz e estou preparado. E você?”.

Respondo a U, meu amigo e profeta de 85 anos que vive e dorme na calçada, que fui a duas entrevistas de emprego. Numa delas ofereceram-me o equivalente ao ordenado mínimo.

Não tem o que comer? Vai ficar a viver na rua? Então não aceite. Responda a vários anúncios diariamente, e tente por todos os meios possíveis.

Houve uma altura da minha vida em que procurava emprego de manhã à noite, e isso aconteceu durante bastante tempo. Chegava a casa todos os dias de mãos vazias, até conseguir resolver a situação. É difícil. Continue a tentar”.

A conversa vai parar aos animais, um dos temas do futuro livro do Cronista Sem Abrigo. E aos gatos.

Os gatos são maravilhosos. Vivi histórias fantásticas, com os gatos e cães que salvei e que tive. Aquilo que distingue os seres humanos dos outros animais é a fala.

O papagaio, por exemplo, fala mas tem um cérebro muito pequeno. Se tivesse a memória do elefante, seria um ser extraordinário.

Imagine como nasceu a linguagem nos seres humanos: Nessa época, há muitos milhares de anos, havia pequenos grupos de homens espalhados pelo planeta. Um dia há um que vê um fruto e começa a emitir um ruído e a apontar para esse alimento, que ganhou assim o seu nome.

Noutra altura vê outra fruta, com uma forma e uma cor diferente, e inventa um outro som. Ao mesmo tempo, noutros continentes, acontecia o mesmo com outros homens. É por isso que temos tantas línguas diferentes no Mundo”.

Pergunta-me pelos meus pais. Conto-lhe as sagas familiares dos últimos anos e digo-lhe que a minha mãe, depois de um período difícil em todos os aspectos, decidiu oferecer a si própria um pequeno perfume, e a mim um desodorizante de fragrância irresistível.

Explico-lhe que a minha mãe acha que a vida deve ser aproveitada ao máximo, e não devemos guardar aquilo que temos até já não estarmos cá para poder usufruir.

Afirma que ela tem toda a razão, e que faz exactamente o mesmo. Vive a existência com toda a intensidade.

Entretanto levanta-se, apesar de cego e debilitado, sobe com perfeito sentido de orientação as escadas, entra no edifício à sua frente, trepa mais uns quantos patamares e vai à casa de banho.

Aproveita para lavar cuidadosamente as mãos. Elogia o facto de o lugar ter agora, em vez de sabonete líquido, espuma desinfectante para as mãos, e dispositivos que permitem secá-las e aquecê-las.

Quando se vive na rua, ao fim de algum tempo temos pó nas mãos. É bom poder lavá-las bem”.

O facto é que, ao longo de sete anos de permanência nesta rua, U nunca me cheirou mal nem me pareceu sujo ou desleixado. Como consegue assegurar isso, será sempre um mistério para mim.

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