“Ele tem as suas razões para pensar que sou um mau homem”

A velha carrinha faz-se ao caminho. Há três tipos de bolachas, sumos e chocolate a bordo, para o coffee-break, além dos quatro caixotes com cerca de cem sacos de sandes, bolos e leite no porta-bagagens, como sempre.

No primeiro ponto de passagem, damos os parabéns atrasados ao homem de barba e gorro, junto à garagem, ao lado do centro comercial. O convite para uma Ginjinha mantém-se. “Custa alguns euros mas vale a pena”. É que antes só havia dois tipos de Ginja – com elas e sem elas -, agora há vários outros.

Ouvimos reflexões sobre a vida militar. Explica que é um militar – aparentemente, uma condição permanente. Conversamos sobre a importância do Exército e das Forças Armadas.

No lugar mais povoado da noite, o homem que saiu da rua pelos seus próprios meios está bem disposto como sempre. O seu conhecido fala dele, a cinco metros de distância, mas não dialoga com ele. Explica que se conhecem bem mas não há relação entre eles. Andam em lados diferentes da estrada, e, se se cruzarem, mudam de passeio. “Ele tem as razões dele para pensar que eu sou um mau homem. Eu tenho as minhas razões para pensar que ele é um mau homem”.

Ao lado, o quarentão sorridente, quando lhe dizem que não pode conquistar a rapariga dos caracóis dourados que nunca sai de casa sem bolachas, diz que já a conquistou, não há nada a fazer. A mulher das revistas chama-lhe bebedor, e ele responde: “Já alguma vez me pagaste um copo?!”.

A ajuda não chega

Um rapaz jovem, com sotaque africano, vem falar connosco. Queixa-se de que a ajuda não é suficiente, que não chega a toda a gente. Que há muita gente que precisa, mas não está aqui nas carrinhas a receber comida. Diz que a ajuda tem que ser maior. Protesta com revolta e delicadeza, triste e diplomático. Antes de se ir embora, abençoa-nos a todos várias vezes.

Junto a uma das empresas mais ricas e prósperas de Portugal, um homem está nervoso e farto de estar na rua. Toma calmantes para dormir e para se manter sereno, mas está cada vez mais difícil. Procura trabalho e não encontra nada. Está no limite.

Fazer publicidade em vez de ter um tecto

Meia hora mais tarde, ao lado de outra empresa portuguesa milionária e privilegiada, há um homem que já podia ter saído da rua. Mas o dinheiro que iria gastar numa residencial é necessário para divulgar mais anúncios do seu trabalho, a reparar electrodomésticos, ou a exercer muitas outras tarefas especializadas que exigem boas mãos, profissionalismo e habilidade. Por isso, ainda está na rua. Na nossa próxima visita, espera já não estar.

Encontramos o casal de artistas, que tem uma cadela e mais de um gato. Quando nos deixa, o rapaz leva nas mãos dois sacos de comida, dois sacos de ração e dois copos de leite. Não é à toa que é malabarista.

Somos obrigados a interromper a conversa com o ancião sábio, cego e de aspecto irrepreensível que vive no chão da Avenida mais prestigiada e consumista da cidade. Acabaram-se as sandes.

Ao encontro de outra carrinha, à qual ainda sobra a comida que já não temos, encontramos o homem que gosta de leite. Diz-nos que hoje não precisa de ajuda, ainda tem alimentos para a noite.

Já temos mais sandes. São entregues aos dois últimos homens que encontramos. Ambos já dormem. De volta à sede da Comunidade Vida e Paz.

Ouvia o vento e interpretava o luar

A mulher doce e gentil chega à praça das cerejeiras e aspira o ar com enorme prazer. Dirige-se à pastelaria-roulote e diz ao patrão do pequeno estabelecimento que gostaria imenso de trabalhar ali. O homem, delicado e respeitoso, não a leva a sério, devido ao aspecto frágil e idoso da senhora, que diz aceitar com enorme agrado um terço do salário que ele pagaria normalmente.

Nas suas idas e vindas, insistindo na sua disponibilidade, deixa-lhe a pasta de feijão feita por ela em casa, como possibilidade de substituição da que o homem usa habitualmente para rechear os seus bolinhos. Ele deita-a fora, mas depois acaba por abrir a embalagem, por curiosidade. A substância é tão deliciosa que ele contrata a anciã sensível.

No dia seguinte, e por sugestão dela, a pastelaria abre muito antes do nascer do sol. A preparação da pasta de feijão, que se faz no próprio dia e seria ofensivo e indigno encomendar a qualquer entidade externa, demora muitas horas.

É preciso lavar, cheirar, escolher, ouvir, sentir a qualidade e as características do feijão, passá-lo por várias cozeduras, deixar que os ingredientes se habituem e adaptem uns aos outros. A partir desse dia, a pastelaria, que contava com meia dúzia de clientes, passa a ter sempre filas à porta desde manhã cedo.

A velhinha sábia e talentosa é alguém que ouve os ventos, interpreta o que dizem os pôres-do-sol e as noites de luar, as mensagens que circulam pelos ares do Mundo. Sentiu que o espírito e o coração daquele homem precisavam de ajuda, orientação e amor. Foi por isso que veio. E foi tudo isso que lhe trouxe.

Uma Pastelaria em Tóquio, realizado por Naomi Kawase em 2015 e estreado em Portugal em 2016, é um poema em forma de filme. Uma história de generosidade, simplicidade e carinho. Um relato que faz falta, em dias em que se ouve falar de tanta coisa no Mundo que não faz sentido…

Vi um saco a andar pela casa

Acordaste enrolada aos meus pés. Agarrei em ti. Peguei-te ao colo, dei-te muitos beijinhos, disse-te que és a minha fofinha, o meu bebé, o meu amor. Olhaste para mim com um ar feliz, amoroso, tranquilo, como fazes quando estás nos meus braços.

Fazes quatro anos hoje, Amélinha. Nunca vou esquecer os quatro episódios em que fiquei sem saber o que ia acontecer-te e o que devia fazer. O primeiro… Num belo dia, pouco depois de alguém comprar ou oferecer alguma coisa, vi um saco a andar sozinho pela casa.

Fui mexer no saco, e eras tu. Com o teu pescocinho preso nas asas, porque adoravas sacos, cordéis e asas, e já com dificuldades em respirar. Gritei pela minha gentil esposa, com quem ainda vivia na altura, mas entretanto o sentido prático sobrepôs-se ao pânico absoluto que me dominava.

Retirei os cordéis, afastei o saco, libertei o teu pescocinho lindo e delgado, que asfixiava.

Segundo episódio, ainda na primeira residência onde moraste. Alguém entrou em casa, e, passados uns segundos, começo à procura da minha pequenina.

Bem podia procurar, e assim fiz. Na sala, na cozinha, no quarto, na casa de banho, em todo o lado e mais algum. Na escada, em todos os andares, nada. Acabei por ir às traseiras do prédio. Lá estavas tu, na rua, à porta, com um ar puramente beatífico. “Estou aqui, leva-me, vamos”.

Terceiro episódio. Fui ao quarto onde costumava guardar as coisas que não estão sempre a ser usadas, e tu, sempre atrás de mim, sempre a enfiar o teu minúsculo ser pelas portas.

De repente ouço um gemido terrível. Meteste as unhinhas por debaixo da porta, sua doidinha. E ainda eras tão pequenina. A dor só durou um momento, felizmente.

Quarto episódio. Fui correr uma hora, como habitualmente, de manhã. Quando voltei tinhas destruído e engolido os comprimidos anti-insuficiência renal do Jeremias. Passaste o dia na clínica, a soro. Por precaução. A nossa doutora explicou-me depois que os comprimidos não te fizeram mal, mas podias ter ido muito facilmente desta para a melhor.

Neste momento estou no sofá a escrever quase só com uma mão, porque tu, meu amor, queres estar sempre ao pé de mim, em cima de mim, em mim, a dar-me o teu carinho, a tua dedicação incondicional e absoluta, a fazer-me festinhas, a olhar para mim, enquanto fazes aquele som que exprime a tua felicidade total.

É por isso que não me preocupo: Sei que tu sabes o que eu sinto por ti, se é que é possível perceber. Sei que o que tu sentes por mim é exactamente igual. Parabéns, Amélinha. Parabéns, Gááta, o teu verdadeiro nome.

As três vozes que se ouviam na noite

Conta a história há décadas mas arrepia-se sempre. Era um puto adolescente, vivendo a pouco quilómetros do Malavado, no meio dos barrancos e pinheiros do Alentejo, há quase 70 anos.

O meu pai tinha ido a um baile, dançar com as moças, conviver e divertir-se, depois de andar a trabalhar no campo e a cuidar dos porcos e do que mais houvesse para fazer. A diversão acabou já era noite escura.

Sem casas, sem luzes, sem pontos de referência, só mesmo aquela gente rija e experimentada desde nova poderia orientar-se por ali. Não era paisagem nocturna agradável e acolhedora, que se recomendasse a quem quer que seja.

Não queria que o pai se chateasse com ele, e já era hora de voltar para casa, apesar das condições adversas. Pôs-se a caminho.

Às tantas, começa a ouvir três vozes, ao longe. Uma mais acima, uma mais abaixo, uma mais a meio. As vozes iam conversando e rindo, alto, com grande estardalhaço. “Ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah. Oh, oh, oh, oh, oh, oh, oh, oh, oh, oh. Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi”. Continuou.

As três vozes foram-se aproximando, mais e mais e mais. Já estavam mesmo em cima dele, ao lado, a centímetros, a milímetros. Aquilo começou a causar cada vez mais confusão, comichão e espanto ao miúdo. Foi acelerando o passo progressivamente, sem fazer ideia do que se passava.

Quando estava a metros de casa, já devia estar prestes a bater os recordes de velocidade, resistência e triplo salto daquela época, há quase sete décadas. Entrou dentro de casa, agradecido por lá ter chegado.

Durante muito, muito tempo, evitou ficar nos bailes até tarde e depois ter que fazer aquelas travessias arrojadas e impressionantes no meio do escuro e dos barrancos, até chegar a casa.

Continua a relatar a história, ainda hoje. Sempre com a mesma convicção. Sempre com a mesma emoção.

O Tarzan que veio de Goa

O homem jovem, bem disposto e com aspecto agradável tocou à campainha, esperando que o atendessem na rua. Espantou-o muito que, naquela tarde quente, algures nos finais dos anos 1970, o mandassem entrar, o acolhessem com amizade e carinho, lhe dessem cama e mesa. Então, era meu tio, cunhado da minha mãe e do meu pai, porque não havia de ter essa recepção?!

Bem, o meu tio era negro, bem escurinho, não era coisa em que não se reparasse. Por isso, não estava nada habituado a ser acolhido da forma normal, decente e devida a qualquer familar, e aos seres humanos em geral.

Mas foi o que aconteceu, evidentemente. Já que o português dele, na altura, não era o mais fluente, trataram-lhe de todas as papeladas e burocracias necessárias.

O meu tio pegava nos pirralhos – eu e a minha irmã – e íamos passear à beira rio. Havia uma árvore, com uma corda, ele agarrava em nós e lançava-se, pendurado nela, gritando que era o Tarzan, para nos fazer rir a bandeiras despregadas. E repetia aquilo todas as vezes que quiséssemos.

Ao almoço, fui ouvindo ao longo dos anos as conversas impagáveis entre o meu pai e o meu tio. O meu tio falava francês e inglês na perfeição, mas o português não era a praia dele. O meu pai dizia as palavras muito alto e com as sílabas muito bem divididas, para que ele percebesse. Ele ficava a olhar para o meu pai.

Conversas em quatro línguas

Com os anos, o meu inglês foi melhorando, com a ajuda das cartas nessa língua, trocadas ao longo da vida com o meu tio. Assim, as conversas familiares ao almoço ganharam uma nova componente. Enquanto o meu pai e o meu tio se entendiam mais ou menos, através das linguagens universais que todos os homens usam para se compreenderem, havia uma guerra surda e carinhosa.

Eu, queria era falar em inglês com o meu tio, o que, na verdade, era bastante egoísta. E todo o resto da família, evidentemente, exigia que usássemos o português. Eu e o meu tio éramos só dois, mas ganhávamos, habitualmente.

Quando a sua filha linda e doce foi crescendo, eu e a miúda criámos, também, outras formas de comunicação. Ela falava-me em francês, eu respondia-lhe em português, e dialogávamos sempre na mais harmoniosa das perfeições.

Quando ela se casou com um simpático e divertido polícia espanhol, comecei a tentar dizer as mesmas frases em português, portunhol e luso-francês. O que eu sei é que as minhas conversas com a miúda, e, depois, com o marido, sempre envolveram muitas e muitas gargalhadas.

O meu tio, que é goês, viveu em França e trabalhou na Arábia, mora agora nas Filipinas, e já me ofereceu casa lá. O filho vive em França, junto da mãe, a minha querida tia, que parece ter sempre 15 anos a menos do que a idade real. A filha, em Espanha, com o marido e as pequenotas. Já não os vejo há algum tempo. Tenho saudades das conversas com pseudo-tradução simultânea em quatro línguas.

A vida é uma Bola de Berlim com Chocolate

Abro a caixa do correio às 11H30 e dou de caras com um novo ofício da Segurança Social, intitulado “Pedido de Elementos”. O quê? Não estava já tudo resolvido? Já estou tramado outra vez?

Sigo para a Loja do Cidadão. A esta altura do dia, já acabaram as senhas de atendimento há muitas horas. No entanto, encontro a funcionária simpática e competente que tinha resolvido em poucas semanas o processo do subsídio de desemprego, o qual inicialmente ameaçava durar meses a estar concluído.

É ela que me explica a carta e me informa de que a Segurança Social, agora, quer um documento das Finanças com todo o histórico das minhas actividades de trabalho independente, o início e encerramento de cada uma, para saber se ficou tudo regularizado. Manda-me para o piso de baixo, para a secção das Finanças.

Passo lá o dia todo, até obter a dita certidão, pela qual pago cinco euros. Como a minha preciosa aliada é do turno da manhã, volto no dia seguinte, às seis, para lhe entregar directamente o papel. Há 20 e tal pessoas à minha frente.

Passo-lhe a valiosa folha. Diz-me, como no dia anterior, que isto não interfere com o andamento, por ela desbloqueado na semana anterior, do meu subsídio de desemprego. É uma espécie de investigação paralela, para que os serviços da Segurança Social saibam se está tudo certinho com o meu historial.

Volto para casa e desloco-me à Junta de Feguesia, para fazer a minha apresentação. Tal como no dia em que me foi deferido o pedido de subsídio, continuo inexistente no sistema. Volto à Loja do Cidadão. A funcionária gentil e paciente manda-me para a secção do Instituto do Emprego, onde passo mais umas quantas horas.

Fico a saber que agora já estou no sistema, depois de mais este procedimento burocrático, e dão-me uma carta, com a data da próxima apresentação.

A vida é uma Bola de Berlim com Chocolate, como a que devorei com ar sonhador nessa manhã. Temos que levar com a parte massuda, espessa e pegajosa, e com os grãos duros, brancos e enjoativos de açúcar, antes de chegarmos ao que interessa. Quando finalmente atingimos o delicioso, suculento e consistente chocolate, bem escuro e brilhante, parece que estamos no céu…

Aquela senhora meiga do lenço preto

Aquela senhora meiga e doce de lenço preto na cabeça achava que eu e a minha irmã, gaiata linda e desembaraçada de olhos azuis, éramos muito mal tratados, só porque a minha mãe nem sempre nos deixava fazer o que queríamos.

Também se preocupava muito com o genro, o seu belo genro, uma jóia de moço, que ela adorava. Achava que o meu pai era vítima do feitio da minha mãe, apenas porque ela às vezes não lhe fazia as vontades. Em suma, a minha avó gostava de tal maneira da família, dos filhos, do genro, dos netos, que ficava doente se achava que algum dos nossos caprichos ainda estava por satisfazer.

Mas a verdade é que nós tínhamos uma vida imensamente feliz, graças aos nossos pais, que se esmifravam completamente ao longo do ano para que depois, no Verão, pudéssemos todos ter umas férias de sonho, na casa da avó.

Íamos para a praia e ficávamos lá até ao fim do final. Na altura, a Zambujeira tinha meia dúzia de casas a circundar o seu mítico muro, e o Malavado devia ser pouco mais, além da casa da minha avó e os pinheiros. Vínhamos da praia e tomávamos banho na rua, com a água do poço. Aquilo para mim e a minha irmã era uma maravilha do outro Mundo.

E quando chegavam os outros tios, imigrados, como os meus pais, na Alemanha e em França, a coisa ia até aos píncaros. Havia prendas, brinquedos, doces, gomas em forma de cãezinhos. Há 40 anos. Era mesmo espectacular.

Infelizmente para ela e para nós, a minha avó não foi daquelas que duraram até à idade quase adulta dos netos. Estava eu ainda bem longe dos meus 20, e fui passar uns dias lá abaixo. Adorava-a, e ela a mim. Embora não fosse muito velha, já estava bastante doente e muito acabadinha.

Mesmo naquele estado, e poucos dias antes de se retirar desta breve passagem, ainda teve forças para dar um enorme prazer ao nétinho querido. Foi fazer, sabe Deus como, as fatias de ovo (fatias douradas: pão frito envolvido em ovo e muito açúcar) que sempre fizeram saltar de felicidade os seus netos. Aquelas fatias de ovo foram uma das coisas mais deliciosas que comi em toda a minha vida. E nunca vou esquecê-las. Tenho saudades de ti, avózinha.

A miúda

A miúda levou cada um dos companheiros alcoolicamente bem dispostos a casa, uns conhecidos há anos, outros há minutos. Os amigos jovens universitários, ela adolescente, tomava conta de todos.

Fazíamos festas em todo o lado e a toda a hora, à volta da voz dela, de uma garrafa de qualquer coisa e de uma guitarra. Os vizinhos queixavam-se muito.

Íamos para a praia de manhã, de tarde, de noite. No meu caso, deu direito a uma queimadura bem grave e perigosa, de não sei quantos graus.

A míuda era uma miúda mas já percebia de medicina. Colocou-me uma pomada muito especial em toda a superfície das costas, tentando reduzir as hipóteses de cancros futuros.

Houve uma passagem de ano em que 15 minutos bastaram para eliminar a breve e fugaz existência de um litro de Passport Scotch, o que levou a atravessar portas, rolar em muros à beira do abismo e chegar directamente à passagem de ano da década seguinte, imaginariamente. A miúda estava lá para apanhar os cacos.

Houve Festas do Avante com strip-teases semi-integrais, noites dormidas ao relento mas com o estômago bem aquecido. Houve casamento, mudança de casa, alterações de vida, divórcio. A miúda assistia.

Houve debates e divergências. A miúda é a pessoa mais sincera que conheço. Fico a remoer e a enrolar-me nas verdades que me diz, sabendo que tem razão, não conseguindo admiti-lo, graças à minha casmurrice.

A miúda está lá, com o marido, o Homem dos Livros, a mascote linda e medrosa, a filhota que tem toda a energia que ela e o companheiro talvez tenham tido quando eram pequenotes. A miúda nunca se vai embora. Graças aos Céus.

Já está tudo resolvido!!

Disseram-me que era um profissional com sucesso absoluto mas que tinham que reduzir os custos, despedindo-me. Fiquei orgulhoso e preocupado, ao mesmo tempo.

Procurando trabalho por todos os meios possíveis e imagináveis, pedi o subsídio de desemprego.

Parecia garantido à partida, de acordo com o conselho tribal dos amigos advogados, especialistas variados e profissionais da área laboral.

Três semanas depois, chega a resposta por correio. “Indeferido”. Hm?! Indeferido, indeferido… Épá. Estou tramado.

Corro para o Instituto do Emprego. Traduzem-me o ofício, e percebo que tive uma actividade independente aberta em 1997, encerrada correcta e legalmente em 2014. Mas a Segurança Social não foi informada de que a actividade foi encerrada.

Para a Segurança Social, eu tinha uma actividade aberta, estava a trabalhar e não tinha direito a subsídio. Comprovo o encerramento da actividade, entrego os documentos ao Instituto do Emprego, que alerta a Segurança Social.

Espero duas semanas. E fico a saber que o processo pode demorar quatro meses a concluir-se.

Às cinco da manhã já estou na Loja do Cidadão, com várias pessoas à frente. A funcionária delicada e eficiente coloca carácter de urgência no processo, reenvia-o para os serviços da Segurança Social e diz-me para regressar duas semanas depois.

Assim faço, de novo às cinco da manhã e mais uma vez com meia dezena de pessoas à frente. Dirijo-me à mesma senhora. O processo está parado.

Telefona para cinco números diferentes da Segurança Social, à minha frente. Ninguém atende. Mostra-se empenhada e preocupada. Envia um e-mail para “L.”, alguém que poderá desbloquear a dramática situação. Manda-me regressar no final da semana. Hoje.

Chego às cinco. Ninguém à frente. Espero três horas e meia, termino de ler o meu livro e entro, às oito e meia.

O processo está desbloqueado. Falta ligar para o Instituto do Emprego, e a funcionária perfeita faz isso mesmo. Minutos depois, o desfecho. “Vai receber a prestação de XX€XX, durante YY meses”.

Quase beijo a funcionária-anjo, e “L”, que desbloqueou a situação. Seguro-lhe a mão com gratidão e saio. A minha vida está encaminhada durante YY meses.

Gáta em P.S.E.C.!

Costumava ser uma jovem pouco sociável. Quando chegava alguém, ia logo esconder-se e nunca mais a viam.

Ultimamente, já não é bem assim. No outro dia, esteve cá o meu grande amigo, assistente técnico de múltiplas emergências e especialista em resolver problemas.

Ainda chegou a esconder-se, aparentemente por pouco tempo. Mas a meio da nossa conversa, a minha Amélinha, a “Gáata!!” (o seu verdadeiro nome), já andava cá pelo chão.

O rapaz que percebe de computadores estava sentado, a verificar que estava tudo bem com o sistema operativo do meu. Nas mãos dele, brincava distraidamente uma bola de papel.

A pequena pantera negra começou a atacar, alegre e entusiasticamente, esse brinquedo involuntário. O meu amigo segurava o objecto esférico, largava-o, ela dava umas patadas no novelo de papel, ele voltava a agarrá-lo…

Estiveram nisto uns minutos, até que a Gáta pegou na bola com a boca, e, com ela bem presa nos dentes, foi a correr para a cozinha, ronronando ruidosamente. Ele levantou-se, espantado e divertido. “Hmm?! O que aconteceu?”.

Expliquei-lhe que isto é o que ela faz normalmente comigo, ou seja, quando está à vontade e sem medo. Já em duas visitas anteriores, de outras pessoas, também andou menos tempo por cima dos armários, e mais pelo chão, menos preocupada em fugir dos estranhos.

A minha felina adorada está em P.S.E.C.: Processo de Socialização em Curso!