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“Ouvi dizer que chegaste a casa cheio de sangue”

Toq, toq, in a mina ills, toq toq!”. Tinha uns dez anos, e achava que estava mesmo a cantar em inglês, uma música que se chamaria Talk Talk, de uma banda do mesmo nome.

Quem estava a ouvir eram os miúdos do Bairro da Caixa, os mais temíveis de todos. Estávamos no 5º ano (aquele que se seguia à quarta classe, ou quarto ano), que fazíamos a uns bons quilómetros de casa. Íamos e vínhamos diariamente de autocarro, ficávamos lá o dia todo.

Acharam tanta piada que exigiram que continuasse e repetisse. Puto estúpido, mimado e teimoso, recusei-me… O resultado foi pior. Acabei obrigado a entoar o hino dentro de um contentor do lixo.

Mas foi só o princípio. A partir daí, aqueles pequenos marginais nunca mais me deixaram em paz. Não podia estar descansado. Nunca sabia quando iam aparecer para me aterrorizar, exigir o dinheiro do lanche, ameaçar e tudo o mais que lhes passasse pela cabeça.

Ou era o maluco que dizia que agarrava numa pedra e levava ossos e tudo à frente, ou eram os seus amigos que me arrastavam para trás da escola dizendo que me espetavam uma seringa nas veias… Nunca sabia quando é que iria apanhar com eles, nem o que ia acontecer a seguir.

Foi assim durante cinco anos. Nessa altura, conheci uma pequena tropa de três ou quatro jovens que se estavam meio nas tintas para a escola, mas engraçaram comigo, não me chateavam e tratavam-me bem. Respeitavam e achavam bem que fosse um bom aluno, interessado e sempre com excelentes resultados.

Entre eles, havia um rapaz que parecia razoavelmente endinheirado, inteligente e bastante rebelde. Embora bem colocado na sociedade, percebi depois que os seus amigos eram os mânfios mais terríveis e temidos da zona.

Interessou-se pelo meu caso. Não achou bem que o miúdo demasiado educadinho, aluno de topo do nono ano de escolaridade e um tanto infantil vivesse permanentemente no medo. O que sei foi que, um belo dia, os amigos dele fizeram uma espera aos meus perseguidores…

Na manhã seguinte, o líder do bando aterrorizador veio falar comigo. “Ah ah… Ouvi dizer que ontem chegaste a casa cheio de sangue… Ah ah”. Eu respondi “Ah ah”, mais qualquer coisa, de novo “Ah ah”…

Aquela linguagem cifrada de rua foi a forma de eu perceber que ele, o temível chefe, tinha sido acagaçado. Fora submetido por uma força maior. Acabaram-se os problemas. Para sempre. Assim foi nos 30 anos seguintes, até hoje.

Nunca mais o vi o rapaz que tornou tudo isso possível. Deduzo que tenha adquirido um bom lugar na sociedade, casado, sido pai… Mas não faço a mais pequena ideia. Amigo perdido nas voltas que a vida dá, e que certamente nunca lerá estas palavras, Obrigado!

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