Desempregado: A minha primeira convocatória ao centro de emprego

Um jovem do Espaço Jovem dos Olivais atende e pede a carta de convocatória do Instituto do Emprego, prometendo devolvê-la no final, assinada e carimbada, e, antes disso, chamar toda a gente pelo nome.

Cinco senhoras ciganas e dois homens da mesma etnia fazem parte do grupo de trinta desempregados chamados a comparecer. As mulheres de trança e saia comprida, conversadoras e animadas, e os dois homens, falam convictamente das mortes e doenças da família e do clã, e das múltiplas ligações que existem entre eles, mesmo que nunca se tenham encontrado ao vivo.

As três dezenas de homens, rapazes, senhoras e raparigas de diversa extracção social acabam por ser recolhidas dentro de um pequeno espaço de recepção e conduzidas ordeiramente para uma sala nas catacumbas do Espaço Jovem dos Olivais.

A técnica do IEFP dá as boas vindas. Preenchem-se fichas de inscrição que, diz, são só para ela “e não para o IEFP”. Empresto uma caneta à esquerda, outra à direita e preencho o meu papelinho de cinco centímetros quadrados com o nome, idade, profissão e habilitações.

O rapazinho indiano à minha esquerda nada fala de português e pouco de inglês. Ajudo-o a preencher a ficha, libertando a técnica e formadora, que também tem que ajudar uma senhora, que não sabe escrever, lá ao fundo.

Começa a formação. O objectivo é dar a conhecer as várias ferramentas de apoio ao emprego do Estado socialista que é pago pelos nossos elevados impostos e nos proporciona a segurança social.

A formadora vai apresentando, criticando, traduzindo e interpretando as várias medidas estatais de ajuda à procura de trabalho.

À esquerda, escondido por uma fila de cadeiras, há um homem de trinta e tal anos que coloca perguntas, e mais dúvidas, e novas incertezas.

Ataca e questiona o funcionamento do Estado, produzindo infinitos desabafos sobre a burocracia e a ineficácia do sistema. Ao fim de 15 minutos disto, toda a gente se vai mexendo nas cadeiras e fixando o olhar no infinito, para lá das paredes da sala.

Às tantas, passo-me. “Desculpe lá, temos que estar aqui a discutir o sexo dos anjos?! Não podemos acelerar?!”. Ouve-se um rumor mal controlado de concordância e aprovação geral. “Sim, sim, claro, tem razão”.

O homem cala-se, por fim. O moço indiano à minha esquerda, impaciente e irritado, revira os olhos e encolhe os ombros. Segue-se meia hora um pouco mais fluída e a sessão termina.

Os sete ciganos conversadores e sociáveis pedem para assinar a folha de presença primeiro porque estão com pressa. O resto do grupo aguarda, divertido e paciente, enquanto o pequeno clã assina, junto ao quadro dos slides, volta a trocar comovidos e efusivos abraços e envia cumprimentos e saudações sentidas para todos os familiares e amigos.

O rapazinho indiano comenta, em inglês: “It’s a drama!!” (algo como, julgo entender no seu sentir: “É uma peça de teatro!!”). Rimos os dois e respondo, na língua de Shakespeare: “E ainda por cima é de graça!!”.

Quando finalmente nos é permitido assinar a folha, a mulher à minha direita já está demasiado impaciente e exige que lha passe. “Uma fracção de segundo enquanto procuro o meu nome”, respondo. Mais uma fracção de segundo não faz diferença.

A formadora agradece-nos e pede-nos desculpa, e eu a ela, pelo meu passanço de há pouco. “Ah, não se preocupe, é normal! Nós já estamos preparados para tudo!”.

A jangada de latas

Já nos conhecíamos desde o ano lectivo anterior. O Pedro era uma espécie de figura tutelar, que também andava pelos 16 anos, como eu, mas com muito mais juízo. Fazia o que podia para que eu não levasse longe demais as minhas loucuras de pós-adolescente.

Juntávamo-nos em casa dele, nós e a Lassie, aquele tufo de pêlos carinhoso e paciente que acompanhou toda a parte fundamental da nossa juventude. Ouvíamos o som cru e contestatário dos primeiros álbuns dos Xutos, na aparelhagem dele, em discos que ele gravava em cassetes e eu escutava num gravador na minha casa.

Ele tinha um Timex 48 K e um gravador áudio, que, somados, constituíam o supra-sumo da computação, à época. Esperávamos, ouvíamos a cassete do jogo entrar e fazer uns barulhinhos idênticos aos de um fax a chegar… Depois, jogávamos!

O Pedro tinha em casa umas revistas de jogos de computador, em inglês. Língua em que eu era craque. Naquelas férias de Páscoa, decidimos que íamos levar avante uma das nossas quimeras de miúdos. Umas concretizaram-se, outras não, como a ideia de construir uma jangada de latas.

Esta era mais realista. Queríamos, em conjunto, criar uma secção jornalística de jogos de computador. O Jornal do Barreiro funcionava por assinaturas e não tinha muita expressão. A Voz do Barreiro parecia coisa mais séria e credível.

Parece-me que da primeira vez que aparecemos estava lá o vice do sítio, que se identificou como tal, e viria, anos depois, a ser um jornalista de prestígio nacional e além fronteiras.

Mais tarde ou mais cedo acabámos por apanhar o Boss, o Dr. Baião, licenciado em ciências sociais e nos prazeres da vida. Cumprimentava-nos dizendo “Oláá Jóóvens!!!”.

A nossa ideia foi imediatamente ampliada por ele. Arranjámos uma equipa e criámos um suplemento periódico, com várias páginas. Jogos, poesia, notícias, letras, artes, exposições. Um espaço cultural de e para gente nova.

Foi nesta vida que conhecemos  “o velho dos pombos” e “o velho dos ranchos”, dois homens de certa idade e muita paciência que eram colaboradores do jornal e aturavam as nossas palermices.

Tínhamos direito a visitas à gráfica, onde imperava o Monteiro, ar meio putanheiro, o dono do jornal. A festas, onde às vezes se bebia até cair. A conhecer as personagens miríficas que, então, povoavam a Imprensa local.

Havia outro cronista, o Matoso, que tinha uma rubrica chamada “Repar(ando)”. Aparentemente, ele ia andando e reparando nas coisas.

Essa aventura acabou por se prolongar e ocupar a minha vida dos anos seguintes. Deste jornal passei para outros, para as rádios, para o curso de Comunicação Social… Mas essa, é outra história!

“Quando compras um pacote de leite pagas a violação de uma vaca” “Hã?!”

“Cada vez que compras um pacote de leite estás a pagar a violação de uma vaca”.

“O quêê?!? Isso não é uma opinião. É uma parvoíce. É uma treta”.

“Tu achas que os mihões de vacas que são obrigadas a estar grávidas a vida toda, para darem leite, e cujos vitelos lhes são retirados e mortos, querem fazer isso?”.

“Não é uma questão de vontade, é uma questão de instinto. Não têm vontade”.

“Então as vacas, os porcos, os cães e os gatos não têm vontade, não têm sensibilidade, não têm consciência? Só têm instintos?”.

(Vira-se para a pessoa que está atrás).

“Está a ver, estamos aqui a ter esta discussão porque esta pessoa se tornou vegan”…

“Pois, eu crio animais para os matar e os comer, mas garanto-lhe que eles não passam a vida a sofrer”.

“Sim, é como ser contra as touradas. Em Espanha, matam os touros no fim das touradas, e eles não ficam a sofrer. Eu gosto da parte da ‘dança’ com o toureiro”.

“Então tu achas que ao longo daquelas horas em que os touros estão a ser espetados com ferros e bandarilhas, eles estão contentes e felizes?”.

“Não, eles têm uma capa de sangue que os protege!”.

“Olhem, eu digo-vos uma coisa. Eu vim ao Mundo para sofrer. Desde que nasci que sofro, sofri a vida toda e ainda vou sofrer muito mais. O touro, até ao momento da tourada, é completamente feliz. E depois, naquele momento da tourada, sofre…”.

“Sim, e além disso, uma grande parte dos vegans, que não comem carne nem produtos de origem animal e se preocupam com os animais, são uns fascistas que não querem saber das pessoas para nada. São capazes de ver uma pessoa quase a morrer e não fazem nada”.

“Bem, acredito que haja gente estúpida entre os vegans, tal como entre os carnívoros. Mas o facto de nos preocuparmos com os animais não quer dizer que não nos preocupemos com as pessoas. Um coisa não impede a outra. Para falar a verdade, já me preocupava com as pessoas muitos anos antes de me preocupar com os animais. Mas enfim, é melhor ficarmos por aqui. Acho que nunca vamos chegar a um acordo!”.

“Foi uma tentativa de homicídio. Alguém vai pagar”

Olha para nós com um ar desvairado.

“O que te aconteceu?”.

“Fez oito dias na segunda. Estávamos deitados, a dormir, na barraquinha de caixotes de cartão. De repente senti calor nos pés e acordei. Dei um pontapé na caixa da parte detrás e saímos os dois, eu e o meu marido.

Foi tudo tão rápido. Eu quase não me queimei, ele queimou-se na mão e no braço. Ainda tentei pegar na mala com os documentos, mas desisti. Ficava lá a mala e ficava eu.

Ele está no hospital há vários dias, diz que não percebe porque é que não lhe dão alta já. Mas primeiro tem que recuperar.

Vão ajudar-me a fazer um novo cartão do cidadão, e pagar, porque fiquei sem nada.

Ele não queria que eu viesse hoje para aqui arrumar, mas tenho que fazer algum dinheiro. Fiquei sem a medicação, sem os comprimidos, sem a roupa, sem o calçado, sem nada. Mas Deus é grande e encontrei a seguir um saco com uns ténis.

Eu tenho cem por cento de certeza de quem fez aquilo. Encontrei um garrafão com vinho e com mais outra coisa que tinha um cheiro esquisito, lá na relva.

Foi tudo tão depressa. É claro que foi fogo posto, ou nunca pegava tão depressa. É tudo muito estranho. Isto é uma tentativa de homicídio. E a pessoa que fez isto vai ter que pagar”.

A existência do casal, que vive na rua, arruma carros e lida com todas as dificuldades que estão relacionadas com essa condição, acaba de ficar muito mais dramática.

Depois de mais dois dedos de conversa, despedimo-nos, com a intenção de trazer mais alguma coisa útil na próxima Volta da Comunidade Vida e Paz em que passarmos por eles. E com o registo exacto do lugar onde pernoitam agora, igualmente ao relento.

Horas depois, estamos junto do profeta e pensador da calçada. Faço questão de ser o primeiro a sair, atravesso a estrada num instante, na convicção de que, depois das nossas centenas de conversas, este homem sábio e cego de 84 anos reagirá positivamente à minha voz, mesmo que não me reconheça de imediato.

“Boa noite. Ah, é o último saco que estão a distribuir? Então tenho que aceitar. Vocês querem que eu volte para o meu país, mas eu não vou fazer isso! As instituições deixaram de me dar comida porque querem que regresse para lá, mas não o vou fazer! E depois trazem-me dinheiro, que querem que eu aceite.

Deram-me 75 euros, já rasguei metade dessas notas e deitei fora. Agora vou rasgar estas metades em vários pedaços, para jogar no lixo amanhã”.

Rasga as notas perante os nossos olhos. As metades das notas que, inteiras, perfariam 75 euros, desfazem-se entre os seus dedos à nossa frente.

“O mundo não está com Cristo, por isso não está bem. Diga-me uma coisa, acha que o Planeta está em guerra? Sim? E em que tipo de guerra está? Não, o Mundo está apenas numa guerra económica. Nada mais.

É a guerra entre as nações mais industrializadas do Planeta. Esta situação nunca aconteceu, em toda a História da Humanidade. A Terra está em guerra, numa guerra unicamente económica. E isso não vai ter um bom resultado. Boa noite!”.

Tenho a mania de não abastecer o carro

Tinha tido um acidente imponente e inquietante uns quanto meses antes, cujo estrago foi tão grande que até dava para comprar outro carro (pelo menos), e que deixou o condutor vivo graças a um verdadeiro milagre.

Algum tempo depois, na auto-estrada para o Barreiro, de repente o bólide começa a fraquejar. Atacado pela mania de deixar o veículo gastar até à última gota de combustível, andava sempre com ele na reserva. “Verificar Injecção”, disse-me ele.

Teve que levar uma nova bomba de injecção, bomba de água, bomba de óleo e correia de distribuição. E a primeira destas peças, “de certeza”, só teve que ser substituída por causa da tal mania de não o abastecer.

Serviu de emenda, amarga e cara, porque todas as peças custaram umas cinquenta vezes o seu peso em moedas de dois euros. Nunca mais o tanque andou abastecido, quase, a ar.

Apenas umas semanas depois, de novo na auto-estrada, a mesma mensagem. “Verificar Injecção”. Como?! A viatura foi deixada no Barreiro, Domingo, para que, na mesma oficina que o arranjou, detectassem que raio se passava.

A viagem de volta a Lisboa foi feita no Clio cinzento do Sr. Ventura Sénior, que tem 16 anos e se encontra em melhor estado e com menos humores e caprichos do que este seu concorrente mais novo, a gasóleo, com pouco mais de metade dessa idade.

Segunda-feira, oiço a voz do meu pai, tranquila, do outro lado do telefone. “Olha, o carro não tem nada. Foi um amoque temporário. Tens que ir vigiando, e, aos 175 mil, fazer a revisão. Na oficina disseram para fazeres nessa altura, embora ele também já mostrasse as palavras ‘fazer revisão’ e o desenho da chave de fendas”.

E assim começa a semana com uma boa notícia. As boas notícias são sempre bem vindas.

As três torradeiras

Além de me encherem de comida (vegan), de bebida (vinho, e um whisky exclusivamente destinado a mim, no fim), salada, fruta, frutos secos, boas conversas sobre o que aconteceu no Mundo, na Cidade e na Província nos últimos setenta anos, os meus pais, ao Domingo, vão, depois, dar uma volta comigo, que inclui sempre um pouco de rio ou Mar.

Se o meu pai está um pouco mais à pressa nesse dia e vai ver o Benfica, ou os Júniores, ou a Selecção, o resto da tarde é para conversas de mãe e filho. Onde se pode falar de tudo, mesmo tudo, sem quaisquer restrições.

Os diálogos acontecem num passeio marítimo ou fluvial acrescentado, numa sala de cinema… Ou em casa, em frente à super-televisão dos meus pais, que, agora, já têm finalmente a boxe e os seus 300 mil canais, dos quais qualquer pessoa nunca vê mais de quatro ou cinco.

A minha mãe deixa-me escolher o canal, o programa (isto é, o filme) e o volume do som. Até me aconselha, dizendo-me quais são as películas mais interessantes que andam a marinar pelos cabos televisivos. Quando vou para casa, acabo por procurar na minha boxe a história que ela me ajudou a escolher, metê-la para trás e vê-la do princípio ao fim.

Ao terminarmos as nossas sessões de conversação dominicais que me curam discreta e imperceptivelmente (não para ela, que detecta sempre tudo), passamos de novo à cozinha.

Para um vegan e uma mãe que o é espiritualmente, esperam-nos várias variedades de pão deliciosas e substanciais, manteiga estritamente vegetal, diversos doces e um bom chá de diferentes sabores à escolha, com ou sem adição de limão. É coisa para durar pelo menos meia hora.

Pão torrado e família Ventura são duas expressões que coexistem constantemente nas mesmas frases. Há sempre uma torradeira pronta a torrar por onde andamos. Como são muito usadas, e ninguém tem orçamento para uma torradeira que dure para sempre, volta e meia avariam.

Num destes dias, a torradeira não segurava o pão. Lá teve a minha mãe que ficar a carregar para baixo, para que o dispositivo conseguisse fazer o seu trabalho aceitavelmente.

Foram à loja e deram-lhes outra. Não funcionava. Voltaram lá e entregaram-lhes outra vez uma nova. Também não trabalhava.

O meu pai encheu-se de moscas. Pediu o valor da torradeira, juntou mais alguns euros e comprou uma, brilhante e imponente, que não tem ar de quem vá recusar-se a trabalhar conveniente e correctamente nos próximos séculos.

Este Domingo à tarde não faltaram torradas bem nutridas e abundantemente barradas para o nosso lanchinho. E ninguém teve que ficar a empurrar o pão para baixo.

Galinhas mais ou menos biológicas

Tinha várias galinhas, e conhecia todas pelo nome, pela cor, pelo aspecto… De vez em quando havia uma que desaparecia por umas semanas, por exemplo escondida no meio da lenha, e durante esse período ninguém sabia dela.

Depois, o animalzinho aparecia de um dia para o outro, seguido por um grupo de pintainhos a caminhar disciplinadamente atrás da progenitora. A minha avó comentava: “Olha, lá está a galinha não sei quantas! Finalmente apareceste!”.

Naquela casa, em meados do século passado, o que os animais produziam naturalmente era usado para consumo da família, e os bichos não eram colocados numa linha de produção industrial, obrigados a alimentar os humanos, como acontece hoje.

Nos dias que correm, fala-se frequentemente em alimentação biológica, mas isso motiva algumas dúvidas. Se esses alimentos são criados de uma forma intencional para fornecer um mercado de consumidores que os compram, será que os animais vivem de acordo com as leis da natureza, e não são obrigados a entregar o seu leite e os seus ovos à força, fora dos seus padrões normais quotidianos?

São dúvidas que assaltam, levando à conclusão de que o mais parecido com a agricultura biológica era a de antigamente, em que as famílias retiravam o necessário para a sua subsistência, e, de resto, deixavam os bichos viver sem tantas perturbações.

Essa fauna rural, meia dúzia de anos depois, foi responsável pelo facto de o meu tio ainda hoje continuar por cá. O jovem não se conseguia entender com a ração da tropa, razão pela qual não comia nada, apesar de estar na recruta e em esforço constante.

O alimento que o manteve ao longo desses meses acabou por ser o leite – de uma vacaria que havia nas instalações militares…

Também é verdade que as gentes dessa época, especialmente no campo, tinham uma alimentação muito mais próxima do regime vegan – que adoptei para a vida – do que as pessoas de hoje. Comiam pão, papas, feijão, batatas, legumes, sopa, várias leguminosas, arroz, fruta.

A carne, viam-na pouco mais de uma vez por ano, e o peixe ainda menos. Mesmo assim, conseguiam trabalhar no campo, dar à luz uma porção de filhos e viver durante um período respeitável. A sua dieta era bem mais saudável do que a da maioria dos citadinos de hoje…

Eu não quero saber do Verão

A cama de Inverno encontra-se atafulhada com um edredão grande e grosso, um pequeno cobertor, duas cobertas finas e uma modesta mas poderosa manta polar, porque o seu utilizador não tem paciência para desenrolar e manusear o apropriado e gigantesco agasalho nocturno que tem no armário do corredor.

Ao início da noite, o Jeremias, um ser ronronante que adora o contacto directo com a pele humana e o calor, chega-se para debaixo disto tudo, enrola-se em mim, mete as patinhas por cima das minhas e ali fica, feliz e satisfeito.

Depois de esperar que todos os felinos adormeçam e se distraiam, a Matildinha vem enfiar-se do outro lado, agarrando-se frenética e amorosamente a mim, aquele em quem projecta 24 horas por dia protecção e confiança absoluta, sentimentos que se tornaram mais evidentes depois de duas operações para retirar nódulos, épocas da vida dela em que procurou de forma óbvia e crescente conforto e abrigo no meu colo.

A Amélinha, a minha “Gááta!!”, bebé de quatro anos que vive em conexão directa com os meus braços, as minhas pernas e os meus ombros, gosta especialmente de se refastelar na manta polar, quente e fofa, que está por cima de nós.

O Chiquinho é aquele ser sábio que me ensinou a ser responsável por alguém, que me explicou que o lugar dele era na minha vida, a confortar-me e acarinhar-me, a mim e aos meus mais próximos, e não na rua, com um destino incerto e perigoso, certamente não muito longo.

Sempre se considerará um ser de estatuto superior nesta casa de maioria felina. Os outros gatos são, para ele, súbditos, gente de estirpe social muito mais baixa. Excepto a “Gááta!!”, que adoptou, assim que ela chegou cá com dois meses, como filha, discípula e protegida, a quem deixa fazer todas as maldades e mais alguma e ainda fica extremamente feliz.

Nos últimos anos, o Chiquinho só veio uma vez para debaixo dos cobertores comigo… Mas sem que nenhum dos outros três lá estivesse.

Cerca de sete horas depois de todas estas acomodações nocturnas, é altura de refazer a cama, o que se torna um enorme desafio enquanto os felinos não saem todos do quarto.

Passa-se à lavagem dos dentes e ao corte da barba. Depois de cada uma destas operações, o Chiquinho mia obsessivamente para mim. Quer os miminhos que lhe são devidos cada vez que vou à casa de banho e uso a bacia, mesmo que seja 500 vezes por dia.

Algum tempo depois é hora do banho. Um grande momento de diversão felina. O Jeremias, mesmo quando não quer, é forçado a acompanhar-me nesta altura, para não ficar na cozinha, encostado à caldeira de aquecimento, e voltar a chamuscar os pêlos.

Trago ainda o Chiquinho: Não me perdoaria se tomasse banho sem ele estar presente, a observar através da cortina.

A Matilde fica no seu castelo e domínio, a cozinha, e convenço a “Gááta!!” a fazer-lhe companhia, para não estar sozinha. No final do duche o Jeremias quer ir beber a água do banho. Mas basta abanar a cortina para ele fugir.

Os dois miam intensamente para mim reivindicando festinhas, o Chiquinho a lamber-me as mãos e os braços ainda quentes.

A manhã e a tarde são passadas na sala, às voltas com o computador. A Matilde, depois de conseguir fugir dos outros e desviar-se dos seus ataques, fica por cima do sofá, enroladinha, a dormir.

O Jeremias, o gato que tem sempre frio, permanece no seu lugar, em cima da boxe da televisão. A “Gááta!!” instala-se em cima das minhas pernas, num novelo carinhoso e anestesiado, enquanto vou teclando.

O Chiquinho ocupa o seu posto favorito, a cadeira, debaixo da mesa. Escondido, ouve e observa o Mundo. De vez em quando vem dar umas patadinhas e uns miados dirigidos a mim ou à “Gááta!!”, para nos quebrar a monotonia.

Os dois também se deleitam à janela, estudando a vida que decorre debaixo dos seus olhos. Às vezes dou um toque na “Gááta!!” nessas alturas, ou chamo-a, por esse que é o seu verdadeiro nome. Reage instantaneamente, agradada, espantada, carinhosa, profundamente amorosa. “Miaaaaaau! Dono! Estavas aí! Olá! Adoro-te!”.

Seres vivos como nós

Dois homens, uma mulher e um bebé chegam à praça central com um ar divertido e descontraído. Um deles parece ter uma posição dominante sobre os outros e convence o amigo a fotografá-lo enquanto dá milho aos pombos.

Depois, os grãos de cereal acabam-se e começa a dar aperitivos salgados às aves. Mais uma vez, vai sendo fotografado enquanto o faz. Para não mostrar uma atitude demasiado hostil perante estes turistas de fora da Europa, espero uns momentos e vou falar com eles, em inglês.

Sabia que nesta cidade existem regras contra a alimentação de pombos na via pública?”. Pergunta-me “para que é que é proibido”. Explico-lhe, simplificando, que está escrito numa lei (referindo os regulamentos municipais), que não é permitido e que pode dar origem a uma multa.

E aproveito para dizer, recorrendo ao senso comum, que oferecer acepipes salgados aos animais também não é uma boa ideia, porque pode ser prejudicial à sua saúde. “Ah, pois é, por causa do sal, não é?”. “Sim”.

De uma forma ou de outra, parece que a grande preocupação do homem era ser fotografado a dar comida aos bichos, para depois mostrar a imagem aos amigos.

Alimentar ou não os pombos na rua, além de ser assunto de regulamentos municipais, é também tema de alguma polémica. Quando se pensa em controlar a alimentação das aves por parte de quem passa na rua, a ideia será tentar evitar que se reproduzam excessivamente, o que tornará a sua vida mais difícil e levará a uma convivência complicada com a população humana.

Mas há também as pessoas que acham que, pelo contrário, estes seres alados sofrem com a fome e devem ser nutridos por elas… A mesma discussão se levanta quando se trata de cães, e especialmente de gatos.

No caso destes últimos, quando têm nutrição assegurada, os felinos que nasceram na rua ou foram abandonados por alguém reproduzem-se sem restrições. O resultado é que haverá mais animais sem dono nem protecção a viver na rua.

Se toda a gente (pessoas e instituições) se preocupasse em esterilizar as gatas e cadelas, promover a adopção dos animais de rua e lutar contra o seu abandono – e contra a compra e venda de mascotes, que leva a que as centenas de milhares de abandonados nunca sejam adoptados – com o tempo o problema acabaria por resolver-se.

Quanto aos pombos, as autarquias (algumas tentam fazê-lo) devem pensar na melhor maneira de não se reproduzirem tanto que não consigam sobreviver, e ao mesmo tempo terem uma existência digna e agradável. São seres vivos, tal como nós e todos os outros.

Engoliu uma caneleira

Todos os dias, o gato engolia uma fita de plástico, das que os sacos de lixo trazem para ser atados. Uma obsessão de que muitos felinos sofrem, e até teria piada, não fossem os riscos graves que isso pode trazer.

Mas como era rápido e sorrateiro, a dona não conseguia impedi-lo. A Doutora perguntava-lhe sempre se o animal estava bem, se tinha fezes estranhas, se vomitava. Tudo normal.

Um dia, pela primeira vez em toda a sua vida, vomitou. Notou-se, também, que estava mais magro. Durante um período longo e preocupante, este bicho empreendedor e determinado ingerira as sinistras e discretas fitas, sem as regurgitar e sem produzir dejectos invulgares…

Quando foi examinado, solucionou-se o mistério. Tinha uma grande bola de plástico dentro do estômago, e era por isso que estava a ficar delgado: Já não conseguia alimentar-se convenientemente.

Felizmente a história acabou bem, com os dotes cirúrgicos da Doutora a tratarem de extrair com eficácia a bola de plástico do interior daquele ser indefeso e endiabrado.

O caso clínico surgiu a propósito de uma história impressionante. Nesse dia, tinha acabado de dar entrada nas instalações clínicas um Retriever, um amigo canino pachorrento, carinhoso e com doses apreciáveis de loucura animal, apesar dos seus respeitáveis 15 anos de idade.

Tinha comido… Uma caneleira. Pois, um objecto de borracha do tamanho da mão de um humano adulto. O que fazer?

Visto que também este utente não defecou o estranho objecto que consumiu, que foi detectado bem inteiro dentro dele através de exames, tiveram que lhe abrir o estômago. Uma operação não especialmente perigosa, mas que seria preferível (embora impossível) evitar, neste cão já em fase geriátrica. Teve que ser.

Perante estes relatos, vêm à memória momentos vividos pela minha “Gááta”, que reúne a doidice imprevisível destes dois seres peludos e ainda a multiplica por dez ou vinte.

Num desses momentos de delírio, e numa época em que ainda não era tão evidente que, com ela, é preciso ter sempre três olhos, teve também o seu episódio plástico. O principal, não o único.

Na fracção de segundo em que o saco de lixo foi desenrolado e preparado para o seu uso natural, e sem que fosse possível impedi-lo, devorou a respectiva fita.

Seguiu-se um telefonema imediato para uma grande amiga e especialista em disparates felinos. Recomendou muita atenção nas horas e dias seguintes, a vómitos, dejectos, sintomas e comportamentos invulgares.

Nada aconteceu, e depois disso já foi vista pela Doutora milhares de vezes. Mas tornou-se evidente que ela e objectos de plástico (ou de metal, ou comprimidos de qualquer tipo) não podem coexistir no mesmo espaço…

A maioria dos gatos têm que ser obrigados a engolir os fármacos de que precisam. No caso da “Gááta”, os que ela tem que tomar são postos na palma da mão: Agarra-os, mastiga-os e come-os sofregamente.

E se a deixarem, faz o mesmo aos dos outros gatos, ou a algum que o dono esteja a tomar. Com felinos assim, todos os cuidados são poucos. O que para nós é inofensivo, para eles pode ter efeitos tóxicos ou mortais.

Cá em casa, plásticos, metais e comprimidos passaram a ser encerrados e vigiados 24 horas por dia.