O super-mercado dos sonhos e a rua das ilusões

O sol atingia já o ocaso. O automobilista mais corajoso atrevia-se ainda a estender a capota sobre a sua viatura, protegendo-a da geada da madrugada.

O vendedor de cautelas matava as horas rua abaixo e acima.

Anda… À Roda… Hooje!!

As roupas velhas e descuidadas mostram que a vida não é fácil para o vendedor. Faz lembrar os poetas desafortunados das histórias dos livros, com os sobretudos esfarrapados e as costas doridas por falta de cama decente.

Um homem de meia idade e origem desconhecida repara nos caixotes do lixo, agora rodeados de caixas de cartão graças ao novo super-mercado que abriu ali perto. Escolhe uma, outra e depois mais uma.

Juntas, disfarçarão o toque agreste da pedraria que cobre o chão. É esse o seu destino.

Horas antes, foram sucessivamente desconjuntadas pela menina de sotaque alentejano que trabalha oito horas por dia na caixa registadora, a troco de 557 euros por mês.

Junta todos os dias à pronúncia do sul um sorriso sincero. É uma pequena rosa, com as suas tranças loiras cuidadosamente divididas e penteadas.

A menos de um quilómetro, o guia que fala inglês, espanhol e francês conduz o seu grupo de turistas divertidos e ávidos de novidades. Todos os viajantes são felizes.

Sobem a escada que trepa por mais de 500 metros enquanto o jovem vai desfiando o roteiro da cidade:

Já vimos o bairro tradicional, o eléctrico local, a igreja histórica, subimos, descemos. Alguém quer descansar? Agora vamos a um dos largos mais bonitos que conheço.

A meio caminho entre a mercearia e o café, duas seitas evangélicas clamam pelos fiéis:

Cristo sacrificou-se na cruz para nosso benefício. O que pode Jesus fazer hoje para melhorar as nossas vidas? É disso que vou falar-vos agora.

O vento assobia sobre as árvores, indiferente.

Um miúdo espreita pela janela e assiste clandestinamente a uma aula de capoeira. Mostra um sorriso de uma orelha à outra e depois foge, saltitando.

A noite lança o seu manto escuro sobre os edifícios.

O Chiquinho tem diabetes

Andava a perder peso havia várias semanas, e o caso já se tinha tornado demasiado estranho. Cheguei junto da balança. Quatro quilos.

O mistério mantinha-se. Não havia nada a fazer. Era mesmo preciso avançar com análises.

O fígado está bem, os rins funcionam, a respiração mantém-se normal, todos os parâmetros da composição do sangue se encontram aceitáveis. Menos a glucose.

O Chiquinho tem diabetes. Era só o que faltava. Vai ter que mudar de ração, de patê e de vida: Pela primeira vez em muitos anos terá que tomar comprimidos.

O mais complicado é que não vai poder almoçar e jantar o mesmo que a Amélinha (a “Gááta!!”), o Jeremias e a Matilde, que têm insuficiência renal. Nem eles podem degustar a comida que vai estar no prato dele.

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Até agora, matavam a fome em conjunto, à hora a que lhes apetecesse, de dia ou de noite. Esse tempo acabou.

A partir de ontem, começámos a experimentar novos métodos.

Para já, estou a tentar dar-lhe o tal comprimido directamente pela sua delicada garganta, para não complicar muito mais a bateria de tratamentos que acontecem duas vezes por dia aqui em casa. E a fazer por convencê-lo a gostar do seu novo patê.

Quanto à ração, é outra história. Por enquanto estão a comer três vezes por dia, mas mais tarde o objectivo é que o façam apenas duas, para que o dono possa trabalhar.

Enquanto eles – e eu – nos alimentamos, dois terços do tempo são passados a expulsar cada um deles do prato que lhes é proibido, e a dirigi-los para o comedouro onde têm livre trânsito.

Quando vou tomar banho, deixo as fêmeas felinas na cozinha, com a sua alimentação renal especial. O Chiquinho vai comigo para a casa de banho, eventualmente junto com o seu pratinho.

Nesse caso, o Jeremias terá que ficar nos corredores e no quarto, com a sua desejada refeição. Porque não na cozinha, já que pode comer o mesmo que as suas duas congéneres? Porque é Inverno.

O Jeremias tem uma predilecção por lugares escaldantes, como por exemplo a caldeira da água quente, e se eu o deixasse saltar para junto dela queimaria de novo os pêlos, como já aconteceu várias vezes no passado.

Com este último desenvolvimento, a vida dos meus gatos tornou-se um puzzle em que o encaixe das peças é um perfeito enigma.

“Desculpa não responder mas posso estar a defecar”

Sentado confortavelmente no sofá, Dick interroga-se nestes termos: Sempre pensei qual seria o dispositivo tecnológico sem o qual nunca conseguiria viver, e quais os que poderia dispensar.

Sobrevivia perfeitamente sem telemóvel, Internet, televisão ou gás canalizado. Mas sem frigorífico é que não.

É uma inovação tecnológica incrível. Imaginem. Em qualquer altura, aconteça o que acontecer, posso sempre ir ao meu frigorífico e retirar do seu interior um alimento fresco, bem conservado, em perfeitas condições para ser consumido.

Ao lado, descansando no chão, Doof demora algum tempo a reagir: Bom, talvez tenhas razão. A tecnologia é um pau de dois bicos.

Quando éramos miúdos não tínhamos computador, Internet, telemóvel ou até mesmo telefone fixo. As pessoas viviam e eram felizes.

Estive a ver um documentário na televisão, no outro dia. Sobre uns indígenas duma tribo que habita numa ilha e não deixa lá entrar ninguém nem qualquer influência do exterior.

Passam helicópteros e eles atiram-lhes flechas e pedras. Se entrar alguma pessoa, é logo morta. Ali não chega nenhum tipo de tecnologia ou progresso. E eu acho que eles é que estão bem.

Eu, se tiver um familar doente ou com alguma dificuldade, graças ao telemóvel posso ir ajudá-lo imediatamente…

Mas o facto de ter Internet e e-mail no telefone pode ser bastante prejudicial. Por exemplo, posso estar numa festa a meio do fim-de-semana e ter que responder a mails de trabalho, porque estou contactável e tem que ser.

Ou então, mandam-me uma mensagem pelo Facebook  e acham que eu tenho que responder imediatamente.

Mas eu posso não querer, ou não ter possibilidade de reagir no momento! Posso estar a cagar: Épá, desculpem, não posso mandar já, já, a mensagem, porque estou na sanita.

Bem vistas as coisas, tanto Dick como Doof têm muita razão. Seria incómodo e pouco prático viver sem frigorífico, embora a esmagadora maioria da Humanidade o faça.

E ficar sem computador, Facebook, Internet, telemóvel e telefone fixo, como fazíamos há apenas umas duas décadas, como seria?

Uma entrevista de emprego fofinha

A mulher sobe no elevador, bate à porta, entra no escritório e é acolhida com grande amabilidade. Espera enquanto contempla uma vista invejável.

Entra um rapaz jovem, moreno, de lábios grossos, vestido com bom gosto mas informal.

Parece uma entrevista ao contrário. O interlocutor é invulgarmente simpático. Faz-lhe meia dúzia de perguntas mas nem lhe dá muito tempo para responder: Passa dois terços do tempo a falar da empresa.

É uma organização fantástica que fabrica peças de vestuário femininas, feitas à mão e mediante as exigências de cada cliente. Trabalha a partir do seu país para o mundo inteiro.

A companhia está repleta de eventos de construção de espírito de equipa, várias vezes por mês. O trabalho é exigente e muito variado mas o ambiente é excelente.

Enquanto ouve, interessado e atento, algumas das respostas, o recrutador ainda fala sobre a sua vida pessoal. De onde veio, o que faz aqui, as coisas que lhe agradam a nível profissional e fora do trabalho.

São 800 euros limpos, mais coisa menos coisa. Acima das últimas dez ofertas que recebeu. Mas a simpatia é tanta que a candidata fica completamente baralhada: Causou uma boa impressão ou teve um mau desempenho?

Mais tarde, haverá mais passos no processo de selecção… Mas uma ou duas horas depois, percebe que não perguntou quando será informada sobre o resultado da entrevista.

Acaba por enviar um mail a colocar precisamente essa dúvida. Não reagem logo, demoram umas quatro ou cinco horas. No final desse período, chega a resposta.

Lamentamos muito, mas não foi seleccionada. Foi um prazer conhecê-la.

A partir de agora já sabe. Quando o entrevistador é tão, tão amável que quase parece querer ajudá-la a ir passear o cão, é sinal de que provavelmente está tudo a correr muito mal.

600 euros não alimentam os meus filhos

Mais uma noite destapado”, diz, soprando sobre as luvas enquanto sente nas faces o soco frio de Dezembro. Se tivesse dinheiro escondido na sola arranjava maneira de fugir à geada da madrugada, agora que o estio se foi de vez.

O bolor dos sapatos é o companheiro que lhe resta na solidão da noite. Assiste ao revoar do pó da rua e tenta não pensar em nada.

Do outro lado da estrada, dentro do hotel brilhante e moderno, a sessão fotográfica da celebridade desenrola-se. Mais para a esquerda. Agora para a direita. Não, para o centro. Assim. Assim. Um bocadinho para cima. Isso. Isso. Perfeito.

Horas depois, uma mulher de 50 anos, ainda bela, bem vestida e maquilhada, entra no edifício do lado. Senta-se com alguma ansiedade, enquanto aguarda.

Ao colo uma revista e um livro, que terá tempo para folhear. 15 minutos depois, dois homens jovens e vestidos sem formalidade dão-lhe as boas vindas.

Perguntam-lhe porque está ali e quais são os seus objectivos. Explicam-lhe o essencial sobre o negócio, os clientes, os fornecedores, os operadores.

Fazem-lhe meia dúzia de perguntas em inglês e apresentam-lhe vários casos para resolver, usando o mesmo idioma.

A loira cativante quer saber qual é a remuneração. Feitas as contas, não dá mais de 600 euros.

Obrigado, Mister White e Mister Blue, mas com esse valor não consigo alimentar os meus filhos. Agradeço o facto de se terem lembrado de mim, desejo-vos uma óptima semana e bom trabalho.

Ao sair, repara no hotel colorido e alegre. Da pequena Babel saem turistas que falam dezenas de línguas diferentes.

Não verá o homem que há muito se levantou do pedaço de cartão onde dormiu, tentando sacudir o frio do corpo e obter algumas moedas para um hipotético pequeno-almoço.

À espera, vários anúncios por responder.

 

Não comia há 24 horas

“Eu vi!”.

“Viu o quê? Alguma coisa no facebook?”.

“Não. Vi-o a falar com um homem sem abrigo, na sua pausa de almoço, sentado ao lado dele a ouvi-lo com atenção”.

“Ah, sim, já o conheço há muito tempo, gosto bastante de conversar com ele. E tentar ajudar estas pessoas passa antes de tudo por dialogar com elas e criar relações”.

“Sim, mas nem toda a gente percebe isso”.

Depois destas observações, conta-me a sua própria história. Também passou por uma situação difícil e foi apoiado por uma instituição de solidariedade, que o ajudou a reerguer-se.

O problema é que, há três anos, o Governo decidiu fazer um corte profundo nos programas usados por algumas IPSS para reconstruir a vida destes homens e mulheres.

Se antes era possível fazer um contrato de trabalho de três anos, receber o ordenado mínimo e ter subsídio de férias, de Natal e direito à prestação social de desemprego (caso depois desse contrato não conseguissem uma nova colocação), agora já não é assim.

Estes vínculos contratuais reduziram-se a um ano, a remuneração desceu para 430 euros e os beneficiários deixaram de ter direito a subsídio de férias, de Natal e de desemprego, se precisassem de recorrer a ele no final do contrato. Critica esta mudança profunda e deseja-me bom fim-de-semana.

Horas depois, encontramos o mesmo amigo com quem me tinha sentado, dias antes, a ouvir as histórias da sua vida.

Observa que os recursos do planeta são finitos. Dependemos muito do petróleo, e esse combustível vai acabar um dia.

Quando isso acontecer, como vão voar os aviões? As outras fontes de energia não chegam para abastecer as aeronaves, quando atravessam os continentes e oceanos transportando as pessoas.

E os camiões e comboios, como vão circular e transportar as mercadorias? Um camião poderá usar outro combustível, mas será um veículo muito diferente”.

Ficamos a saber que não comia há 24 horas. “Bem, agora vou jantar. Também tenho direito”, diz, lavando as mãos com água enquanto se prepara para fazer isso mesmo. Damos-lhe mais um saco de comida e um segundo iogurte.

O lacticínio contido no pequeno frasco de plástico faz também as delícias de um arrumador que encontramos no centro da cidade. Aos 40 anos já é avô e mostra, deliciado, as fotos da bebé.

Partilha as imagens das suas duas filhas. Uma deixou-o um pouco triste:

Antes era tão linda, tão feminina. Agora, depois de ter ido estudar para outro sítio e fazer novas amizades, mudou completamente. Veste-se e corta o cabelo à rapaz. Está muito mais masculina. Antes era mais bonita”.

Sublinhamos que o importante é que a rapariga seja feliz e se sinta bem e entregamos-lhe o desejado iogurte…

Dentro de um saco igual ao que foi oferecido, pouco antes, ao efusivo amigo que vive à frente de uma garagem. Quando chegamos ao pé dele está mais que irritado.

Precisava de urinar, eventualmente nalgum café, e não o deixaram. Gesticula e fala em voz alta. Ao longe, abanamos o saco para que o veja. Os gestos e imprecações detêm-se imediatamente.

Ah, não se preocupe! Não estou chateado com vocês, não!”. Explica o que aconteceu, agradece a comida com a simpatia de sempre e diz-nos boa noite.

Eu estou preparado. E você?

Estou em paz e estou preparado. E você?”.

Respondo a U, meu amigo e profeta de 85 anos que vive e dorme na calçada, que fui a duas entrevistas de emprego. Numa delas ofereceram-me o equivalente ao ordenado mínimo.

Não tem o que comer? Vai ficar a viver na rua? Então não aceite. Responda a vários anúncios diariamente, e tente por todos os meios possíveis.

Houve uma altura da minha vida em que procurava emprego de manhã à noite, e isso aconteceu durante bastante tempo. Chegava a casa todos os dias de mãos vazias, até conseguir resolver a situação. É difícil. Continue a tentar”.

A conversa vai parar aos animais, um dos temas do futuro livro do Cronista Sem Abrigo. E aos gatos.

Os gatos são maravilhosos. Vivi histórias fantásticas, com os gatos e cães que salvei e que tive. Aquilo que distingue os seres humanos dos outros animais é a fala.

O papagaio, por exemplo, fala mas tem um cérebro muito pequeno. Se tivesse a memória do elefante, seria um ser extraordinário.

Imagine como nasceu a linguagem nos seres humanos: Nessa época, há muitos milhares de anos, havia pequenos grupos de homens espalhados pelo planeta. Um dia há um que vê um fruto e começa a emitir um ruído e a apontar para esse alimento, que ganhou assim o seu nome.

Noutra altura vê outra fruta, com uma forma e uma cor diferente, e inventa um outro som. Ao mesmo tempo, noutros continentes, acontecia o mesmo com outros homens. É por isso que temos tantas línguas diferentes no Mundo”.

Pergunta-me pelos meus pais. Conto-lhe as sagas familiares dos últimos anos e digo-lhe que a minha mãe, depois de um período difícil em todos os aspectos, decidiu oferecer a si própria um pequeno perfume, e a mim um desodorizante de fragrância irresistível.

Explico-lhe que a minha mãe acha que a vida deve ser aproveitada ao máximo, e não devemos guardar aquilo que temos até já não estarmos cá para poder usufruir.

Afirma que ela tem toda a razão, e que faz exactamente o mesmo. Vive a existência com toda a intensidade.

Entretanto levanta-se, apesar de cego e debilitado, sobe com perfeito sentido de orientação as escadas, entra no edifício à sua frente, trepa mais uns quantos patamares e vai à casa de banho.

Aproveita para lavar cuidadosamente as mãos. Elogia o facto de o lugar ter agora, em vez de sabonete líquido, espuma desinfectante para as mãos, e dispositivos que permitem secá-las e aquecê-las.

Quando se vive na rua, ao fim de algum tempo temos pó nas mãos. É bom poder lavá-las bem”.

O facto é que, ao longo de sete anos de permanência nesta rua, U nunca me cheirou mal nem me pareceu sujo ou desleixado. Como consegue assegurar isso, será sempre um mistério para mim.

Decidiu ir até ao fundo do poço

Senta-se connosco à volta e começa a falar. Os antecedentes eram fortes. O pai tinha problemas de alcoolismo, e só um dos irmãos não caiu na bebida ou na droga.

As substâncias arranjavam maneira de ir ter com ele. Mas durante muito tempo, teve aquilo a que se chama “uma vida normal e funcional”.

É carpinteiro especializado em cofragens, trabalha bem e essas tarefas não são mal pagas.

Há uns anos, começou a ter uma proximidade maior com o mundo do tráfico e do consumo. E acabou por ficar viciado.

Nessa altura, tinha uma amiga que tratava dele, lhe dava cama, apoio e conselhos. Chegou à conclusão que, enquanto tivesse essa pessoa para lhe aparar os golpes, nunca ia deixar a droga.

Decidiu ir viver para a rua, para chegar ao fundo do poço e depois regressar. Uma experiência que não deseja ao pior dos inimigos.

Levantava-se e deitava-se a pensar naquilo e no que tinha que fazer ao longo do dia para arranjar dinheiro para a dose. Roubou, enganou, pediu, a toda a gente.

Amigos, estranhos, conhecidos, pessoas que o ajudaram e fizeram tudo por ele.

Se comprava umas doses a mais, não podia levá-las para casa. A ideia era guardá-las para o dia seguinte, mas claro que as usava logo. Passou a deixá-las num sítio que ficava a uma viagem de comboio de distância.

Mas já não dormia, porque passava o tempo a pensar no que estava à espera dele no dia seguinte, quando já houvesse transporte outra vez.

Um dia esperou que os pais saíssem de casa, entrou lá com a sua chave e serviu-se. Levou tudo. Para gastar naquilo.

Noutra ocasião, a roubar, deu uma queda de 25 metros, partiu-se todo. Tem agora um ferro dentro da perna.

Durante esta fase da sua vida contraiu o vírus HIV, mas, felizmente, a doença não está activa neste momento.

Hoje está no centro de reabilitação e comunidade terapêutica de Fátima, da Comunidade Vida e Paz. Este é o segundo tratamento que faz.

Da última vez sentiu que estava reencaminhado e tinha retomado a sua existência normal. Trabalhava, tinha a sua companheira, a sua casa, os seus amigos.

Um dia, no café, decidiu beber uma amêndoa amarga. Atrás veio um charro, e a seguir a dose de heroína. E acabou tudo.

Mas agora, depois de mais de uma hora de conversa entre este homem e sete voluntários da Comunidade Vida e Paz, dedicados a retirar da rua pessoas em condição de sem abrigo, sente-se que algo é muito diferente.

Passa grande parte do tempo a falar da família, descreve a vida e a carreira de cada um dos sobrinhos, com os olhos a brilhar de emoção. Perdeu muito, demasiado, nestes anos que passaram.

Quer compensar esse tempo, estar com a família, dedicar-se aos seus. Deseja ser pai. Planeia viver, após o fim do tratamento, num espaço seu, por mais pequenino que seja.

Trabalhar, viver as alegrias e os triunfos dos familiares e amigos e constituir, também ele, o seu próprio núcleo.

Acredita em Deus mas acima de tudo crê em si mesmo. Sabe que se facilitar demasiado as coisas nenhuma ajuda externa vai fazer a diferença.

Esse grande querer que os voluntários e os terapeutas sentem visivelmente nele tem que vir de dentro, e é aí que está a nascer.

 

Foto: António Santos

Um norueguês chega a Oslo

O segurança volumoso e anafado sorrira para nós às quatro da manhã, à porta do Oslo, e dissera: “São cinco euros”.

Há muito tempo que não me lembrava de ser tão espontâneo e oportuno.

Bem, é a primeira vez que me pedem dinheiro para entrar aqui. Costumamos vir cá regularmente. Conhecemos perfeitamente aquele senhor enorme que costuma estar ali à porta, aquelas meninas simpáticas que estão a servir… E nunca nos pediram dinheiro para entrar!”.

Bem, conhece-o, então como é que ele se chama?”. “Ora, estou sempre a cruzar-me com ele, mas o nome, não sei!”.

Ri-se e acaba por nos deixar passar. O tal senhor e as meninas estão lá dentro e também sorriem francamente, o que muito agradecemos e retribuimos.

Uma imperial depois, surge um jovem loiro e simpático de olhos azuis, norueguês. Fala inglês com carregado sotaque do seu país. Não percebo patavina do que diz.

A minha amiga está habituada a estas situações e entende tudo. O visitante pergunta-nos onde vivemos, e falamos-lhe de Lisboa e das praias da Margem Sul.

Ao contrário do que pensa, não são apenas as melhores. São, isso sim, “As Praias. As Verdadeiras”, explicamos.

É estranho encontrar alguém oriundo do Norte da Europa e tão conversador, mas a minha companheira de aventuras tem este efeito em toda a gente.

Além disso, o viajante explica-nos que os os seus conterrâneos não são bem nórdicos nem latinos, na personalidade. Estão a meio caminho.

Quer aprender a nossa língua e compara-a com a sua, perguntando-nos como se dizem algumas palavras. Elogia o feitio dos portugueses, gesticulando com os braços abertos, sublinhando que somos muito afáveis.

Critica os norte-americanos: Segundo ele, são péssimos. Exactamente ao contrário de nós.

Vou à casa de banho e volto. Vejo-o a fazer o caminho contrário, mas depois já não o encontro. No regresso, pergunto por ele à minha amiga.

Tinhamos-lhe falado, com múltiplos louvores, do Jamaica. É ali à frente, do outro lado da rua. Por causa da nossa veneração por esse lugar, se calhar foi para lá…?

Responde-me ela: “Não, tu não estás bem a ver! O gajo enganou-se na casa de banho. Foi à das mulheres. E o homem que costuma estar aqui à porta foi buscá-lo… Meteu-o fora do bar”.

Coitado do rapaz. Já não pode continuar a falar connosco. Pelos vistos é melhor a dialogar com raparigas desconhecidas do que a descortinar quais são as casas de banho masculinas e as femininas num bar de uma cidade estrangeira.