Abrigar gatos de rua: Missão Cumprida

No segundo capítulo da saga, Angelina, a cientista que salva gatos e cães e alimentou dois pombos bebés, um deles desde o ovo, sofreu um revés.

Uma fonte de credibilidade não verificável contou que havia pessoas que eram contra os abrigos de gatos naquela rua.

Indivíduos que se dão ao trabalho de ir à Junta de Freguesia e às reuniões de Câmara protestar contra a existência destes equipamentos de protecção.

O ambíguo informador garantiu que os trabalhadores da Junta tinham ido ver o lugar e tencionavam actuar.

O administrador do prédio andou a tirar fotografias.

Angelina pediu ajuda ao Cronista Sem Abrigo.

Para resguardar esses anjos felinos dos maus olhados dos vizinhos sensíveis, havia duas coisas a fazer, no dia seguinte, às sete da manhã.

Uma, deitar fora arranhadores, estruturas de apoio e brincadeira felina, tudo o que pudesse ofender as vistas de tais zelosos moradores; limpar o chão do passeio.

Duas: Preservar unicamente o essencial – as casotas (antigas transportadoras ou “casas de banho domésticas de gatos”, aquelas de plástico que muita gente tem no lar) e transferir essas minúsculas habitações para localização mais discreta e a salvo de observações mal intencionadas.

Se bem se pensou, melhor se fez, essa quinta-feira, às sete da manhã.

Após esta tarefa, Angelina irá levar avante uma série de pequenas acções institucionais, propagandísticas e jurídicas a nível local, utilizando os seus conhecimentos legais e científicos.

Objectivo: continuar a proteger os gatos daquele largo, que já estão esterilizados.

Para já, Missão Cumprida.

A segunda vaga de estupidez

A segunda vaga de estupidez

Que um órgão de comunicação credível divulgue um estudo científico que refere a possibilidade de um cenário negro retinto para o Inverno não pode deixar de preocupar.

Que o Chefe da Máfia Governamental arraste o seu prestígio e o do país na lama, pintando assim a passadeira vermelha para aprendizes de fascistas, só pode estupefazer e consternar.

Mas há também uma segunda vaga de estupidez que nos contamina desde Março… de 2000 e picos.

Aquela mania de cérebros confinados, resistente a qualquer vacina.

Uma infecção mental que se subdividide por múltiplos sintomas.

Andar pelas ruas às quatro da manhã a conversar, com os decibéis vocais no máximo, como se fossem duas da tarde.

Fazer isso com o amigo do lado, ou para dentro do telemóvel.

Usar o Bluetooth e as colunas do carro para as conversas telefónicas que rebentam com os tímpanos de todo o bairro.

Espalhar ensurdecedoramente aquele ruído funesto e subterrâneo a que eles chamam música:

Com o venerado telemóvel, com a coluna, de meio palmo ou do tamanho de uma mochila, com o sistema de som do automóvel…

Promover tais actividades 24 horas por dia, em qualquer altura da jornada, da noite ou da madrugada, todos os dias da semana e do ano.

Aí está, isso sim, uma segunda vaga de estupidez que exige com premência actuação exemplar.

As férias da pandemia

Quando nos mandaram marcar as férias, a meio de Março, conseguia pensar em tudo menos nisso.

Coloquei três semanas soltas ao calhas, que depois tive que alterar várias vezes porque me esqueci de mandar o ficheiro, e tirei daí a ideia.

O início da semana de descanso foi estranhíssimo, como tudo é agora.

Fui duas vezes ao Sul da Margem Sul mandar tratar do carro, o arranjo custou os olhos da cara e foi porque estava sentado.

Fiz meia dúzia de caminhadas de quatro horas, rumo ao Cristo Rei, pela sua serra acima (o caminho inclui quatro longas subidas tipo “parede”), ou a caminho da Costa da Caparica.

Fui a um Festival de Cinema Brasileiro de graça, graças ao investimento público local, primeiro comunista e depois socialista, na cultura.

Estive com os meus pais num Parque Natural na Margem Sul, com distanciamento social e máscaras.

Tive uma ou outra jantarada, bastante enfeiramento na Feira do Livro, alguma copofonia e também a mistura de parte dessas actividades.

No antepenúltimo dia de férias, decidi que sete meses sem ir a um desses comuns cinemas, tipo shopping qualquer coisa, é muito tempo.

Ganhei coragem e fui ver dois filmes (excessivamente comerciais) no mesmo dia.

Era algo de que estava a precisar, muito, tal como destas “férias”.

Agora, o pré-pós-re-desconfinamento continua.

A cientista que salva os gatos

A Dona A. é uma querida.

Uma bióloga dos seus 50 e tal a 60 anos, com um pequeno e doce cão de 18.

A sua amiga ligeiramente mais nova tem o mesmo nome, um buldogue francês jovem e afectuoso, e não é menos simpática.

Foi A Dona A. que criou aqui os abrigos para os gatos de rua; dá-lhes comida, água, e nalguns casos até os trata.

Desde que mudei de casa para este lugar cheio de anjos ronronantes, aos quais dou comida que sobra dos meus e mais umas latinhas de Gourmet, que a Dona A., volta e meia, me pede ajuda para fazer a manutenção dos abrigos, melhorar e embelezar as instalações, pôr as coisas longe dos olhos de vizinhos intriguistas e mal-dispostos que fazem queixas.

A Dona A., grande conversadora, cientista um pouco céptica quanto à Ciência, é um poço de surpresas.

Ao longo da vida salvou, resgatou e ajudou vários animais.

Em tempos havia uma cadela que vivia numa varanda, pendurada numa trela, sem se conseguir mexer.

Foi dar com ela na rua, totalmente desorientada, e levou-a para uma quinta na província.

A bichita tem hoje 21 anos.

Expliquei à Dona A. que, graças a isto, tem um lugar no Céu.

E o meu apreço para todo o sempre.

Ela sorriu para ele na noite

Ela sorriu para ele na noite. Ele ouviu o sotaque cantado e não pôde deixar de falar com ela.

Ela trabalhou num call-center mas agora não tem emprego. Os sacos de comida da instituição de solidariedade que ele representa têm-lhe dado um jeito que nem se calcula.

Ela tem um curso de Direito e vai fazer um mestrado, tem uma filha em São Paulo que também quer estudar, Medicina, e já viveu em Londres, para onde pensa voltar.

Londres é uma cidade para trabalhar e ganhar a vida. Acolhe aqueles que trabalham e se esforçam.

Os avós são portugueses e ela realizava estudos de opinião para a Pitagórica, mas depois veio a COVID.

Critica a governação portuguesa e diz que é uma tristeza e uma aflição ver que tantas lojas e estabelecimentos fecharam as portas.

Há esperança e brilho no olhar dela. Sorri para ele, agradece muito pela comida, a oferta simbólica que é possível dar.

Guarda um segundo saco de alimentos para a amiga, que vem a pé, tem dificuldades em andar e nunca mais chega, embora os voluntários esperem e esperem.

Ele está de máscara, ela não. Agradece muito, faz aqueles gestos de inspiração oriental que as pessoas agora trocam, na falta de apertos de mão, abraços e afins.

Sorri para ele. Os olhos brilham. Ela vai-se embora. Mas fica o brilho do olhar.

Oito anos de amor sem limites

Sei sempre quando o meu tigrinho Jeremias está a comer.

É quando a “Gatinhaa!!” acorda, abre muito os olhos cintilantes que lhe iluminam o pêlo cor de azeviche e vai disparada para a cozinha, não para abordar o seu prato mas para atacar o do companheiro mais velho.

Quando me sento no sofá para ver um filme, a minha pantera negra move-se automaticamente. Vem amassar-me a barriga e, depois, ficar sobre as minhas pernas. Até eu me levantar.

Vou deitar-me e é igual. Massaja-me e fica, a noite toda, encostada e enrolada junto aos meus pés.

A Amélinha, seu nome oficial, tem muitas manias perigosas.

Uma das piores é a dos fios.

Andou a roer a extensão do rádio durante algum tempo…

Um dia ouvi uma barulheira terrível na sala. Fui ver e percebi tudo.

Apanhou um pequenino choque, sem consequências, tirando um susto de morte. A veterinária viu-a a seguir e estava tudo bem, embora ainda estivesse em pânico.

Aqui por casa não pode haver à vista fios, plásticos, metais, comprimidos e quaisquer objectos interessantes para esta bolinha de pêlo.

A minha bebé anda sempre metida nestas confusões.

É uma gata de vigilância permanente.

É também, com o seu ronronante Mestre Jeremias, o anjo que me acompanha, me ilumina, me ama, me mima e me acarinha todos os dias, todas as noites, todas as horas, desde há oito anos.

“Gatinhaa!!”, a minha existência faz sentido graças a ti.

Parabéns, fofinha.

Que vale a pena nesta passagem?

Sentou-se na esplanada do Nepalês frequentado em busca de comida, conforto e boa disposição, pousou a carteira e o telemóvel e ali ficou algumas horas.

Éramos três. O meu querido amigo-herói especialista em tecnologia e em ajudar pessoas.

A minha amiga que sabe conversar e ouvir como ninguém, e em casa de quem me senti como na minha desde os primeiros minutos.

E eu.

À frente do maravilhoso Caril Vegano do Base Camp, o melhor restaurante de Cacilhas, tudo aconteceu.

Naquele pátio secreto reservado aos clientes especiais, falámos da vida dele, da existência dela e dos meus dias.

Dialogámos sobre o Trump, o Bolsonaro, o Costa, o Marcelo, a Temido, a Freitas, o Santos.

Debatemos sobre a ciência, os factos, o jornalismo, a política, a anti-política, o populismo.

Havia mais de quatro meses que não nos víamos.

Aquele encontro foi um bálsamo que sarou os ferimentos dos nossos espíritos vulneráveis.

Foi um pedacinho de desconfinamento em que lavámos as nossas almas ao expôr o nosso eu.

Desabafámos tudo, vingámos as pequenas e grandes mágoas.

Não se dormiu muito em tal noite, nem essa era a ideia.

Horas mais tarde, a alvorada trouxe-nos a um novo dia.

Curados e reforçados.

Prontos para nova jornada de combate confinado.

Só se vive uma vez.

Que seja com amor, amizade, boa comida, boa cerveja, boa conversa.

Que mais vale a pena nesta passagem?

Mistérios da natureza animal e humana

A nossa relação tem vindo a atingir a perfeição ao longo dos anos.

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“Gatinhaa!!” não é menos preciosa que o meu braço ou outra parte de mim. Jeremias, O Gato, aprofundou a conexão do seu cérebro com a minha mente durante esta década. E mais ainda em tempos pandémicos.

A verdade é que passamos 24 horas por dia juntos.

E se me preocupo com a frágil saúde da minha bonequinha cor de azeviche e de olhos cintilantes que me veneram, com este sólido tigre de 13 anos não é diferente.

Os seus apetites, as suas indisposições e a sua idade também me deixam em alerta permanente.

Idolatro a minha pequenina de sete anos e o meu pensamento está o tempo todo virado para o sénior lindo e carinhoso que segue cada um dos meus movimentos como uma sombra.

De modo que o lince listado cujo mundo gira à minha volta quase que sente os meus pensamentos e as minhas acções antes de acontecerem.

A minha mãe explicou-me que isto é natural com pessoas e animais que passam a vida juntos durante muito tempo.

Quando estou a planear levantar-me para ir almoçar, parece que antes de ter essa decisão totalmente formulada pelas minhas sinapses neuronais já ele está a levantar-se de cima do sofá junto à luminosa janela que prefere, a miar e a dizer-me: “Vá, humano, vai lá e eu faço-te companhia”.

Começo a pensar: “Jeremias, estás aí parado há tanto tempo, está tudo bem?”. Levanta-se, mia e vai comer uns grãos de ração.

Digo para mim que já estou sentado há muito e quero ir esticar as pernas. Desenrola-se e aparece junto a mim como que por milagre, olhando-me, conversando comigo e dizendo: “Bora. Vamos mexer-nos um bocado!”.

São assim os mistérios da natureza animal e humana.

Desconfinei-me

Ganhei coragem para ir rapar o cabelo com um super-desconto ao fim do dia.

Aproveitei a onda e, na curta viagem de um dia de semana à noite, passei por Cacilhas, onde a situação parece quase normal.

Restaurantes de carne, peixe e produtos de origem animal não me interessam. Não, não, deixem lá isso.

Ao fim da subida, de frente para a farmácia, a estação de serviço e os bombeiros, perto do Centro de Cultura Libertária, situa-se a PZA Pizzeria Romana Alla Pala.

Roubo a carta.

Há uma pizza vegana Large de 12 euros com cogumelos e uma infinidade de componentes oriundos do reino vegetal. Há vinho e imperial.

Há uma moça brasileira andando pela esplanada de máscara.

Nas mesas ao ar livre estou desmascarado mas ela aproxima-se, com os olhos a cintilar por cima da protecção de tecido.

Explica-me todos os detalhes e aceita o pedido estritamente vegetariano.

Talvez tenha sido morto pelo vírus da felicidade e já esteja a ser recebido por São Pedro. Ouvem-se acordes suaves e melódicos algures no horizonte.

A pizza vem em tábua de madeira e alimentaria bem uma família faminta de 4 ou 5 pessoas.

Devoro até à última migalha. A tábua escapa.

No fim oferecem o italiano licor Limoncello, mas da marca portuguesa Limontejo.

Os dez minutos a andar até casa não digerem nem meia fatia…

A caminho do pós-redesconfinamento

Triunfámos na era do desconfinamento e sentimos o amargo sabor da derrota na época da desconfinação.

Não sabemos ainda como será a Grande Final do Pós-redesconfinamento.

Atacar os ocupantes etários do mundo dos 13-25 anos de idade não será certamente solução milagrosa alguma.

Pode exigir-se a essa malta de boa índole e sangue na guelra, que aceitou enclausurar-se por quatro meses, que, no estio das paixões, continue sempre entre quatro paredes?

Não será por aí que iremos reconciliar-nos, e curar-nos.

Temos outra preocupação.

Assalariados pobres, aos grossos milhares, que não contam com tais burguesias de poder laborar em casa.

São deles, à força, os transportes apinhados e sem condições, as casas pequenas como formigueiros e pouco salubres, a sujidade dos escritórios e das ruas que têm que limpar, o cimento e os baldes de massa que carregam todos os dias.

Para que privilegiados pudessem telétrabalhar, andaram e andam estes operários e trabalhadoras nas ruas e nos transportes, acumulados e acotovelados.

Olhe-se para o drama destas Pessoas e pense-se ainda em formas de explicar este tempo dificílimo e complexo aos mais moços e fazê-los sentir e viver essa preocupação.

Os caminhos serão por aí.