“Você deve cinco mil euros à Segurança Social”

Chego ao balcão da Segurança Social e lá está a senhora M.F.A., rosto escuro, sorridente e bonacheirão. Explico-lhe o que se passa. A Segurança Social anda a pedir-me todas as semanas algo que eu já requeri, paguei e entreguei duas vezes (exactamente o mesmo documento), o histórico de actividade de trabalhador independente de toda a minha vida.

Com as unhas pintadas, os óculos e as faces cheias de serenidade, M.F.A. acha que aquilo é uma duplicação de tarefas, uma falha de informação interna, um não cruzamento de dados.

Mesmo assim, pelo sim pelo não, vai remexer a fundo no meu processo de trabalhador (desempregado), pesquisando no computador e telefonando para a secção de actividades independentes.

Tenho uma actividade que comecei em 1997, fechei em 1999, abri em 2004, terminei em 2005 e reabri em 2013, para encerrar de vez em 2014. OK, tudo bem.

Vamos ver se isto gerou alguma dívida… Bem, você tem uma dívida. E uma dívida bem grande”.

Entre telefonemas sucessivos para a secção de trabalhadores independentes, vai comentando. “Isto não faz sentido nenhum. Você não pode ter esta dívida. Isto não bate certo”.

Sempre ao telefone, esperando meia hora de cada vez para ser atendida, fala com várias colegas da tal outra secção. “Abra lá o processo, diga-me se eu estou a pensar bem. Não, o contribuinte não pode ter estas dívidas nestes anos”.

Parece um filme de Hitchcock, mas comigo. Acaba por desligar o telefone e esclarecer-me. “O seu processo gerou aqui uma dívida de CINCO MIL EUROS, mas não fazia sentido. Era referente a dez anos em que você não teve actividades de trabalho independente, e estava a descontar trabalhando por conta de outrem, por isso não fazia sentido. Já está tudo resolvido, já está tudo colocado a zeros. Pode ir embora descansado, não se preocupe. Não, espere.

Nesta altura M.F.A. dá-me um documento oficial emitido por ela, assinado por ela e com observações suas a caneta de tinta azul. A folha de papel A-4 que contém o meu destino mostra e prova que a minha dívida à Segurança Social é de 00000000. Abaixo, as observações escritas à mão esclarecem que o processo foi resolvido e limpo por M.F.A. Seguro-lhe a mão carinhosamente e abençoo-a.

Vejo o correio duas vezes por dia. Nesta manhã chego a casa, acaba de vir uma carta, em papel, em correio de papel… Diz que a situação que levou ao pedido do histórico de trabalhador independente já “foi rectificada”. Hum?!?!

Ela despede-se de mim e garante que algo vai acontecer

Percebo, pelo sotaque, que não é portuguesa. Está de pé ao meu lado, alta, cabelo comprido, escuro, encaracolado, vestido de Verão, casaco de malha leve e fino por cima. É faladora e sociável. Começamos por nos queixar da burocracia, d’O Sistema Kafkiano que não faz sentido.

Conto-lhe porque estou ali, mais uma vez, àquelas horas. Acaba por relatar-me algumas das suas experiências burocráticas em Portugal, diz-me que reclamou, exigiu, protestou. Às seis, ela é o número 11, eu o número 12.

Em vez de ouvi-la, sou eu a explicar-lhe qual é a nova peripécia que me traz outra vez a estas filas de espera. Convida-me para o café e o pequeno-almoço, que se concretizam um minuto depois, quando a pastelaria abre.

Conversamos sobre voluntariado, catolicismo, cristianismo ortodoxo, literatura. Esta figura feminina, que parece não ser totalmente real, prende-me o olhar. É uma cidadão do Mundo, mas, puxando por ela, consigo que me revele a sua nacionalidade romena. Há muitos anos que já se sente portuguesa.

O seu primeiro e último amor é Dostoievski, mas não pode esconder a sua paixão por Tolstoi, Gogol e Mircea Elíade, ou a sua curiosidade relativamente a Alexandre Fadéiev.

Falamos e falamos e falamos. É uma intelectual que adora as tecnologias, e quando a bateria do smartphone de última geração se descarrega fica triste. Usa o meu chaçomóvel para que eu lhe mande um pedido de amizade.

Continuo a falar sobre mim. Voluntário de duas associações, jornalista desempregado, alvo de uma reestruturação, 45 anos de idade, 30 a trabalhar, desde os tempos como servente das obras às mais de duas décadas e meia de jornalismo.

Dinâmica, activa, enérgica, consegue carregar o telemóvel sofisticado, dar-me sugestões de meia dúzia de livros para ler e de uma dezena de sites, páginas, grupos, anúncios e oportunidades de trabalho às quais eu tenho que concorrer. Acha que as pessoas devem ajudar-se umas às outras, e está firmemente determinada a fazê-lo por mim.

Às dez e meia, chega a minha vez, depois de ela ter sido atendida. Com os olhos brilhantes a brincar em modo dançarino, garante-me que vamos estar em contacto, que vai ajudar-me, que conhece muita gente e que algo tem que acontecer.

Despeço-me deste ser humano que marcou quatro horas da minha vida, dirijo-me ao balcão e sou atendido.

Morrerá sem ter absolutamente nada

Cabelo numa pasta espessa em forma de boina, rosto triste totalmente indiferente à vida. Roupa coberta por sucessivas camadas de pó e sujidade. Corpo e vestuário não vêem água há muito, muito tempo.

O Homem do Semáforo, com a lata das moedas. Passo por ele regularmente, de carro. Está lá sempre. De manhã, à tarde, pela noite dentro.

Alguém uma vez comentou: “Como é possível uma pessoa chegar a um estado de degradação tão grande?”…

Este homem, com a sua existência mínima, aceita uma moeda ou uma sandes, e nenhuma outra ingerência no seu dia-a-dia.

Há seres humanos que as equipas de rua das instituições, até agora, nunca conseguiram ajudar. Homens e mulheres que não se deixaram apoiar. Se alguém se aproxima, seja ou não de uma instituição de solidariedade, acontece uma de duas coisas.

Ou têm a mesma reacção que teriam se uma nuvem tapasse imperceptivelmente o Sol por um segundo… Ou, assustados, intimidados e invadidos, movem-se de repente com um salto, viram costas, fogem, correm, desatam aos gritos.

Um dia, como todos nós, o Homem do Semáforo vai morrer. Sem uma cama. Sem um tecto. Sem um amigo. Sem alguém que lhe faça um funeral e lhe diga um último adeus. Sem nada. Absolutamente nada.

O contador fantasma

29 277, leio no contador. Anoto o valor e dirijo-me à companhia das águas, a dez minutos, para alterar a titularidade do contrato para o meu nome, com os impressos e documentos necessários.

Uma mulher vende pequenas camisolas de bebé, de malha, num banco de jardim, enquanto preencho os formulários – excepto as partes que não percebo.

Entro na companhia, entrego os impressos e a caderneta predial.

Chegamos à parte da leitura do contador. “Não, isto não é possivel. Não é possível que alguém tenha gasto 900 metros cúbicos de água em dez dias, nem com uma inundação. Não é possível. Não lhe posso aceitar isto assim”.

 Bom, eu posso voltar lá e tentar ver o que fiz mal… Dez minutos.

Tudo bem, eu espero por si, depois não precisa de tirar senha”.

Fico a olhar para o armário do contador. Anotei bem, ainda não estou completamente louco. Continuo a olhar. Um contador ao lado de outro. Um de um andar, um de outro… Mas também há um armário com dois contadores, em baixo. Um de um andar, um de outro.

Olho com cuidado e atenção. Os contadores de cima são os da luz. Os de baixo os da água. A leitura é 203 675. Confirmo várias vezes. Regresso.

Verifica-me tudo, fotocopia a caderneta predial, o cartão do cidadão caducado. Estou mesmo a ver que, no fim de guardar as cópias e me dar os originais todos, o diligente e amável funcionário ainda vai acabar por esquecer-se de me pedir a leitura.

Por mera maldade, espero e não digo nada, a ver se ele se descose. Ao fim de um ou dois minutos, depois de registar e oficializar o processo, pergunta-me: “Então, nesse caso, qual é a leitura”?

No meio de tudo, apenas repus os níveis de açúcar gastos na corrida das seis da manhã com uns escassos Dokyos achocolatados, de pacote. Nem uma mísera Bolinha de Berlim, nem sequer um Palmier…

“Diga-me, passou na inspecção?!” “Ah, passam sempre!!”

Meia hora antes da inspecção, ligo para a EDP. A chamada é paga e demorada. “Não, não tem nenhuma inspecção marcada!”. “Han?! Tenho aqui o mail que o comprova!!”. “Então mande-me o mail.”.

Ligo os dados, mando o mail e pago, porque já tinha gasto o limite mensal. Volto a telefonar e a pagar. “Hm?! Quem é que lhe disse isso? A sua inspecção está marcada para as 11H00, está tudo certo. O Engº Pedro já deve estar aí, ou quase a chegar!”.

Respiro e espero. Às 11H10, chega o Engº Pedro. O Engº Pedro deve ser um cinquentão cinzentão de sapatos pretos de couro, fato cinzento e gravata da mesma cor, a queixar-se do calor sufocante e a exigir papelada atrás de papelada…

O Engº Pedro entra. É um rapaz de menos de 30 anos, calções brancos quadriculados, T-Shirt colorida, óculos escuros alaranjados, cabelo rapado, tablet, smart-phone e mochila, bem disposto e descontraído.

Desconfiado, não me deixo levar pelas primeiras impressões, de pé atrás até ao fim. Fotografa a caderneta predial e o registo da conservatória, acha que não faz sentido nenhum eu dar-lhe aquilo, ele digitalizar e enviar para o serviço respectivo.

A planta, o plano do aquecimento, dos caixilhos, a licença de construção, tudo referido no mail de confirmação da inspecção… É como se nunca tivesse ouvido falar nisso, felizmente. Quanto ao tubo que me parecia colocado num lugar meio estranho, a mesma coisa: Não existe. Trocamos animadas impressões sobre o calor, a paisagem, a vizinhança, o que fazer quando uma criança pula, salta, rebola, grita, canta e esperneia sem parar. Gargalhadas aqui e ali.

Com os seus sofisticados dispositivos electrónicos vai medindo, estudando, aferindo, fotografando, eficaz e rapidamente. Pouco mais de 15 minutos depois (o mail de confirmação referia uma a quatro horas), a inspecção energética está terminada e um autocolante a referir isso mesmo afixado. O Engº Pedro não me pede os 60 euros obrigatórios que a EDP referira ao telefone. Pergunto-lhe se está tudo bem, se não falta nada. Responde que sim, que já está. “Passou?! Chumbou?!”. “Ah, isso, passam todas!! É só uma questão de classificação!”.

Talvez um dia, daqui a muitos anos, a Humanidade chegue a esta conclusão: De facto, a nossa breve passagem por estas bizarras paragens é afinal um daqueles saudosos gelados tradicionais, em cone triplo, com três sabores. Chocolate negro do Equador; chocolate de Oreos originais de chocolate; no fundo, por baixo de tudo, obviamente, Nutella. E, vários centímetros acima, duas coberturas a coroar. De Brownies, naturalmente, e de bolacha americana – com pepitas de chocolate negro, como é evidente.

No palmier é mais difícil encontrar o chocolate

O moço sorridente como um desenho animado esclarece-me. Para conseguir o dispendioso certificado energético de que preciso, é necessária uma exorbitante inspecção energética. A inspecção exige que imprima uma caderneta predial.

Dias depois telefonam-me, fazem a marcação, enviam-me um mail. Às voltas com infindáveis burocracias da Segurança Social, não penso mais no assunto.

Num balcão da companhia das águas descubro que não é complicado nem custa dinheiro obter a tal caderneta predial.

Chego à conclusão que posso ter anotado mal a data da inspecção e volto a abrir o mail. Descubro que, além da caderneta predial, tenho que pedir à Conservatória do Registo Predial “a conservatória do registo predial da habitação”.

Após algumas voltas, encontro o edifício da Conservatória e peço uma senha. Tenho cinco pessoas à frente. Vou à pastelaria fazer tempo.

No regresso, vejo ao lado do edifício onde entrara um outro, muito parecido. Tinha entrado na conservatória do registo civil, em vez da conservatória do registo predial. Tiro nova senha. Tenho três pessoas à frente.

As funcionárias são simpáticas. Para o cartão de cidadão das crianças, e para as respectivas fotos tiradas na altura, já têm uns bonequinhos guardados para as encantarem e distraírem enquanto recolhem a cobiçada e involuntária imagem.

O rapaz do meu lado discute com o filho, porque joga no tablet dele, carrega onde não deve e deixa-lhe o mini-computador com as coisas todas desorganizadas. Parece ser essa a sua única preocupação: O seu puto deverá não o interromper, não o perturbar e deixar o tablet em boas condições após o seu uso, como se não lhe tivesse tocado.

A funcionária que irá atender-me mostra-se delicada, gentil e paciente com o velhinho com quem está a falar. Explica-lhe tudo. O papel de que precisa, aquele que não tem que levar, onde deve ir e o que tem que fazer.

Pergunta-me se preciso de uma cópia certificada (20 euros) ou não certificada (seis euros). Fico a olhar para ela. Consulto o mail com a confirmação da marcação da inspecção e a lista dos documentos solicitados. Só tenho que pagar seis euros.

Na verdade, a existência assemelha-se mais a um palmier recheado com chocolate, do que a uma Bola de Berlim com chocolate. O chocolate está profundamente escondido e misturado com a massa. A massa é adocicada, grossa e complexa. Nunca sabemos muito bem se já estamos finalmente no doce e compacto chocolate interior ou se ainda nos encontramos às voltas com a espessa e açucarada massa que o envolve.

“Ele não percebia como é que eu sabia que me enganava”

O porteiro do edifício de luxo, homem rechonchudo, alto e grisalho, mete conversa com a loira magra, que chegou de carro há momentos. Ela comenta que, onde há agora lugares de estacionamento pagos, antes era a estrada, e ainda se nota, pelo alcatrão. Ele ataca a existência de parquímetros, considera-os uma aberração legal. “Nós pagamos um Imposto Único Automóvel. Se é um imposto único, é um imposto único… Porque pagamos mais do que isso?”.

Continua a conversar animadamente, criticando a existência de estrangeiros em Portugal. E comenta que viveu vários anos no Brasil, na Venezuela e em Timor.

A loira queixa-se de que, quando o pai estava doente, transformado num vegetal imóvel e sem reacção, cobraram-lhe várias vezes o serviço de transporte em ambulância. E afirma que, quando teve que ser operada ao cotovelo e ficou em casa durante uma porção de meses, sem rendimentos e com dois filhos, a Segurança Social não lhe pagou um único cêntimo.

Chega uma segunda loira, bem volumosa. O porteiro em part-time, reformado, conversa muito alegremente com as duas. Afirma que ele e a sua mulher vivem há 13 anos em casas diferentes, e que está muito bem assim.

As loiras dizem cobras e lagartos dos seus antigos maridos. A magra: “A melhor coisa que fiz foi tirar a carta. Ele não percebia como é que eu sabia que ele estava a enganar-me… Pois, eu passava de carro, para baixo e para cima, e via que ele não estava na oficina”.

A loira que ocupa mais espaço: “Ele trabalhava fora, e era assim que me traía. Quando estava fora. Ainda tentou metê-la lá em casa, eu é que não fui nisso! Agora olho para tudo nos homens. Até a maneira como pensam! Podia estar com um, mas não quis. Aquilo via-se logo… Nem educação tinha”.

A magra: “Ele não me quis dar um tostão. Dizia que a minha filha já tinha 18 anos, já tinha namorado, já fazia tudo… Também já podia ir trabalhar! Isto é coisa que se diga a uma filha?!”.

O porteiro do edifício de luxo fala-lhes, muito insistentemente, do Chico Manivela, do Manuel Fisgas e de um homem que roubou um bigode… A polícia pensou que era ele, e veio atrás dele. Provavelmente por cortesia, ou porque o porteiro insistiu em fazer-lhes companhia durante várias horas, as loiras riem-se de vez em quando. A magra comenta: “E pensar que tudo isto começou por causa dos lugares de estacionamento!

Uma hora e meia depois, são rapidamente distribuídas as senhas do dia para a Segurança Social. Uma das loiras fica com o número 35.

As gatas não usam burqa

Será que às senhoritas muçulmanas é permitido fazer surf em fato de surf completo, ou terão de flutuar na prancha desnudadas, e, se uma rapariga calhar a ser detectada na tábua em fato de surf completo, exigir-se-á que retire, do interior do fato de surf, a sua identificação religiosa, podendo posteriormente manter o fato envergado, caso seja católica, protestante, testemunha de jeová, evangélica, mormon, ateia, agnóstica, budista ou hindu?

Coloquei esta questão às minhas gatas (a “Gáata!” e a Matilde), e aos meus gatos (o Chiquinho – o Felino Emigrante -, e o Jeremias, o Gato Sexual). Debatemos o assunto em conselho tribal felino e humano. Chegámos a várias conclusões.

Ver uma mulher tapada dos pés à cabeça numa capital europeia, cara e olhos atrás de um pano preto e opaco, não nos parece bem. Gostamos de ver o rosto e o olhar das gentis donzelas com quem falamos, sejam velhas, novas, gordas, magras, lindas de morrer ou com buço e bexigas. Achamos que o sorriso de uma mulher é umas das duas ou três coisas mais belas à face da Terra, deve ser preservado e divulgado: O que é bonito é para se ver.

Agora, se as mulheres daqueles países quentes onde toda a gente grita cada vez que se compra ou vende alguma coisa têm um gosto próprio… Se elas preferem ir à praia sem terem que mostrar obrigatoriamente os braços, as pernas, os rabos, o cabelo e metade do peito, não vemos que o mundo vá acabar por isso. Provavelmente, no caso de algumas delas é pena, e para outras talvez até seja boa ideia.

A “Gáata” e a Matilde tentaram pôr-se no lugar delas, com alguma dificuldade. Mesmo que elas tivessem o hábito de ir à praia, ou de se estenderem ao Sol na rua, seria diferente. As lindas pernas, rabos, maminhas e mamilos da “Gáata” e da Matilde estariam bem protegidas pelo fato natural com o qual elas nasceram e hão-de viver sempre.

As gatas não usam burqa.

Quando o monstro micro-ondas chegou a minha casa

Quando o monstro micro-ondas chegou a minha casa, talvez tivesse uns 14 anos. O meu pai era camionista, nos anos 1980. Carregava todo o tipo de coisas. Pedras, areia, vinho, bananas, bacalhau, tudo aquilo de que alguém pudesse lembrar-se.

Muitas vezes, acontecia uma carga estragar-se, perder-se parcialmente, ficar caída no meio da estrada. O meu pai nunca foi pessoa de deixar as coisas desperdiçar-se, fossem elas quais fossem.

De vez em quando apareciam bolachas de marcas e sabores estranhos e desconhecidos, cacau puro, um bacalhau a secar num canto da casa, um cacho de bananas verdes que amadureciam no domicílio, segundo técnicas horto-frutícolas ancestrais. Nesse dia foi diferente.

Naquela família, quem amava, acarinhava e venerava mais os livros era a minha mãe… O meu pai tinha consciência disso.

Naquela fria noite de Inverno, há mais de 30 anos, aconteceu um milagre literário. Do mesmo buraco negro donde surgiam os bacalhaus, as bananas, as bolachas e muitas coisas mais, apareceram livros. Mas não eram uns livros quaisquer.

Eram obras que, hoje, têm 70 anos de idade. São relíquias em si, materialmente, mas também pelo conteúdo. As Lendas e Narrativas, de Alexandre Herculano, estão ali ao lado, na estante dos livros antigos.

Havia, também, O Monstro Micro-Ondas, que veio mesmo a calhar para divertir e encantar dois adolescentes ávidos de aventura e novidade, e a sua mãe, que partilhava das mesmas necessidades. Algumas centenas de páginas de ficção fantástica, que não faço ideia onde se encontram hoje. Li-as, fascinado.

E havia… Anna Karenina, de Tolstoi! Numa edição de 1946. Que sorte nós tínhamos, em ter um pai tão diversificado e providenciador. Devorei a história dos amores e desamores da jovem e linda aristocrata russa, dividida entre os deveres conjugais que a sociedade rígida e conservadora da época e o casamento lhe impunham, e as paixões incontroláveis que lhe palpitavam permanentemente no coração.

Esta edição estava incompleta… Passaram uns anos até a minha mãe conseguir encontrar e oferecer-me um exemplar integral, para que pudesse continuar a viver aqueles dias intensos, poéticos e dramáticos, entre bailes de sociedade, beijos roubados de fugida e sofrimentos arrebatados.

A luz, que para a infortunada tinha iluminado o livro da sua vida com os seus tormentos, as suas traições e as suas dores, rasgando as trevas, brilhou num clarão mais vivo, vacilou e extinguiu-se para sempre”, lê-se, no final da sétima parte. Acabei por reviver esta frase ao longo da vida, em várias edições diferentes da obra. E é das frases mais belas que conheci em toda a minha existência.

“Ouvi dizer que chegaste a casa cheio de sangue”

Toq, toq, in a mina ills, toq toq!”. Tinha uns dez anos, e achava que estava mesmo a cantar em inglês, uma música que se chamaria Talk Talk, de uma banda do mesmo nome.

Quem estava a ouvir eram os miúdos do Bairro da Caixa, os mais temíveis de todos. Estávamos no 5º ano (aquele que se seguia à quarta classe, ou quarto ano), que fazíamos a uns bons quilómetros de casa. Íamos e vínhamos diariamente de autocarro, ficávamos lá o dia todo.

Acharam tanta piada que exigiram que continuasse e repetisse. Puto estúpido, mimado e teimoso, recusei-me… O resultado foi pior. Acabei obrigado a entoar o hino dentro de um contentor do lixo.

Mas foi só o princípio. A partir daí, aqueles pequenos marginais nunca mais me deixaram em paz. Não podia estar descansado. Nunca sabia quando iam aparecer para me aterrorizar, exigir o dinheiro do lanche, ameaçar e tudo o mais que lhes passasse pela cabeça.

Ou era o maluco que dizia que agarrava numa pedra e levava ossos e tudo à frente, ou eram os seus amigos que me arrastavam para trás da escola dizendo que me espetavam uma seringa nas veias… Nunca sabia quando é que iria apanhar com eles, nem o que ia acontecer a seguir.

Foi assim durante cinco anos. Nessa altura, conheci uma pequena tropa de três ou quatro jovens que se estavam meio nas tintas para a escola, mas engraçaram comigo, não me chateavam e tratavam-me bem. Respeitavam e achavam bem que fosse um bom aluno, interessado e sempre com excelentes resultados.

Entre eles, havia um rapaz que parecia razoavelmente endinheirado, inteligente e bastante rebelde. Embora bem colocado na sociedade, percebi depois que os seus amigos eram os mânfios mais terríveis e temidos da zona.

Interessou-se pelo meu caso. Não achou bem que o miúdo demasiado educadinho, aluno de topo do nono ano de escolaridade e um tanto infantil vivesse permanentemente no medo. O que sei foi que, um belo dia, os amigos dele fizeram uma espera aos meus perseguidores…

Na manhã seguinte, o líder do bando aterrorizador veio falar comigo. “Ah ah… Ouvi dizer que ontem chegaste a casa cheio de sangue… Ah ah”. Eu respondi “Ah ah”, mais qualquer coisa, de novo “Ah ah”…

Aquela linguagem cifrada de rua foi a forma de eu perceber que ele, o temível chefe, tinha sido acagaçado. Fora submetido por uma força maior. Acabaram-se os problemas. Para sempre. Assim foi nos 30 anos seguintes, até hoje.

Nunca mais o vi o rapaz que tornou tudo isso possível. Deduzo que tenha adquirido um bom lugar na sociedade, casado, sido pai… Mas não faço a mais pequena ideia. Amigo perdido nas voltas que a vida dá, e que certamente nunca lerá estas palavras, Obrigado!