“Vai repetir-se”

Os soldados turcos aproximavam-se a pouco e pouco. Todos os dias avançavam uns passos, sem pressas, percebendo pelos raros tiros dos cristãos que as suas munições se estavam a findar. Sabiam que além de algum pedaço de pão já nada tinham para comer. Haviam-nos cercado por completo, não deixando passar homens nem animais”.

Largas centenas de soldados turcos, bem alimentados e armados, preparavam-se para massacrar menos de dez habitantes de Creta que lutavam contra o domínio turco na ilha, no final do século XIX, e pouco depois disso mataram-nos sem dificuldades.

Ao longo desse século, muitas foram as lutas e rivalidades entre os turcos, muçulmanos, e os cretenses, cristãos, sem que estes nunca aceitassem definitivamente o poder da Turquia. Um pouco dessa história é descrito em Liberdade ou Morte, obra irresistível de Nikos Kazantzakis que revela a vida da população da ilha.

Turcos e cretenses que ora estão em guerra ora em paz, mas sempre influenciados pelo ódio de morte entre os dois povos. Há um cristão casado que se apaixona por uma turca, o que o leva a odiar-se a si próprio.

Quando os tambores da guerra começam a rufar intensamente, os turcos raptam a mulher, porque ia casar com um outro cristão e converter-se. Por ela, o capitão que não queria amá-la abandona um convento cristão à sua sorte perante as tropas turcas, que o incendeiam, e nunca se perdoará por isso.

Comandará o último grupo, de menos de uma dezena, que lutará até ao fim para não se submeter aos turcos: Liberdade ou Morte.

Nos últimos 20 anos, os mais optimistas poderiam acreditar que não voltaria a haver grandes guerras no mundo ocidental…

No outro dia, em conversa com um amigo simpático, amável e inteligente que acabara de conhecer, este contou-me uma coisa. Tinha visto um bom documentário sobre Hitler, e achava extremamente interessante a forma como o ditador tinha chegado ao poder… Eleito.

Na opinião dele, as pessoas hoje em dia não estão verdadeiramente a par, nem se interessam muito, pelo que aconteceu na História da Europa nos últimos dois séculos. E isso é um grande problema, porque, mais tarde ou mais cedo, “a História vai repetir-se”.

Calor sentimental

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Nem eram oito da noite e a vaga de frio estava no auge. Tinha acabado de jantar uma banana, um copo de sumo e tratar da medicação nocturna. Lá ao fundo, na cama do quarto, ouço chamar insistentemente por mim. “Já vai, espera um bocadinho…”, respondi docemente.

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Ainda fui à sala, cinco minutos, ver a paisagem da janela e observar os peões enregelados a tentar fugir do frio. Quando voltei, passado um bocadinho, já não chamava por mim. Encontrava-se enfiada debaixo do édredão e dos dois cobertores bem quentes, no quarto, que fora aquecido durante meia hora para se tornar mais habitável até a manhã chegar.

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Enfiei-me, também eu, lá dentro, lembrando-me que na noite anterior, quando chegara a casa, já estava bem aconchegadinha debaixo dos lençóis, aguardando.

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Instalei-me e deixei que a Matildinha – e, alternadamente, o Jeremias e a Amélinha, a “Gááta!!” – se enrolassem prazerosa e ansiosamente em mim, enquanto o Chiquinho reinava superiormente, senhor do humano e dos seus domínios, sobre o meu corpo e as minhas mantas.

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Houve alturas em que me virei ao contrário, mas a minha Matildinha não considerou que isso fosse aceitável. Agarrou-se às minhas costas, às minhas ancas, fincou as patinhas, arrastou-se e passou para o outro lado. Para a minha princesinha, não faz qualquer sentido que eu durma sem que ela esteja bem encostadinha, em conchinha comigo.

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É mais ou menos como a Amélinha, a “Gááta!!”. Não vê como minimamente razoável que eu fique mais de 30 segundos à secretária, a trabalhar no computador, sem ela deitada sobre as minhas pernas.

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Ao Jeremias e ao Chiquinho não lhes parece bem, igualmente, que eu decida almoçar, jantar ou ler um ou dois minutos na cadeira da cozinha sem eles lá aninhados ao meu colo. O que não deixa de causar situações embaraçosas.

Acontece a “Gááta” estar nesses cinco centímetros quadrados do meu corpo quando estou a trabalhar… Vem o Chiquinho e tenta meter-se em cima dela, querendo também usufruir da mesma proximidade e calor humano.

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Ou então, estou sentado e a Gááta começa a fazer aqueles sons carinhosos que enterneceriam uma pedra tumular. E salta para cima dos meus ombros, enquanto tomo o pequeno-almoço, vejo os meus mails ou escrevo um texto…

Quase todos os anos, falam em vagas de frio e descidas abruptas da temperatura atmosférica, mas eu não acredito nisso. Aqui em casa, não há frio. O que não falta é calor sentimental!

Um gato de rua chamado Bob

Era um homem perdido na vida, a tentar enterrar definitivamente no passado as drogas e a rua, numa existência triste e sem propósito. Um belo dia, aparece-lhe à porta um gato laranja, simpático e charmoso mas em fracas condições físicas.

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O jovem acolhe-o, trata-o, consegue pô-lo completamente saudável, apesar de mal ter dinheiro para comer. A partir daqui começa a entrar num dilema. Percebe que o animal gosta dele, mas… Ele, um ex-toxicodependente em recuperação, a viver num apartamento fornecido pela segurança social, não considera ter condições para dar uma vida decente a este felino, que busca abrigo, amor e companhia.

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J B acredita que é melhor para o patudo, depois de devidamente recuperado, regressar ao que lhe parece ser o seu elemento natural, a rua. Nos dias seguintes, sempre que sai de casa para ir tentar ganhar umas moedas junto às estações de metro com a sua guitarra, deixa-o fora, para que esse processo possa acontecer.

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O pequeno mostra-se triste e revoltado, e volta sempre para ele e para o seu apartamento. Um dia, quando J se dirige para o seu local de trabalho de artista de rua, dá com o amiguinho ao lado, a preparar-se, como ele, para atravessar uma das artérias mais perigosas da cidade, com o objectivo de ir com ele e acompanhá-lo.

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É a partir deste episódio que J começa, muito lentamente, a perceber. O gatinho sábio e carinhoso escolheu-o, quer ser dele. Nos tempos que se seguem, sucedem muitas aventuras aos dois artistas de rua, homem e gato, e nalgumas delas o doce companheiro chega a estar em risco de vida.

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A verdade é que, ao longo dos meses, é ele que salva o dono. J passa a ser responsável pela vida, felicidade e bem estar de alguém que o ama, venera, acompanha e guia pela existência. Será obrigado a encontrar um modo de vida mais estável e menos à margem da sociedade.

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Terá que assegurar um rendimento que lhe dê estabilidade e lhe permita estar em boas condições de saúde, capaz de fornecer um quotidiano viável e decente ao seu amigo peludo. E deixar de vez a metadona, entrar a sério no mundo dos que já não precisam de drogas ou substitutos para nada. Tudo isso, e muito mais, ele faz, graças ao seu companheiro.

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A street cat named Bob, Um gato de rua chamado Bob, é uma história verídica e maravilhosa. Quem for a Londres pode ter a possibilidade de encontrar James Bowen e o seu gato, Bob. J B deixou de tocar na rua e passou a vender na cidade a Big Issue, a revista dos cidadãos sem abrigo, na qual se inspirou meritoriamente a revista portuguesa Cais .

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Um livro (que até agora já vai numa colecção de cinco, com as restantes aventuras deste par inspirador) e um filme (com o mesmo nome do livro) a não perder!

A recuperação de Matilde

A segunda visita não foi tão descontraída como a primeira. Não a apanhei ainda na marquesa, a acabar de fazer o tratamento da noite, disponível para ser abraçada e ficar encostada a mim recebendo o meu carinho. Estava no seu espaço próprio, com menos mobilidade, a fazer soro.

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Deitava-se sobre a minha mão e pedia-me carinho, que recebeu durante o espaço de uma hora em que estive lá. Vim para casa, sabendo que estava nas mãos da melhor médica do mundo, e que já só faltava um dia.

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Sábado à noite fui buscá-la. Sabia que ainda iam ter que dar-lhe mais medicação e afastá-la de mim um bocadinho, antes de poder finalmente levá-la.

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Sentei-me ao lado dela, conversando com ela, e não mostrando uma proximidade tão grande que a levasse a pensar que iria sair dali logo nos minutos seguintes, ou que eu estaria a ir-me embora quando a deixasse aos cuidados da doutora para os últimos tratamentos.

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Mas depois de uma pequena espera, pude, finalmente, fazer a viagem de 15 minutos com ela para casa. Quando chegou, saltou agilmente para cima da minha cama, mostrando que esta intervenção cirúrgica tinha sido muito mais simples do que a de há um ano e dois meses.

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Decidi que neste primeiro dia iríamos passar a noite juntos e sozinhos. Tinha medo que o resto do pessoal cá de casa a incomodasse, depois do que pareceu uma longa ausência que quebrava e punha em causa todas as rotinas do dia-a-dia.

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Mas também porque queria ficar essas horas encostado a ela, ouvindo a sua respiração gentil e reconfortando-a. No dia seguinte, de manhã, quando os outros ainda estavam meio adormecidos, resolvi promover logo a reaproximação.

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O Chiquinho, que, em alturas normais, passa o tempo a persegui-la, cheirou a Matilde e deu-lhe as boas vindas. O Jeremias fez o mesmo. Só a Amélinha, a “Gáata!!”, é que demorou uns dias a aceitar de novo a sua companheira de brincadeiras e tardes passadas enroscadas uma na outra a aquecerem-se. Mas depois do receio e surpresa inicial, isso passou-lhe.

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Houve mais alguns percalços. Após esta segunda operação, agora apenas para retirar um pequeno nódulo, a minha princesinha não queria tomar a medicação com a comida, a única forma que, ao longo dos anos, consegui desenvolver com sucesso para medicá-la.

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Ao segundo dia, voltei a usar a técnica mais íntima e personalizada, a que recorro em casos de muita falta de vontade da parte dela, e que, no dia anterior, não resultara. Dar-lhe a comida com medicação à colherada. Nesta segunda tentativa correu bem, e nas seguintes também.

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Andava, igualmente, com falta de apetite. A minha querida doutora deu-lhe um comprimido para isso; Abri um novo saco de comida – com o cheiro intenso da alimentação acabada de estrear – e tudo se encaminhou.

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O fármaco que a doutora lhe prescreveu teve o efeito secundário de a tornar muito, muito mais faladora. Toda essa conversação aparentou, desde o início, ser uma forma de mostrar que precisava ainda mais de carinho do que o habitual.

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Queria ser mimada… De minuto a minuto. Enquanto aquecia o almoço, sentei-me no chão. A minha Matildinha saltou para o meu colo, amassou-me e ficou a ronronar durante quinze minutos enquanto a acariciava.

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O seu grande rival no meu coração, o Chiquinho, nem pestanejou. Ao longo da semana, sempre mostrou compreender perfeitamente aquilo que a sua amiga, com quem me disputa todos os dias, estava a passar.

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Vai até perto dela, cheira-a, dá-lhe umas lambidelas e mostra-lhe a sua solidariedade, que ela, alguns momentos depois, percebe que é pacífica e bem intencionada.

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Enquanto desejo intensamente que a minha top-model de fatinho cor-de-rosa se tenha visto livre para sempre da doença que a atacou, ela vai permanecendo longas temporadas nos lugares que associa ao conforto e à segurança.

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A sua caminha… E os arranhadores que a sua mamã, a minha ex-mulher, lhe trouxe dedicada e carinhosamente de Inglaterra no Natal. E que têm sido um enorme sucesso cá em casa. Servem aos habitantes daqui de cadeira, ginásio, brinquedo e fonte inesgotável de bolas de cartão que lhes arrancam e com as quais depois jogam incessantemente, mordiscando-as e pontapeando-as no soalho de madeira.

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Bem vinda, Matilde, a gatinha mais fofa, doce e querida que alguém poderia conhecer!

Não precisamos de palavras

Abracei-me a ela e ficámos assim, durante uma hora, trocando beijinhos e carinhos, sem precisar de uma palavra. Não nos víamos desde as oito da manhã, quando a deixei aos cuidados da melhor médica que já conheci, para que lhe extraísse um nódulo do peito.

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Isto para ela não é novidade: Já tinha acontecido há um ano e dois meses, mas dessa vez fora mais complicado. Tinha muita coisa para ser retirada de dentro dela. Foi uma cirurgia profunda, e a recuperação demorou algum tempo, especialmente no campo psicológico.

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Mas algumas semanas depois, a Matilde não apenas voltou ao normal, como se revelou, para sempre, ainda muito mais carinhosa e agradecida, por todos os cuidados, atenções e dedicação que recebeu a seguir à operação, nos dias que decorreram mais tarde e actualmente, a todas as horas e minutos.

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Quando dormimos juntos e sozinhos nessa noite, mostrou a devoção e gratidão que tinha crescido dentro dela, e continua a fazê-lo constantemente.

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É curiosa a percepção psicológica destes seres que comigo habitam. Se o Chiquinho passa o tempo a meter-se com ela e a incomodá-la, o que é facto é que no dia que antecedeu a intervenção, não foi irritá-la uma única vez, declarando tréguas de apoio e compreensão sensata e omnisciente. Estiveram até os dois deitados juntos, encostados um ao outro, horas, sem que nada perturbasse essa paz.

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Se os telefonemas e visitas à clínica tranquilizam, bem como o facto de estar nas mãos da melhor médica que existe neste hemisfério e no outro, algo se evidencia no coração, a cada instante.

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A vontade de trazê-la de volta, muito brevemente, para tê-la junto a mim, ao meu lado, seguindo-me regularmente, sublinhando que me adora, que confia em mim, que sabe que darei sempre o melhor de mim para que esteja bem, feliz e tranquila. Mal podemos esperar!

O loiro e o resto dele

Cruza-se comigo, com o ar de quem vive num mundo que não é o meu. Loiro, cabelo curto, idade e estilo indefinidos.

O resto deste ente misterioso deve pesar uns três quilos, é completamente cinzento e nunca se descola dele. Esta entidade composta de dois seres vive do outro lado da rua. As duas metades, humana e canina, são inseparáveis.

Num desses dias em que nos encontrávamos no passeio, eu com o jornal debaixo do braço e ele com as quatro patas a deslocar-se orgulhosamente à sua frente, decidi estabelecer um tímido contacto com a parte saltitante deste duo.

O normal seria uma palavra amiga, enquanto a mão é dada a cheirar, mas não houve tempo para tanto. Bastou-me olhar para aquele minorca cinzento que parece um bonequinho animado, e nem cheguei a abrir a boca.

Só de ver-me contemplá-lo, este temível protector, que mede uns dez a quinze centímetros, desatou imediatamente a ladrar para mim. A partir daí, os nossos encontros mantiveram-se diários mas passaram a ser bastante mais distantes.

Não voltei a abusar da confiança que não me foi dada por este pequeno animal de bom coração e feitio pouco recomendável.

Olho para os dois ao longe, homem e cão. Já vi este homo sapiens sapiens ralhar aqui e ali com o seu canídeo, tal como faço com os meus felídeos quando calha e quando tem que ser. Mas sempre me pareceu que ele o fazia por alguma razão necessária.

Penso neles, o loiro de um metro e setenta, e o grisalho de quinze centímetros. Quer-me parecer que, com ou sem o mau feitio, cada um deles não tinha problemas nenhuns em dar a vida para que o outro pudesse ser feliz.

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Da mesma maneira me parece que dificilmente podiam viver um sem o outro. Quando sinto à volta deles aquele amor que não se explica, e penso na existência de carinho que se vive aqui em casa, comigo, a Amélinha (a “Gááta!”, o seu verdadeiro nome), o Chiquinho, o Jeremias e a Matilde, sinto que tudo no mundo faz sentido.

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Fui agredido pelas velhinhas soaristas

Passeava pelo Barreiro, no início da década de 1990, na companhia do meu grande e melhor amigo, como habitualmente… Os ferrenhos comunistas da cidade operária e os socialistas que também por lá havia andavam de ânimos acesos, na segunda campanha presidencial de Mário Soares.

Embora a cidade ainda pertencesse ao PCP sem grande margem para dúvidas, o que é facto é que quando o presidente socialista em tentativa de reeleição lá apareceu, foi a loucura, depois de um primeiro mandato em que conquistou as inimizades da praxe mas também, ao mesmo tempo, um sólido culto nacional que o levou a ser reeleito confortavelmente.

Ou seja, mesmo com inúmeros detractores da sua figura, o Barreiro estava em festa, e os muitos e sonoros apoiantes vieram todos para a rua. A comitiva passou por nós num bonito e invejável Audi escuro e reluzente. Com menos de 20 anos, não tinha uma noção realista do papel que este político desempenhara na segunda metade do século XX.

Ingénuo e contestatário, achei que havia por ali muita ostentação. Tive a infeliz ideia de gritar “chulo”, e mais qualquer coisa pior. As gentis, determinadas e muito socialistas velhinhas que militavam no Movimento de Apoio a Soares Presidente (MASP) não deixaram a defesa do seu Chefe de Estado por mãos alheias. Levei com os paus das bandeirinhas do MASP na cabeça, e retirámo-nos estrategicamente.

Durante as presidências abertas, figura que ele inventou para estar mais próximo do povo, fazendo a vida difícil a Cavaco Silva, primeiro-ministro totalmente de direita que não fez nada de especial pela democracia mas ajudou muitos amigos a enriquecer, deslocou-se ao Barreiro.

Mini-jornalista local jovem e inexperiente, recordei-lhe uma crítica de Pacheco Pereira, que, ao contrário do que acontece hoje, na época ainda podia considerar-se de direita. Soares despediu-me com uma frase qualquer que queria significar que aquilo não tinha importância nenhuma.

Estudei, em notícias, artigos, perfis e entrevistas, a vida d’“O Bochechas”, e das várias figuras políticas que marcaram a nossa vida, da década de 1970 à década de 1990, período em que se consolidou a nossa democracia.

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O homem que foi Ministro dos Negócios Estrangeiros, primeiro-ministro (repetidamente) e Presidente (ídem) foi um dos últimos grande políticos portugueses, com Francisco Sá Carneiro, Álvaro Cunhal, Adelino Amaro da Costa e Adriano Moreira.

Houve um conjunto de homens, de uma fibra muito própria, que arriscaram a sua vida e tudo o mais para deixarem para trás as brumas obscuras do fascismo e colocar de pé em Portugal um sistema político diferente: Onde existisse democracia e liberdade. Soares foi um deles.

Depois, participou activa, convicta e corajosamente na consolidação desse sistema. Não deixou que os comunistas transformassem a nação em mais um país satélite da União Soviética, um estado de inspiração estalinista. Não permitiu que os militares tornassem Portugal um regime militar anti-democrático de teor altamente duvidoso.

Há quem diga que Salazar era um grande estadista e economista. Como, se milhares morriam de fome ou na prisão, por não concordarem com isso? Há quem tenha ficado ressabiado com a descolonização. Que outra descolonização era possível fazer, quando a colonização se prolongou no tempo, até ao impossível e impensável? Como e com que meios?

Um regime fascista cego e parado no tempo, e os excessos da revolução, como as nacionalizações, levaram o país à bancarrota, que foi o que Soares enfrentou quando chegou ao poder.

Além de nos afastar da sovietização e da militarização, conseguiu, com a sua habilidade diplomática, a ajuda externa de que o país precisava para não mergulhar no caos. Empurrou-nos para dentro da Europa e da Comunidade Económica Europeia, para que não fôssemos um calhau perdido no Oceano.

Governou como pôde, e não parece que fosse nada fácil fazer melhor. Era um homem, que tinha defeitos e cometia erros como todos os homens, e esteve tanto tempo em funções de alta responsabilidade que impossível seria não errar, e bem à vista de todos. Para mim, que sou eleitor do partido Pessoas Animais Natureza, foi o último grande político do século XX.

Quando eu andei nas obras

Não sabia se ia entrar para a universidade, tinha muito tempo livre e pouco dinheiro. Já não sei bem como aconteceu aquilo, mas falei com alguém que falou com alguém, pus-me num sítio à espera de uma carrinha e fui à Siderurgia Nacional (SN) pedir trabalho – nas obras – para uns meses.

Havia trabalho, e não era mal pago. Um servente de pedreiro, ali, há 25 anos, ganhava 70 contos: 350 euros. Dava para juntar uns cobres para os primeiros tempos do curso, porque também ainda não sabia se ia ter bolsa.

A SN, naquela época, era um antro de droga e loucura. As conversas ao almoço variavam entre charros, cocaína, heroína e sexo oral. Não suportava o tipo que, 25 horas por dia, falava das raparigas com quem tinha tido sexo, onde e como, porque nunca gostei de tais conversas chauvinistas.

De vez em quando olhava-se para alguém e percebia-se que já estava pedrado outra vez. Muita daquela gente já não existe, de certeza. O Estrela, por exemplo. Era um homem simpático e afável, e um farrapo humano sempre à espera de meter mais alguma coisa para dentro.

Eu, que percebo tanto de enrolar cigarros ou afins como de motores de aviões, às vezes lá o ajudava a fazer a ganza que ele ia fumar, porque o Estrela já nem isso conseguia fazer – mas trabalhava nas obras.

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E as obras, na SN, tínham dias… Uma coisa acontecia sempre: Se alguém tinha o relógio ligeiramente adiantado e estava para se ir embora, o encarregado, um quase corcunda de metro e meio que tinha a força de um burro e um carregado sotaque que eu não conseguia localizar, gritava de imediato: “Faltam dois mêniúutos!!!”.

Mas o trabalho, esse, variava. Passei a primeira semana a fazer amizade com outro moço igualmente simpático e comunicativo – que estava sempre ganzado – e a varrer a mesma sala. Mas, na semana seguinte, vieram as valas para abrir, a poder de pá e picareta, os baldes de massa e os sacos de cinquenta quilos de cimento para carregar.

A coisa era de tal ordem que até acontecia aquele gesto natural de lembrar algo inesperado e dar uma estalada na testa – mas corria mal, porque a mão já estava ferida e cheia de bolhas.

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Quando chegava à Quinta da Lomba, fazia a rua principal a pé, exausto e imundo dos pés à cabeça.

Nesses momentos de curta caminhada, empoeirado e mal cheiroso, percebia quem eram as pessoas que me interessavam na vida, e as outras. As que me interessavam eram as que me cumprimentavam, de aperto na mão ou beijo na cara, com a alegria e a simpatia de sempre. As outras eram as que olhavam para mim espantadas e mudavam subitamente de passeio.

“Na rua tenho muito mais liberdade sexual”

Ébrio e conversador, o homem afirma que os voluntários que apoiam quem dorme ao relento nem sempre se preocupam o suficiente com estes seres humanos que sobrevivem nas franjas da sociedade. Uma das mulheres do grupo pergunta-lhe se ele não gostaria de sair da rua.

Num raciocínio bastante elaborado e determinado, este explica-lhe que, residindo na calçada, é dono da sua própria vida. Torcendo o nariz a um processo de reinserção social, esclarece que as normas e as regras são a mesma coisa, e que nem umas nem outras lhe agradam. Compara a vida numa comunidade de reinserção com a de alguém que está num quarto alugado, e com a de uma pessoa sem abrigo.

Numa comunidade ou num quarto alugado, comenta que não existe, por exemplo, liberdade sexual… “A senhora, se estiver a ter uma relação com o seu marido, não sabe se a pessoa que está no quarto alugado está ou não a ouvir tudo. E não faz sentido, a meio desse momento íntimo, a pessoa que está no quarto ir ter convosco e dizer: ‘Olhem, por acaso não têm um copo de água?’. Em contrapartida, eu, aqui na rua, quantas vezes já não aconteceu trazer aqui uma mulher e estar com ela… Eu consigo controlar perfeitamente se passa ou não alguém, tenho um controlo maior sobre a minha vida”.

Insiste obstinadamente neste ponto. Respondem-lhe que ainda há muitas pessoas a visitar nesta noite, e no próximo encontro continuar-se-á a conversa.

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Numa zona mais central da cidade, o homem que sabe sempre quantas pessoas, quais e em que pontos estão a dormir nas ruas à sua volta está aborrecido. “Isto é que são horas?! A esta hora não vale a pena, já não têm ninguém com quem falar aqui!”.

Apontamos que o percurso aumentou bastante, para que se consiga chegar a mais lugares, e a consequência traduz-se em atrasos. O esclarecimento não o satisfaz. Passado algum tempo, deseja-nos uma boa noite e um óptimo ano.

No centro comercial cosmopolita à entrada da capital, é descoberta uma mulher a inclinar sozinha, com os seus braços magros e doentios, um pesado contentor de lixo com restos de alimentos dos restaurantes que ali têm a sua actividade. Aceita a nossa comida e fala um pouco. Vive não longe dali, não tem dinheiro, tem familiares com doenças graves que precisam dela e ela própria está também em péssimo estado.

Foi agredida por um toxicodependente que lhe deixou o rosto num estado lastimável. Já foi atendida num hospital mas precisa de ajuda e trabalho e é encaminhada para o Espaço Aberto ao Diálogo da Comunidade Vida e Paz, onde os técnicos da área da assistência social e reinserção poderão oferecer-lhe um apoio mais especializado.

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Quase ao fim da noite, vamos ao encontro do senhor dos beijinhos, homem particularmente afectuoso com as voluntárias. Aparentemente de origens africanas, vive em Portugal há vários anos e está a procurar um caminho para a sua vida.

Anda a receber formação na área da panificação, pastelaria e cozinha. Diz que, para quem já tem alguma experiência nessas tarefas, voltar à escola e misturar a teoria com a prática se torna muito mais fácil. Lá para a Primavera, espera ter os cursos concluídos e dar um novo passo em frente.

O  casal que arruma carros no centro da cidade está agora a viver a alguma distância dali, debaixo de um pequenino e frágil rectângulo de cartão. Ela ouve-nos e surge, alegre com a nossa presença, com o seu pijama de meia estação. Uma voluntária oferece-lhe um casaco de Inverno bem quente e mais umas quantas peças de roupa.

Fica satisfeita. “Vou trabalhar uns dias num sítio muito frio, isto vai dar-me jeito!”. Apanhados a meio do sono, discutem um pouco entre si mas agradecem muito a visita dos voluntários.

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Em cinco horas são contactadas mais de 70 pessoas, que recebem um saco de comida entre dois dedos de conversa. Amanhã não serão estes os voluntários, já que se revezam quinzenalmente, mas estarão, como nos outros 364 dias do ano, quatro equipas da Comunidade Vida e Paz na rua, tentando levar um pouco de esperança e mudança a quem dela precisa.

 

Foto Principal: António Gomes

44 anos, desempregada

Foi a pessoa por quem mais senti amizade e fraternidade no Instituto de Ciências Sociais e Políticas, o feudo dos fachos, uma faculdade onde muito poucos não eram betos, arrogantes e pretensiosos.

C esteve, depois, comigo na RTP, e também no jornal Fórum Estudante, de que fui editor durante três anos, por sua intervenção indirecta: Foi quem me levou para lá inicialmente.

Costumamos conversar com alguns meses ou anos de intervalo, pelo telefone, por mensagens, no Facebook ou quando nos encontramos por acidente na rua. Agora tem duas filhas, uma já está a estudar no Algarve, outra é mais novita.

C tem menos um ano que eu. Há umas semanas, ligou-me a pedir conselhos e ideias. Aos 44 anos, despediu-se. A cara-metade ganha pouco e tem um trabalho precário, e, pois é, têm duas filhas.

C estava naquela empresa havia mais tempo que eu na minha, quando fui alvo de reestruturação e enviado para as filas do Instituto do Emprego. Ficou por lá mais de 14 anos, foi quase o único trabalho estável e formal que teve na vida.

Agora já chegava. Não só o trabalho era pouco interessante e estimulante, mas também o ambiente se tornara execrável e insuportável. Andava toda a gente a discutir, aos gritos, o tempo todo, naquela pequena organização.

C já não aguentava e veio-se embora. Sem indemnização. Com direito a um magro subsídio de desemprego, pouco acima do salário mínimo, já que ganhava mal que se fartava. Diz-me que, no seu casal mal pago e com duas filhas estudantes, conseguiu poupar para seis meses.

Haverá quem pense que não tem juízo, ao colocar-se nesta situação nesta altura da vida. Não teria coragem para fazer o mesmo. Mas, após ouvir C, os seus anseios, os seus medos e as suas convicções durante uma hora, percebi, ou lembrei-me: Uma coisa é mais que certa.

Quando a hora chega, ela chega. Quando está na altura de virar costas, deixar para trás, correr todos os riscos e abandonar tudo aquilo que nos está a fazer mal, não podemos deixar de ouvir essa canção.

É a voz do futuro, o som do destino. E quando sabemos que esse rumor é mais forte e mais acertado do que qualquer outro eco dentro de nós, só há uma coisa a fazer.