A minha vida vista de fora

Saí e fui passeando preguiçosamente até à bomba de gasolina, onde comprei o jornal. Voltei no mesmo passo lânguido, absorvendo os raios de sol da manhã.

Antes de chegar à minha rua, passei pela artéria que fica uns metros acima, por trás, onde reside um pequeno palacete utilizado por alguma entidade pública.

Sempre tive curiosidade relativamente a este lugar, que vejo quando estou à janela da minha cozinha. À primeira tentativa, só atinjo vislumbres longínquos do meu prédio.

Dou a volta, pelo outro lado, ficando na parte de trás do palacete… Ali está a janela da minha cozinha, poucos metros mais abaixo.

Lá dentro, o meu doce Chiquinho, o meu enérgico Jeremias e a minha meiga Matildinha descansam do seu dia-a-dia agitado e difícil. Amélinha, a ternurenta “Gááta!!”, faz o mesmo, oculta e protegida sobre o armário da cozinha.

Fico fascinado a olhar para eles durante bastante tempo. Dou a volta, torno a entrar no prédio.

O meu vizinho de cima vem meter conversa comigo. Faz hemodiálise regularmente, teve uma doença no coração, tiveram que o abrir e coser e a mulher sofre de cancro.

Foi operada, retiraram tudo e está a recuperar devagarinho. A doença atingiu-lhe as pernas e já consegue deslocar-se cuidadosamente em casa, mas na rua ainda não.

O marido pede-me para não ouvir as notícias do Mundo, alto e fora de horas. Sim, claro que sim, respondo, procurando um buraco no chão onde me possa enfiar e desaparecer.

Mas continuo a pensar na janela da minha cozinha. A minha vida vista de fora.

Estou desempregado há 15 meses. Há um mês decidi não continuar a procurar trabalho na minha área, onde ele não existe. Comecei a concorrer a call centers.

Entro nos de 500 euros sem problemas, nos de 800 euros ainda não consegui.

Num processo de recrutamento passei em todas as provas em inglês – entrevista inicial, entrevisa colectiva, simulação de chamada, testes de gramática, testes técnicos – mas não na entrevista final, profunda, longa e intrusiva.

Num outro processo, foi mais ou menos a mesma coisa.

Continuo a ler e ouvir na língua inglesa, intensamente, dia e noite. Continuo a percorrer laboriosamente oito sites de procura de emprego todos os dias.

Continuo a viver a minha vida, sem saber como vou estar daqui a 11 meses. Continuo a conversar quinzenalmente com pessoas que vivem na rua.

Ao contrário de mim não têm tecto, comida, família, roupa, nada.

Continuo sem saber o que vai suceder daqui a um ano, um mês, uma semana, um minuto. Como todos nós, no fundo.

Chiquinho, um gato especial

É um ser que se alimenta mais de amor, carinho e atenção do que propriamente de comida ou bebida.

Foi assim há sete anos, quando me saltou para o colo pela primeira vez e tomou posse de mim.

Era assim quando saía para ir trabalhar, ele ficava sozinho em casa 48 horas e, quando chegava, preferia vir amassar-me a barriga em vez de ir comer, apesar de estar cheio de fome.

Continua a ser assim hoje. Quando saio de casa e percebe (e ele sabe sempre) que é por mais de meia hora, fica a olhar-me fixamente com aqueles olhinhos brilhantes, inteligentes, possessivos e carinhosos.

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No Domingo, ia eu almoçar com os meus pais, abriu a boca e juro que ia mesmo, mesmo, mesmo falar.

Quando passei a escovar várias vezes por semana o meu doce e sábio Chiquinho, a Amélinha (a “Gááta!!”), a princesinha cinzenta Matildinha e Jeremias, O Gato Sexual, as reacções variaram, e muito.

O Jeremias, o meu lindo lince-gato-cão, deita-se de lado e põe-se em posições em que não consigo escová-lo.

A Matildinha tem que ser persuadida durante muito tempo, tem que estar sozinha na sua divisão-refúgio, a cozinha, e tenho que usar primeiro o pente, menos invasivo, e só depois a escova, o único instrumento eficaz para retirar o pêlo morto.

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A “Gááta!!” acha que aquilo é tudo uma grande brincadeira, dá os seus gritinhos amorosos e irresistíveis de espanto, protesto e diversão, e só quer é morder o pente e a escova.

O Chiquinho vê esta como uma homenagem especial, um acto de mimo. Quer mesmo que o escove (mas sem estar durante uma enorme quantidade de tempo a fazer isso).

Dure esta operação 5, 10 ou 20 minutos, quando eu vou, em seguida, escovar os outros, exige que eu volte a fazê-lo com ele e deixe os seus “irmãos-rivais” em paz. Mia, mia, mia e volta a miar. Quer mais e mais atenção, dedicada e exclusiva.

Quando passou a ter, pela primeira vez, direito a pedacinhos diários de patê (antes não comia nada mais que ração por casa dos problemas de estômago, agora ingere esta pasta especial precisamente para apoiar a sua função intestinal), o Chiquinho experimentou momentos de indescritível felicidade.

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Afinal, havia sete anos que comia ração, apenas ração e nada mais que ração. Quando chega a altura deste petisco, mia, mia e re-mia, antes e depois. Só não o faz durante por razões óbvias.

Mas é a tal coisa: Este é um ser que se alimenta, basicamente, de carinho e amor. No outro dia estava à pressa, fiz a medicação para todos os meus gatos, mas não tive tempo para lhe dar o seu “brinde”, que já provara de manhã.

Sabia que ficaria triste, até porque o tal petisco é, também, uma atenção específica, e esse aspecto não é de desprezar. Assim que acabei de dar a medicação aos outros, peguei-lhe ao colo.

Andei com ele pela casa, dei-lhe beijinhos, fiz-lhe festinhas, disse-lhe algumas palavras carinhosas. Nem um único miado de protesto.

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O que ele gosta mesmo é de sentir que é único para mim, que domina por completo o meu coração. A partir daí, está tudo bem. E a verdade é que não tem mesmo que se preocupar…

A minha gata não me deixa beber

Ao fim-de-semana gosto de me esticar no sofá com um pacote de batatas fritas onduladas, bem salgadas, e um pires de amendoins igualmente condimentados com o mesmo ingrediente.

Meia hora depois, chegaria inevitavelmente o momento de ir buscar uma cerveja estupidamente gelada à parte de trás do frigorífico e consumi-la em dois ou três goles.

Poucas coisas são tão deliciosas na vida como devorar um pacote de aperitivos salgadíssimos seguidos de uma bebida tão gelada como a calota polar, quando já estamos quase a entrar em choque de desidratação e secura labial.

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A questão é que, meia hora depois de me sentar, e mesmo que não tenha esticado as pernas sobre a mesinha da sala, a minha Matildinha já está totalmente acoplada a mim.

Ainda há dias, enquanto via dois filmes de Hitchcock de enfiada, a minha princesa cinzenta esteve várias horas abraçada a mim, feliz, tranquila e protegida.

De vez em quando olhava para a sua “prima”, Amélinha, a “Gááta!!”, com uma expressão meiga, doce e absolutamente inocente, enquanto trocavam umas cheiradelas e umas lambidelas profundamente amistosas.

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Felizmente, a “Gááta!!”, que tem tanto de carinhosa como de demoníaca, não estava virada para atacá-la sem piedade numa fracção de segundo e expulsá-la de imediato do sofá.

No muito pequeno écrã, uma família americana viajava por Marrocos e tornava-se vítima dos efeitos secundários de uma terrível conspiração internacional para assassinar um primeiro-ministro, enquanto desfrutavam das maravilhosas ruas do mercado de Marraquexe.

Horas depois, um horrível assassino londrino degolava mulheres em série com a sua gravata e encontrava a forma perfeita (ou quase) de incriminar um azarado completamente inocente e não ter que pagar pelos seus actos.

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Enquanto tudo isso acontecia, a minha Matildinha continuava encostadinha e agarradinha a mim, perfeitamente indiferente ao Mundo e à realidade.

A tal cerveja acabou por ficar no frigorífico. No fundo, a minha menina está preocupada com a minha saúde. Acha que os salgados em si já são mais que suficientes.

Não é preciso complementá-los com uma dose de vinte e cinco centilitros do cobiçado líquido, a temperaduras aterradoramente baixas.

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A massagem

Sapatos castanhos frescos, abertos e confortáveis, calças castanhas de tecido, pólo de manga curta claro e discretamente colorido, um relógio de pulso grosso, pesado e dourado, o homem cansado e com boa apresentação passa por mim.

Vai sentar-se numa das duas cadeiras de massagem, não para a pôr a trabalhar mas apenas para descansar. Coloca o boné, parecido com a blusa, no pequeno suporte ao lado da cadeira.

Troco dinheiro por algumas moedas de 50 cêntimos e sento-me na do lado enquanto passa pelas brasas.

Com a minha pequena carga de diversos ítens (jornal, livro de bolso de 800 páginas, agenda-bloco de notas), olho para o pequeno suporte no meio das cadeiras.

Abre os olhos de repente, olhamos um para o outro e apressa-se a deslocar para trás o boné, para que eu possa colocar tais objectos volumosos no suporte.

Digo-lhe que não se incomode, não vale a pena, posso perfeitamente deixá-los no chão. Insiste, diz que há espaço para tudo e acabo por aceitar.

Sento-me e coloco a pilha de moedas em cima da minha literatura e da carteira.

Eu uma vez experimentei essas massagens. Mas olhe, no meu caso não faz diferença. Já tenho 80 anos!”. “Pois, por 50 cêntimos é o que se consegue arranjar!”.

Inclino-me para trás, coloco a moeda e a massagem de cerca de um minuto começa. Primeiro os pés, os tornozelos, as coxas. Depois as costas, os ombros, o pescoço, a cabeça.

Fecho os olhos, descontraio-me, deixo-me levar e adormeço por uns segundos. Não é o mesmo que ter alguém com qualidades profissionais e características humanas a fazer-nos uma massagem indiana, ayurvédica ou tailandesa, percorrendo todos os músculos e articulações, desfazendo cada nó e eliminando os focos de tensão, um após outro.

Mas não deixa de ser agradável e relaxante. Além de que uma massagem dessa estirpe custa um pouco mais do que 50 cêntimos.

Holocausto intelectual

Há um filme de 1980 que se chama Holocausto Canibal. É britânico e foi realizado pelo extremamente prestigiado e ainda mais célebre cineasta italiano Ruggero Deodato.

Por muito que me custe dizê-lo, o que me parece é que nos encaminhamos precisamente para um holocausto canibal e terrorista.

Para um sacrifício, imolação e expiação colectiva, para um homicídio metódico de um grande número – milhões – de pessoas.

Nas décadas de 1990 e 2000 a Humanidade continha em si uma certa dose de sabedoria, cultura, ciência, progresso cívico e optimismo. Depois, não se percebe muito bem o que aconteceu.

Estamos a viver numa era de trevas, obscurantismo, cegueira, ignorância e estupidez como até agora não se vira, ou nunca antes fora exposto.

A informática, os computadores, as tecnologias da informação, a globalização e – AH, claro! – as redes sociais não têm culpa nenhuma disto, mas ajudaram a mostrar e tornar esmagadoramente evidente esse estado de estupidez e ignorância colectiva em que todos vivemos.

Estamos mais preocupados em atacar-nos e agredir-nos uns aos outros do que em saber, realmente, o que se passa fora do nosso cérebro diminuto e incapaz, da nossa casa, da nossa aldeia, do nosso país.

A ciência, a cultura, a informação, os meios de comunicação social credíveis e rigorosos (coisa que não conseguimos encontrar em Portugal) passaram a não ter qualquer valor ou interesse para nós.

A verdade deixou de existir. Eu acho que os ciganos, ou os chineses, ou os negros, ou os brasileiros, ou os espanhóis, ou os alemães, ou os holandeses, ou os judeus, ou os muçulmanos são todos iguais, só porque sim, só porque eu assim considero.

Quero lá saber se a realidade, a ciência, a informação ou a vida me provam exactamente o contrário. É assim porque é assim, porque eu acho que é.

Assim pensam os apoiantes de Trump, Le Pen e André Ventura, Passos Coelho e site Observador incluídos. De certeza que não fazem a mais pequena ideia de quais são as palavras da sigla PSD.

O resultado desta estupidificação humana colectiva e planetária está à vista. Trump é presidente dos Estados Unidos. Os nazis, skinheads, fascistas, kukluxklanistas e racistas saíram do covil e voltaram a estar na moda.

A possibilidade de uma guerra nuclear deixou de ser mera fantasia. O tal holocausto está apenas a um passo.

O verdadeiro teste

A minha amiga foi passar fora um fim-de-semana de quatro dias, de que bem estava a precisar. Como a primeira experiência, durante o Verão, correu tão bem, voltou a requisitar os meus préstimos de cat sitter.

A pequena cliente é uma doce gatinha de 19 anos, que, como todos os geriátricos, tem alguns problemas de saúde e precisa de fazer medicação diariamente.

Desta vez as coisas não estavam a ir tão bem: Acolheu-me com a amizade e o carinho de sempre… Mas, quando chegou a altura de tomar a medicação, com um patê suave e apetitoso, foi muito diferente.

Não quis o conteúdo do pratinho. Não aceitou tomar o preparado à colherada. Mesmo com muita insistência, continuou a recusar.

Estivemos bastante tempo nisto, e, depois, deitou-se a um canto, debaixo da cama da dona, e já não saiu de lá.

Se a situação persistisse no dia seguinte, a minha amiga ia ter que desistir do seu fim-de-semana.

Voltei 24 horas depois, e continuava no seu lugar seguro, debaixo da cama. Mas enquanto falei ao telefone com a dona, acabou por sair de lá.

Fechei as portas dos quartos para onde podia fugir, mas continuava a não querer acabar de tomar a medicação, nem com a colher, nem com o dedo nem de forma nenhuma.

Só havia uma coisa a fazer. A sua “mãe” humana disse-me para misturar no molho três ou quatro biscoitos anti-bolas de pêlo, um petisco que a pequenina adora.

Assim fiz. Devorou tudo com a maior rapidez e luxúria.

Ao terceiro dia, quando cheguei, continuava no esconderijo habitual.

Desviei a cama, peguei-lhe (algo muito estranho, já que não é, de todo, uma gata de colo) e deixou-se levar docemente e sem protestos.

Com os biscoitinhos, lá tomou avidamente a mistura medicinal. E, um dia depois, a mesma coisa.

Pelo meio comeu, bebeu, foi à casa de banho e andou à minha volta, miando com satisfação e carinho para o seu amigo das férias.

Tinha andado a fazer charme, como acontece com as crianças e os avós: “Gosto muito de ti mas não vais mandar em mim, vai ser o contrário disso!”.

Conseguimos dar-lhe a volta, com as doses necessárias de manha e criatividade. Depois das dificuldades iniciais, estou a ficar positivamente aprovado como cat sitter!

Uma segunda oportunidade

Era o boss na disciplina de inglês, desde o segundo ciclo do ensino básico até ao último ano da faculdade – e também na de alemão, e ainda largava umas postas em francês, que nem tinha oficialmente, mas do qual assistia a umas aulas com a conivência de uma professora fofa, para depois dar explicações dessa língua ao discípulo que tinha na altura.

Depois, o tempo passou. Apesar dos muitos anos de estudo e prazer, sólido e utilizável de imediato só ficou o inglês. Pensava eu.

Há um ano tentaram fazer-me uma entrevista de recrutamento por telefone, em inglês – por um telefone em que, na altura, não se ouvia nada. Baralhei-me todo, não disse nada de jeito e não passei dessa primeira fase de recrutamento.

Depois disso, a minha ex-mulher e amiga ofereceu-me o maravilhoso livro A Street Cat Named Bob, e eu pedi-lhe que me mandasse a segunda parte da sequela (The World According To Bob) e a terceira (A Gift From Bob).

Agora estou a ler Nicholas Nickleby, de Charles Dickens. E a ouvir, 24 horas por dia, as notícias da France Twenty Four, em inglês.

No outro dia voltaram a ligar-me do mesmo empregador. A chamada telefónica foi verdadeiramente A Piece of Cake: Foi canja (canja vegan, neste caso).

Fui fazer os testes orais e escritos, de conhecimentos gerais e gramaticais, e senti-me como peixe na água, like a fish in the water! Parecia que tinha voltado aos dias da escola secundária.

Não faço a menor ideia do que vai acontecer, mas sinto sinceramente que aqueles testes bem valiam uma nota de 99%, como nesses bons velhos tempos (normalmente eram de 100%, e, se tal não acontecesse, o que era extremamente raro, ficava furioso).

Tudo isto me andava a passar ao lado mas, na verdade, o meu inglês apenas precisava de uma segunda hipótese para recuperar plenamente a boa forma de outrora. A second chance. Parece-me que somos os dois!

Atingi o peso ideal

Peso agora 73 quilos e tenho um Índice de Massa Corporal de 24,9 (considerado normal). O meu Índice de Gordura é de 25,5% (entre o bom e o regular).

Os 73 quilos estão dentro dos limites considerados ideiais para a minha idade, sexo e massa corporal (entre os 58,4 quilos e os 73,1).

Já me disseram que sou a única pessoa que “conseguiria engordar a comer só vegetais”, mas o caso não é assim tão grave.

Correr uma hora quase todos os dias sem excepção e acrescentar a isso algumas idas por semana ao ginásio foi uma enorme ajuda. A outra, que tem pelo menos metade da responsabilidade, é a mudança da alimentação.

Os vegetais, as leguminosas, os cereais e a fruta tornaram-se os meus melhores amigos. Isso inclui:

Couves, tomates, cenouras, batatas doces ou brancas, uma dezena de tipos de feijão, favas, ervilhas, grãos, cogumelos, arroz, massa, pão alentejano, pão integral, pão de múltiplos cereais, frutos secos (nozes, amêndoas, uvas frescas ou em passa, figos – também nesses dois estados –, amendoins, tâmaras, cajus, bananas, sumos de fruta natural e tudo o que se consiga imaginar.

Claro, gostava de perder ainda mais gordura, mas parece difícil. No campo da alimentação, nada mais há a melhorar. Embora, na realidade, o objectivo da adopção do veganismo nada tenha a ver com isso.

Tornei-me vegan apenas porque decidi não comer mais cadáveres, nem nenhum alimento ou substância roubado e retirado brutalmente a animais.

Parece que, sem o querer, fui recompensado com mais saúde e menos gordura. Há muitos anos que não conseguia perder tanta.

Quanto ao exercício, também não parece fácil fazer ainda mais do que um a dois treinos por dia. Podia encomendar um novo plano de treino, diferente, mas em termos de euros e cêntimos não é a melhor altura.

Por isso, para já, vou continuar no mesmo caminho. Na esperança de conseguir perder ainda mais uma ou outra grama…

A Humanidade devia estar em Oslo

Em Itália não é fácil ser homossexual, e menos ainda abortar, ou até comprar a pílula do dia seguinte.

Na Lapa, ser negro e ter assuntos a tratar com a polícia é muito mais fácil do que no Casal da Mira, na Cova da Moura, na Damaia ou na Buraca.

As conclusões nascem enquanto se ouvem várias línguas e sotaques, à porta de um bar do Cais do Sodré.

Mas é altura de ir ver como está o ambiente no Oslo e como anda o preço dos shots. Há uma voz que diz “posso ir com vocês?”. Sai de dentro da boca de um rapaz angolano. Quer desfrutar um pouco mais da companhia da colega portuguesa, que conhece há alguns dias.

Vem, bebe um shot e oferece outros dois, despede-se com amizade e desaparece.

No Oslo, há jovens nórdicos e latinos, com boa aparência e disposição. Há quarentonas e cinquentonas tugas, loiras que fumam, bebem e dançam com liberdade e alegria as músicas dos anos 80.

Há quatro ou cinco homens portugueses entre os 40 e os mais de 60 anos que bebem, dançam com toda a descontracção, felicidade e capacidade de inovação artística do Mundo.

Tudo se mistura e funde, numa explosão de bem estar e harmonia, com a ajuda dos shots de um euro.

Há um quadro luminoso, desenhado em formas muito simples mas belas, que parece representar o porto de Oslo, os navios, os prédios, as casas, as igrejas e as características gerais da cidade norueguesa.

No Jamaica, meia dúzia de metros à frente, há espaço, finalmente, pela primeira vez em muitos e muitos meses. Um milagre de Agosto.

Há um asiático novo e musculado, com um ar muito banal, que, primeiro, paga imperiais e mais imperiais. A seguir, começa a querer dar várias notas de 20 euros à rapariga alta, bonita, vistosa, de cabelo claro e meio arruivado que dança na pista.

Aparentemente, não percebeu muito bem onde estava. Mas tudo se resolve sem problemas depois de meia dúzia de recusas mais afirmativas.

Enquanto isto acontece, há dois países com armamento nuclear que se ameaçam.

Há um Chefe de Estado de uma grande potência mundial que oferece carta branca, direito de existência e legitimidade social e democrática ao racismo, ao nazismo, ao fascismo, ao supremacismo branco, à ideologia assassina de raiva racista irracional e cega do Ku Klux Klan que se aproveita da liberdade e democracia para propagar o ódio e matar.

A Humanidade devia ser igual às noites do Oslo e do Jamaica, e não aos dias da América.

Sinto-me como o Neymar

É verdade, sinto-me um pouco como o Neymar. Se eu for mostrar o meu verdadeiro palmarés, assumir todos os clubes onde já estive, e durante quanto tempo, toda a gente vai ficar assustada.

Vão achar que nunca poderiam contratar-me. Acreditarão que só se forem um clube que esteja no bolso do Qatar e possa comprar pessoas como copos de água ou de café é que poderão alguma vez recrutar-me.

Ainda me vou sentir culpado por provocar uma guerra entre a Arábia Saudita e o Qatar.

Nas várias versões do meu currículo em português e inglês, já cortei a idade, o estatuto de divorciado, a foto e metade da experiência, bem como boa parte das datas.

Tinha feito uma carta de apresentação estupidamente curta, que só tinha um parágrafo. A minha melhor amiga disse-me que estava muuito longa. Parecia uma grande lista de coisas. Encurtei-a ainda mais.

Durante este Verão, também deixei de me concentrar em concorrer para a área do jornalismo, dos conteúdos, da comunicação social ou outras relacionadas. Não há espaço.

Tal como fui aconselhado, estou a alargar os campos. Até gostava de trabalhar com animais, como cat sitter, por exemplo. Ou dar formação. Ou dar explicações. Ou fazer assessoria de imprensa. Ou outra coisa qualquer.

Acho que seria capaz de fazer quase tudo, menos vendas. Impingir frigoríficos a esquimós e aquecedores a berberes não é para mim. Não tenho nada contra, nem a favor. Simplesmente, não era capaz de o fazer.

Fora isso, restam infinitas coisas que podia fazer. Basta que esqueçam as minhas parecenças meramente aparentes com o Neymar e me contratem…