Where everybody knows your name

Passamos de cerveja na mão mas chama-nos a atenção. Como a minha amiga é uma brasa fumegante, não há problema em parar um bocadinho e espreitar.

Saimos, ainda com a bebida, damos umas voltas e umas horas depois regressamos. À porta está escrito Cheers, e este é um bar… Especial.

Somos assaltados à entrada por um homem simpático e muito conversador, um dos responsáveis pelo espaço que nasceu onde deixou de existir o Frágil, frente ao Portas Largas.

Cabelo grisalho, barba cinzenta, espessa e cerrada. Este anfitrião que parece saído do palco de um concerto dos ZZ-Top faz questão de nos explicar tudo, mas mesmo tudo, sobre este pub, meio irlandês, meio americano, que preencheu o lugar do mais que mítico Frágil.

Relata-nos a história do nascimento deste novo ponto da noite, o que queriam fazer, o que não fizeram e como acabaram por modificar tudo e ainda vão voltar a alterar a decoração. Mas isso não interessa muito, na verdade.

Há cervejas irlandesas. Não há música a enfiar-se nos nossos ouvidos. Podemos conversar! Há écrãs que transmitem um jogo de futebol, para onde podemos olhar, se quisermos.

Há um balcão corrido, há duas americanas ao nosso lado, podemos ouvir toda a convera e participar, se desejarmos. Podemos falar com o barman e contar-lhe as nossas mágoas ou as nossas alegrias.

É o tipo de sítio onde, se viermos uma ou duas vezes, toda a gente saberá o nosso nome. Salta à vista a influência da série dos anos 1980 Cheers Aquele Bar (Where everybody knows your name), por mais que o cinquentão gentil que nos recebeu torça o nariz a isso.

Era ideal para começar a noite, e prometemos voltar noutro dia.

Antes da meia noite, estamos entre o Oslo e o Jamaica, que já devia ter aberto há meia hora, mas não há maneira.

Entramos no Oslo. Há montes de estrangeiros e estrangeiras jovens e vistosos. Há shots de vodka Iganoff a um euro, e muito bem servidos. Aqui permanecemos confortavelmente até que abra o nosso local de culto, o mítico Jamaica, já depois da meia noite.

Onde os shots de vodka são de Absolut, custam quase o triplo e levam um terço da bebida. Entramos e somos imediatemente transportados para o mundo das músicas decentes dos anos 1980. Rock, hard rock, pop, reggae. The Doors. Rolling Stones. The Queen. Depeche Mode. David Bowie.  E por aí fora.

A minha amiga explica-me mais tarde que tivemos a ousadia de abrir a pista, e isso comporta riscos. Pois… As minhas danças fantásticas, sinceras e ridículas são gozadas sem pudor de dois cantos diferentes da sala. Defeco mentalmente no cérebro inexistente dos gozões e continuo. Já estou habituado.

Há uma jovem morena, bela e misteriosa que dança, sempre de olhos fechados, do princípio ao fim da noite. O seu corpo interpreta todas as músicas com sensibilidade, elegância e clarividência. Sempre de olhos fechados.

Quando passa Don’t stop me now, dos Queen, toda a gente repara na amiga que está comigo. Usando os seus dotes teatrais e musicais, ela vive e dramatiza o tema do início ao fim, de forma intensa e inigualável. Ela é a personagem de que a letra fala, e todos os seus estados de espírito, com total exactidão.

Uns tentam acompanhá-la, outros ficam a olhar. Por esta altura, já arranjámos meia dúzia de amigos que vivem a música tão profunda e autenticamente como nós.

Uns levantam e abanam os braços, outros metem-se connosco, outros dançam com a dupla bizarra e impossível de ignorar que formamos. O som continua a rodar, imparável, até ao fim do mundo. Jamaica.

A mulher perdida

A mulher andava com um ar perdido, rua abaixo, rua acima, rua abaixo, rua acima. Esteve assim durante muito, muito tempo.

T vive na rua e começou a aperceber-se de que esta senhora ia talvez passar a sua primeira noite ao luar, o que explicava o seu ar completamente desorientado.

Foi falar com os Médicos do Mundo e referiu-lhes a existência deste ser humano em dificuldades. OS MM tentaram, mas não conseguiram estabelecer diálogo com ela.

Uma equipa especial de técnicos e coordenadores da Comunidade Vida e Paz dirige-se para o local. Iniciam-se as negociações. A mulher continua a não querer falar.

Depois de longas e árduas tentativas, os responsáveis da CVP começam a conseguir dialogar com aquela alma desesperada. Dão-lhe comida e, muito tempo depois, começam a tentar persuadi-la a passar a noite num albergue.

Quando chegamos junto de T, um homem que, desde há muito, nunca queria conversar connosco, tratamo-lo pelo nome – que entretanto descobrimos –, falamos desta situação (uma pessoa que dorme na rua foi quem pôs tudo a andar para que uma mulher não tivesse que ficar esta noite sem tecto) e contamos-lhe onde está, actualmente, o ancião sábio, culto e profético que viveu na calçada três anos a 50 metros dele.

Não sabia, e fica radiante por ser informado. Irá visitá-lo amanhã. A transferência de uma entidade de saúde para uma instituição de solidariedade desse homem, U, o nosso amigo comum, parece ter passado despercebida a toda a gente. Os amigos, da rua e de fora dela, perderam-lhe o rasto.

T, ao longo de meses, nunca falara connosco. Mas hoje, não sei se foi alguma coisa que fizemos, a sua atitude transforma-se. Conversa durante uma hora, só uma, porque temos outras pessoas a quem ajudar também e ainda só fizemos metade do percurso. Por vontade dele, continuava.

Parece que só habita no passeio quando não tem paciência para aturar a mulher. Mulher, que não é a primeira. É viúvo, e, quando fala dessa esposa que já não existe, as lágrimas vêm-lhe aos olhos.

O mesmo quando refere os dois filhos adultos. Um, não o vê há 12 anos. Esse e outro parecem estar desaparecidos na Suécia. Já tentou encontrá-los, mas é muito difícil. Se uma pessoa tiver uma vida normal e não experimentar nenhum encontro forçado com as autoridades, se quiser ficar desaparecida fica. Ai está uma lição, mas não a única.

Quando se chateia com a mulher, faz uma de duas coisas. Ou dorme na rua ou, no calor da troca de argumentos, vai dar uma volta, conversar com os amigos, jogar às cartas, fumar um cigarro, beber uma mini. Quando volta a casa já não se lembram do que estavam a discutir. Já não estão a discutir nada.

O telefone

Durante uns dois anos, era quase impossível falar ao telefone. O novo smartphne de marca branca funcionava razoavelmente enquanto dispositivo inteligente, para usar a Internet, o Facebook, o Messenger, as pesquisas, os sites de notícias e a modesta câmara fotográfica.

Mas para telefonar, o telefone não tinha grande préstimo. Se eu ouvia os interlocutores sem problemas, estes nada entendiam do que lhes dizia. Não valia a pena falar mais alto, gritar, soletrar as palavras, que ficava tudo na mesma.

Era isso que se passava há uns dias, quando conversava com um amigo. Prático e experimentado, disse-me para pôr o aparelho em alta voz, e depois baixar o volume ao meu gosto, já que isso só ia afectar a minha audição, e não a de quem estivesse do outro lado.

Ficou a ouvir-me na perfeição. Mas era preciso fazer mais uns testes. Liguei para casa da minha mãe. Pela primeira vez em muitos meses, as palavras chegaram-lhe com clareza cristalina.

Aproveitei quando foi para o Alentejo e voltei a telefonar-lhe. Percebeu-me tão bem que pensou que estava a ligar do fixo.

Agora, sempre que alguém me contacta, tenho que perder alguns segundos a colocá-lo em alta voz e ajustar o volume.

Pareço um bocado desequilibrado a mexer no telefone e a pedir uns momentos à outra pessoa, enquanto esta espera que eu finalmente comece a falar.

Mas agora já tenho um aparelho um bocadinho mais normal. Posso ligar às pessoas, e, se fosse preciso, até podia fazer entrevistas à distância. A minha vida social acaba de ficar muito melhor!

Agora só resta mesmo o problema da memória. Só tenho umas 30 fotos no dispositivo, as únicas aplicações que lá estão são as “obrigatórias” (mail, Google, Facebook, Messenger e as que vêm com o telefone e não se conseguem apagar).

Mesmo assim, tenho menos de um giga disponível. E há sempre alguma coisa que não está a funcionar bem. Enfim, gosto muito da tecnologia e dependo dela, mas quando algo corre mal (o que é frequente) dá-me vontade de voltar aos tempos saudosos do Paleolítico!

Há vírus sexuais na ditadura angolana

Há sete cafés e bares abertos ao sábado à noite à volta de Santa Apolónia. O mais agradável e acolhedor é o que tem os melhores preços.

Alguns angolanos e brasileiros falam, muito animadamente. “Épá, as doenças sexuais são uma grande chatice no regime angolano. Os velhos generais riquíssimos gostam muito de dar naquelas miúdas novas e lindas de morrer. Mas querem fazer tudo ao natural, por isso é um problema”.

Os dois amigos observam as bebidas expostas. Estão inclinados para uma boa aguardente velha. As bebidas brancas (whisky novo, vodka, etc.) custam três euros e meio, a Imperial um euro e vinte.

Alerto-os para a existência de aguardente Aliança Velha. Um deles diz que já viu, e explica-me detalhadamente a razão de querer uma aguardente.

Isto são coisas que uma pessoa vai aprendendo com a idade. Quando bebemos um bom vinho ao jantar, depois também vamos querer um bom digestivo. De preferência um conhaque. Ou uma boa aguardente, que, como o vinho, é feita a partir da uva”.

Para combinar”, esclarece o amigo. “Sim, nada de bebidas fermentadas”, insiste o primeiro. Acabam por decidir-se por um Jameson e um Bushmills.

Quem atende é uma rapariga brasileira, mulata, baixinha, magrinha e muito simpática, que parece ter 20 anos. Serve as bebidas brancas com enorme generosidade.

Depois percebe-se que tem uma filha bebé e outra de 10 anos. E que é a companheira do dono do bar, um alemão afável e bem disposto de 50 e tal anos.

Os germânicos comunicativos e divertidos existem, e eu já conheci um monte deles. É verdade que também já estive com alemães (e australianos) que não dão confiança nem mostram os dentes, mesmo depois de estarem connosco na mesma casa e no mesmo grupo de amigos há mais de duas semanas.

Mas contactei, igualmente, com gente da terra dos cangurus ou do país de Angela Merkel que gosta de festa, animação e diversão e começa logo a conversar connosco e a pagar-nos copos mal nos conhece.

Bem como um brasileiro pouco simpático (sim, aparentemente afinal existem), e, ao mesmo tempo, dezenas de brasileiros e brasileiras gentis, conversadores, divertidos e animadíssimos.

Agora faço dois treinos por dia

Como acontece de vez em quando, desviei-me do ginásio durante algum tempo. Aquelas duas dezenas e meia de euros por mês, tão úteis e importantes para a saúde, não estavam a ser aproveitadas.

Dediquei-me em exclusivo à corrida.

Há um mês, decidi voltar. Como estava muito destreinado daquele tipo de exercício, atirei-me a ele dedicadamente, repetidamente, e durante algum tempo nem corri.

Os primeiros dias foram dolorosos, depois comecei a habituar-me. Ainda desempregado, há uma semana tomei duas decisões.

Começar a fazer treinos duplos e não passar nenhum dia sem fazer, pelo menos, um. Vá lá, talvez um dia de descanso ao Domingo, embora esta semana não o tenha feito.

Levanto-me às cinco (ou algures durante a manhã, se me tiver deitado mais tarde), trato dos gatinhos, como uma ou duas torradas, bebo sumo natural de fruta ou água e vou correr uma hora.

Volto para casa, tomo banho, vejo as ofertas de trabalho nos sites, escrevo, publico, partilho e depois almoço uma sopa forte e consistente com muitas leguminosas.

Uma ou duas horas depois estou no ginásio a fazer o meu velhinho plano de treino que inclui dois exercícios leves com halteres, abdominais, levantamentos de perna, flexões com uma perna a cruzar sobre a outra, elevações e um exercício em que se balança o peso do corpo de uma perna para a outra.

No meio disso tudo tenho direito a aulas de abdominais e, às vezes, alongamentos, desafios da semana ou fit moves. Estes dois últimos consistem em exercícios diversificados, durante alguns minutos, trabalhando várias partes do corpo, eventualmente com a ajuda de objectos.

Como todos os outros, combatem a gordura, melhoram a massa muscular e também trabalham ligeiramente a parte cárdio-vascular.

Estas alterações decorreram há apenas uma semana e já sinto os efeitos. Estou com o dobro da força, resistência, energia e forma física. Já apertei o cinto mais um furo: Estou a perder gordura onde é necessário fazê-lo. E a ganhar anos de vida.

Os pêlos do meu gato

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Apalpa cuidadosa e criteriosamente o peito da minha princesa Matildinha: Depois, o Dr. A assegura-me que este ser doce e inocente continua livre de novos nódulos no peito, após as duas operações que fez.

A seguir, o veterinário experiente e comunicativo afirma que esta gata meiga e carinhosa está com excessiva queda de pêlo.

Pega numa escova de borracha e passa-a por ela, durante algum tempo, em sentido contrário. Depois, uma única vez, na mesma direcção do pêlo.

Produz-se uma espessa e sólida camada de pêlo morto, que a auxiliar converte numa bola com o terço do diâmetro de uma de ping-pong. Este material “é estopa”, diz o Dr.. É rijo.

Mais tarde ou mais cedo, ela e os seus companheiros felinos vão lamber este pêlo e engoli-lo. Depois, vai arranhar as paredes do estômago e provocar azias.

No caso dos machos, ainda pior. Na zona do pénis, a uretra do gato macho afunila e torna-se mais estreita. Quando as pequeninas mas agressivas pedrinhas formadas pelos pêlos chegarem lá, não vão passar.

Chego a casa, pego na escova de borracha e faço exactamente o mesmo ao Chiquinho, o gato que me adoptou e mudou a minha vida. Nunca o tinha escovado segundo este método.

Mia, mia, mia, manifesta-se de forma intensa e altamente vocal. Não está aborrecido ou incomodado, porque não foge nem se desvia. Mas fica excitado e agitadíssimo. Quando acabo, fala carinhosa e docemente comigo.

Dirijo-me à Amélinha, a “Gááta!!”, o seu verdadeiro nome. Com dificuldades e insistência, mas menos do que quando a escovava com o pente, que tentava morder e converter num brinquedo, consigo efectuar o mesmo procedimento. Está animadíssima e não pára de conversar sobre o assunto.

Chega a vez do Jeremias: O gato sexual, que, castrado, adora perseguir e copular imaginariamente as fêmeas felinas, e assistir, solícito e solidário, a qualquer tipo de acto sexual humano que se desenrole na sua presença.

O meu lindo lince-gato-cão, que venera desconhecidos e visitas, e iria alegremente com elas para onde quer que o levassem, arfa e arqueja, discreta e tranquilamente, sem se mexer, enquanto o escovo.

No final, tenho duas mãos completamente cheias de pêlos para deitar fora. O Dr. A disse-me para comunicar à mulher a dias que dez minutos disto poupam uma hora de aspiração da habitação. Feito. Cá em casa, a mulher a dias sou eu.

Uns ténis 44

Não me arranjam uns ténis 44?, pergunta G à equipa da Comunidade Vida e Paz, insistentemente. Não temos, mas o pedido fica registado.

A meio da semana, ainda não há nenhuns ténis 44 para o nosso amigo que vive na rua com a sua cadelinha, N, uma bolinha de pêlos mais carinhosa que um gato bebé. Pessoal, mexam-se, onde é que estão esses ténis?

Bem, a função da Comunidade Vida e Paz não é dar comida e roupa às pessoas sem abrigo (embora o faça).

A função da Comunidade Vida e Paz é criar relações, facilitar caminhos de mudança de vida e encaminhar as pessoas para a reinserção na sociedade.

Mesmo assim, a equipa, nomeadamente dois dos seus elementos, desdobra-se em esforços e contactos ao longo da semana, dentro e fora das estruturas de apoio e reinserção da Comunidade…

Na Quinta-Feira, eles aparecem. Os ténis 44.

Fazemos a primeira metade do percurso da noite.

Fugimos temporariamente ao Saldanha, onde, além de mais de cem pessoas carenciadas, há também umas três ou quatro instituições a fazer o mesmo, ao mesmo tempo. Dar comida a pessoas carenciadas.

Voltamos mais tarde, damos os nossos sacos com uma sandes, um bolo, um salgado e um pacote de leite.

Conversamos com meia dúzia de pessoas, já que o nosso objectivo era esse mesmo. Conversar. Ouvir. Aconselhar.

Passamos para a segunda metade do percurso. Fazemos a Avenida da Liberdade.

Vamos ao encontro de G e N, a sua mascote irresistível. Já dormem, ambos, bem enroladinhos um no outro.

Deixamos a ração para aquele amorzinho de quatro patas. O saco de comida para o seu humano. E… Os ténis 44.

Acabem com a ignorância

Vivi durante décadas à porta de um acampamento de ciganos. Fui – e vou – milhares de vezes às feiras, comprar cuecas, meias, calças, frutos secos ou caçarolas aos ciganos.

Cruzei-me e cruzo-me com eles, repetidamente, nas ruas e nas repartições públicas. Ouvi histórias de intimidação e agressividade relacionadas com ciganos, e acredito que aconteceram.

Pessoalmente, nunca tive problemas absolutamente nenhuns com ciganos. Nem com pessoas negras, já agora:

Há quem pense que todos os nossos coabitantes de origem africana são bandidos, que a totalidade dos moradores da Cova da Moura ou da Damaia ou da Buraca são criminosos.

Em contrapartida, fui assaltado por brancos, agredido por brancos, ameaçado por brancos e intimidado por brancos durante anos.

A generalidade dos ciganos tem uma cultura à parte, diferente da nossa, e há dificuldades de integração e aceitação, de parte a parte, que geram alguns conflitos. É verdade.

Os bairros pobres são guetos, onde as pessoas negras são encaradas pelas autoridades policiais como seres sem direitos, apenas por serem negras, e, se alguma delas se lembrar de invocar um direito humano, isso é visto pela polícia como um desacato. Também é verdade, como provam os documentos oficiais e judiciais e as entrevistas e reportagens que têm vindo a público.

Esses bairros marginais estão cheios de pessoas de origem africana – e outras – que trabalham dura e incessantemente, lutando contra tudo e contra todos para sobreviver, ganhar a vida e educar os filhos, para que eles um dia consigam sair dali – uma lotaria onde os dados estão totalmente viciados. E também têm alguns bandidos e traficantes, naturalmente.

Moro no centro de Lisboa e todos os dias vejo traficantes e desordeiros às dezenas. E de certeza que as esquadras de Lisboa, de Cascais ou da Quinta da Marinha também têm o seu tempo ocupado, como todas as outras.

Entendamo-nos. Essa coisa de GENERALIZAR, dizer que todos os ciganos, ou negros, ou espanhóis, ou chineses, ou brancos, ou americanos, ou alemães, ou ingleses, ou franceses, ou romenos, ou indianos são iguais, é pura ignorância.

A GENERALIZAÇÃO é a génese do racismo, da xenofobia, da discriminação, do racismo, do fascismo, do (neo)-nazismo.

Os não-sei-quantos, sejam eles quais forem, não são todos iguais. São todos diferentes, variados e diversificados, tal como nós, não-ciganos ou não-negros, também somos todos diferentes, variados e diversificados. Estamos em dois mil e dezassete, gente.

Dostoievsky com Guacamole

 

 

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Tinha decorrido havia pouco tempo o dia 19 de Maio de 2017. Finalmente, chegou. O Homem dos Livros conseguira encontrar, após infindável pesquisa e porfia, um exemplar d’Os Possessos, de Dostoievsky.

Momentos depois, abria-se o primeiro dos quatro volumes. Regressava, por fim, à companhia dos aristocratas russos de há 150 anos. E com uma vantagem.

O célebre e imortal escritor debruça-se, como aconteceu com Tolstoi, sobre as primeiras manifestações do pensamento socialista, ou pré-socialista, naquele país, em meados do século XIX.

E de forma divertida. Muito diferente da abordagem de Tolstoi – séria, dramática e inesquecível.

O autor de Crime e Castigo dá-nos uma perspectiva irónica e ligeira sobre os primeiros homens a interessar-se pelo socialismo, as “ideias novas”.

Demoramos vários volumes a perceber que as personagens são defensoras organizadas e activas do socialismo e da revolução. E mais alguns capítulos a interiorizar outra coisa.

Aos olhos de Dostoievsky, a estes antepassados dos comunistas de nada interessava o povo. Desejavam, apenas, substituir uma ditadura por outra.

Calculavam, até, que seriam necessárias cem milhões de mortes, ou mais, para instaurar essa nova ordem, o “paraíso terreal”. Parece algo que já se ouviu antes, ou, melhor dizendo, depois.

Os pequenos volumes têm andado para todo o lado. Para o ginásio, para a esplanada, para o café, para a noite, para a Bica, para o Adamastor, para o Bairro Alto.

Mais recentemente, até ao 100 Montaditos, junto ao Mercado da Ribeira. Sento-me com a minha amiga e pedimos frango para ela, salada sem queijo para mim, batatas fritas para os dois, Ketchup para ela, Nachos com Guacamole para ambos.

Falamos sobre o que nos espanta, o que nos aflige, o que nos surpreende e o que nos maravilha por estes dias.

O delicado e apetecido livro que nos faz viajar um século e meio fica sobre a lancheira inteligente dela, de onde sobressaem, no idioma de Shakespeare, as palavras “smart lunch”. Os seus óculos escuros à moda repousam, inquietos, sobre tudo isso.

Comemos e bebemos a primeira e a segunda dose. A dada altura, no calor da discussão, os óculos mergulham na maionese dela.

Limpa cuidadosa e criteriosamente as lentes, as hastes e os parafusos. A cavaqueira continua.

No final, depois de toda aquela comida e bebida saudável, os olhos recaem sobre a capa d’Os Possessos. Dostoievsky está cheio de manchas verdes. É Guacamole.

Um guardanapo leve e cautelosamente humedecido, passado suave e carinhosamente sobre a capa, resolve tudo. A Revolução continua.

O tempo não volta para trás

Esteve numa publicação altamente prestigiada durante mais de uma década, mas deixou de se identificar com aquela casa e foi-se embora.

Experimentou o mundo das agências de comunicação. Era uma transformação muito grande e acabou por se virar para outro lado.

Depois disso trabalhou a nível independente, passou por várias experiências e transferiu-se para o sector dos agentes imobiliários.

Gostou da actividade, mas não da desorganização e incompetência da agência onde foi parar. Despediu-se.

Agora, diz que está a viver a “crise dos 40, atrasada”. Não sabe o que quer fazer à vida.

Há menos de dez anos, conseguia-se encontrar trabalho em jornalismo, a sua primeira área profissional a sério. Ou mesmo na produção de conteúdos.

Hoje, os preços baixaram dramaticamente, com o aumento impensável da oferta. Há muita gente nova a dar o litro de graça, ou quase. E há publicações onde só se trabalha de borla.

Diz que não coloca a idade no currículo, porque ninguém tem nada a ver com isso. Mas também, não é preciso. Basta ver a experiência para perceber.

Quando se chega aos 30 já se é velho, explica. Vê os anúncios de procura de trabalho nos sites especializados. Mas não recebe respostas às suas candidaturas. Nem sequer respostas automáticas.

Digo-lhe que a sua vida há-de resolver-se, como aconteceu até hoje. Sempre trabalhou muito, em todas as alturas se organizou e adaptou com inteligência e criatividade àquilo que ia acontecendo.

Responde-me que sim, vai ser assim… Mas, apesar disso, não sabe o que quer fazer e o que vai concretizar a seguir.

Observo esta pessoa talentosa, desenrascada e flexível que, há duas décadas, era “minha estagiária”.

Nesses tempos gloriosos havia muitos jornais (um ou dois mesmo muito bons), e informação radiofónica e televisiva com qualidade (também em uma ou duas estações).

Comenta que o jornalismo “é chão que já deu uvas”.

A década de 1990 deixou saudades, mas o tempo não volta para trás.