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Decidiu ir até ao fundo do poço

Senta-se connosco à volta e começa a falar. Os antecedentes eram fortes. O pai tinha problemas de alcoolismo, e só um dos irmãos não caiu na bebida ou na droga.

As substâncias arranjavam maneira de ir ter com ele. Mas durante muito tempo, teve aquilo a que se chama “uma vida normal e funcional”.

É carpinteiro especializado em cofragens, trabalha bem e essas tarefas não são mal pagas.

Há uns anos, começou a ter uma proximidade maior com o mundo do tráfico e do consumo. E acabou por ficar viciado.

Nessa altura, tinha uma amiga que tratava dele, lhe dava cama, apoio e conselhos. Chegou à conclusão que, enquanto tivesse essa pessoa para lhe aparar os golpes, nunca ia deixar a droga.

Decidiu ir viver para a rua, para chegar ao fundo do poço e depois regressar. Uma experiência que não deseja ao pior dos inimigos.

Levantava-se e deitava-se a pensar naquilo e no que tinha que fazer ao longo do dia para arranjar dinheiro para a dose. Roubou, enganou, pediu, a toda a gente.

Amigos, estranhos, conhecidos, pessoas que o ajudaram e fizeram tudo por ele.

Se comprava umas doses a mais, não podia levá-las para casa. A ideia era guardá-las para o dia seguinte, mas claro que as usava logo. Passou a deixá-las num sítio que ficava a uma viagem de comboio de distância.

Mas já não dormia, porque passava o tempo a pensar no que estava à espera dele no dia seguinte, quando já houvesse transporte outra vez.

Um dia esperou que os pais saíssem de casa, entrou lá com a sua chave e serviu-se. Levou tudo. Para gastar naquilo.

Noutra ocasião, a roubar, deu uma queda de 25 metros, partiu-se todo. Tem agora um ferro dentro da perna.

Durante esta fase da sua vida contraiu o vírus HIV, mas, felizmente, a doença não está activa neste momento.

Hoje está no centro de reabilitação e comunidade terapêutica de Fátima, da Comunidade Vida e Paz. Este é o segundo tratamento que faz.

Da última vez sentiu que estava reencaminhado e tinha retomado a sua existência normal. Trabalhava, tinha a sua companheira, a sua casa, os seus amigos.

Um dia, no café, decidiu beber uma amêndoa amarga. Atrás veio um charro, e a seguir a dose de heroína. E acabou tudo.

Mas agora, depois de mais de uma hora de conversa entre este homem e sete voluntários da Comunidade Vida e Paz, dedicados a retirar da rua pessoas em condição de sem abrigo, sente-se que algo é muito diferente.

Passa grande parte do tempo a falar da família, descreve a vida e a carreira de cada um dos sobrinhos, com os olhos a brilhar de emoção. Perdeu muito, demasiado, nestes anos que passaram.

Quer compensar esse tempo, estar com a família, dedicar-se aos seus. Deseja ser pai. Planeia viver, após o fim do tratamento, num espaço seu, por mais pequenino que seja.

Trabalhar, viver as alegrias e os triunfos dos familiares e amigos e constituir, também ele, o seu próprio núcleo.

Acredita em Deus mas acima de tudo crê em si mesmo. Sabe que se facilitar demasiado as coisas nenhuma ajuda externa vai fazer a diferença.

Esse grande querer que os voluntários e os terapeutas sentem visivelmente nele tem que vir de dentro, e é aí que está a nascer.

 

Foto: António Santos

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