Um raio de esperança

– Nem sei bem o que lhe aconteceu. Está toda ferida.

– Oh, que tristeza… Que idade tem ela?

– 17 anos.

– Pois, já é uma velhota!

– Nunca devemos receber um cão em casa sem saber o comportamento dele… Os da raça dele são pequeninos mas muito agressivos. Brigou com ela e deu-lhe pancada.

– Coitadinha!

Cinco minutos depois, a senhora de 70 e muitos anos e a sua cadelinha de longevidade correspondente são atendidas pela minha querida doutora.

Mas não é fácil concretizar essa vontade. A simpática mulher está sentada há muito tempo. É difícil levantar-se.

Acabo por erguer da cadeira as duas em peso, gentil humana e canina minúscula e apática. Pergunto se precisa de assistência para dar os sete passos que separam a pequena sala de espera do confortável gabinete. Não, chega lá sozinha.

Fico a olhar para ela, a ver se se equilibra bem com a sua idosa amiguinha nos braços.

A bichinha vai ser toda desinfectada das patas de trás às da frente, passando pela barriga e pela cabeça. E levar uma injecção de anti-inflamatório.

Como é que esta utente, com quem já me cruzei outras vezes, veio de casa até aqui e regressará ao seu lar, se mal pode andar e levantar a sua companheira de três quilos?

Há tempos, embora ela estivesse de muleta, tive que deixá-la ajudar-me a levar as minhas quatro transportadoras de gatos até à rua. Não sei como o fez, mas percebi que esse acto proporcionou prazer ao seu espírito doce e generoso.

Este ser meigo e bondoso, a avó que todos gostariam de ter, deixa-me sempre enternecido com o seu carácter e preocupado com o seu bem estar, e o dos seres de quatro patas que são a sua companhia.

Mas também me revela um raio de esperança, um mundo melhor do que aquele que vemos todos os dias nas notícias.

A nova geração

Há oito anos, a Ana, a Maria, o Jeremias e a Matilde ensinaram-me a perceber os gatos, a gostar deles e admirá-los.

Abriram o caminho para que meses depois descerrasse as portas do coração ao meu doce e meigo Chiquinho, que me ofereceu a relação mais bela e pura que tive.

E que seria o protector e patrono da minha carinhosa, apaixonada e doida Amélinha, a “Gááta!!”.

A última felina da Ana, a charmosa e adorável Beca, já partiu há algum tempo. Estava na altura de acolher uma nova geração de miaus e ronrons.

O que sucedeu a meio do Verão. Desde então, passei duas semanas a antecipar o momento em que iria conhecê-los.

Finalmente, isso aconteceu. No fim-de-semana fui ver os novos sobrinhos, a Pipa e o Tobias. São ambos clarinhos e irresistíveis.

Ela tem quatro meses. É minúscula, pacata e reservada.

Ele tem dois, é significativamente encorpado e engordou 400 gramas numa semana.

É um mix do descaramento do meu incomparável lince gato-cão, o Jeremias, com a doçura e o carinho da “Gááta!!” e da Matildinha.

Passou o jantar ao meu colo, a brincar comigo, encostado à minha mão, a ronronar como um motorzinho de navio.

No final não queria que me viesse embora e desejava partir comigo.

Já a sua mini-companheira, quando a apanhei a descansar no seu lugar seguro, uma prateleira do antigo e pesado armário de madeira clássica e envernizada da sala, consegui fazer-lhe, finalmente, festinhas à vontade.

Esperei 15 dias mas cada minuto com a Ana e os seus bebés valeu todos os segundos e respectivas fracções.

Já estou ansioso pelo próximo encontro!

O meu gato anda no ginásio

O meu tigre atlético, corpulento e lindo está gordinho demais. Tem que perder peso impreterivelmente para não começar a ter problemas de saúde perigosos.

Já reduzi a ração, bastante, e só lhe dei pedacinhos de patê durante a onda de calor. Quando está durante um bom bocadinho ajoelhado a comer (o que adora fazer), levanta-se a coxear.

As articulações têm dificuldade em sustentar seis quilos e duzentos gramas.

O Jeremias passou a ir ao ginásio, sem sair de casa, pelo menos uma vez por dia. Ou mesmo duas.

Pego na fita métrica metálica, um objecto que o excita até à loucura. Faço-o persegui-la, saltar em sua busca, correr atrás dela (e da cauda), atirar-se ao encontro da ponta que dança e oscila sem que consiga apanhá-la.

O exercício dura uns dez minutos e é uma forma de contrariar a sua tendência para um sedentarismo crescente.

Nos tempos em que o doce e meigo Chiquinho, gato de rua sem disciplina, andava na Terra (há dois meses) era muito diferente.

Entre estes dois viris defensores dos seus pergaminhos sexuais havia todos os dias kung fu, karaté alentejano, jiu jitsu e luta greco-lisboeta.

A verdade é que a Matildinha e a Amélia (aliás, “Gááta!!”) não oferecem grande resistência nem são adversárias especialmente aliciantes.

A existência deste belíssimo lince da metrópole tornou-se pacata e rotineira, sem agitação. A gordura foi-se acumulando. Está na altura de inverter o processo!

Trabalhar para arrefecer

Era um tipo especial

Da primeira vez que a minha mãe o viu, há mais de meio século, já tinha bebido um copito e o seu sorriso bem disposto era irresistível.

A mim, apanhou-me uma vez, depois de uma noite agitada, apenas com uns boxers muito largos, a saltar o muro da casa dos meus amigos, só para não ter que ir abrir o portão para sair.

Com os olhos brilhantes, e uma metade dos abonos de família de cada um dos lados do muro. Aparentemente, nunca esqueceu essa imagem caricata.

Falávamos sobre política, e acerca dos abusos sobre os trabalhadores, sempre com os direitos em risco. Era admirador de Cunhal, a quem chamava o Cavalinho Branco.

Há umas quantas décadas conheci a Festa do Avante! ao lado dele, da minha mãe e do meu pai, de quem foi o melhor amigo durante quase uma vida inteira.

Passei muitas tardes e noites em sua casa, com a mulher dele e os filhos, pessoas de fibra e generosidade como não se encontra em lugar nenhum.

Tardes de praia, almoçaradas, jantaradas, diálogos inspiradores e edificantes. Era um tipo muito especial.

Onde chegava, conquistava toda a gente rapidamente com a sua personalidade, o seu humor e a sua afabilidade.

Na nossa infância e juventude, os adultos divertiam-se em grupo e os miúdos faziam companhia uns aos outros: Aquela viagem periódica de menos de meia hora era sempre aguardada com grande expectativa.

Éramos tratados como príncipes naquela casa.

Quando a sua vida chegou ao fim, muito cedo e de uma forma que não fazia sentido, foi muito difícil para toda a gente.

Ficou a fazer muita falta durante muito tempo, e fará sempre. Mas deixou o melhor da sua personalidade com todos nós.

As suas tiradas divertidas, a sua expressão saudavelmente irónica, o seu gosto pela festa, pela animação e por fazer com que todos estivessem bem nunca se separarão de nós.

Durante muitos anos, continuei a ver em sua casa aquela foto tão bem tirada, e que ilustrava na perfeição o seu espírito filosófico e amável.

Há muito tempo que não observo essa imagem. Mas será sempre como se estivesse a contemplá-la, querido amigo.

48 horas de felicidade

Lisboa, Cais do Sodré. Os anos do meu querido e grande amigo, um herói da selva urbana que conquista tudo o que tem a pulso e na ponta do arame.

Local: O mais divertido e imprevisível bar de Lisboa, onde profissionais da noite, polícias, mulheres cinquentonas e homens de cabelo grisalho que gostam de beber um copo se cruzam com camones adolescentes, asiáticas de 18 anos, apreciadores de shots e pessoal que adora a discoteca Jamaica mas aqui paga dez vezes menos.

Pomos toda a conversa em dia, conto as aventuras dos últimos meses e escuto os triunfos quotidianos que ele e a sua companheira atingiram recentemente.

No dia seguinte, um encontro nocturno com outro casal igualmente próximo. Que, como alguns dos meus mais chegados, tem paciência para inventar grandes iguarias vegan a pensar nas minhas visitas.

Têm uma filha e dois gatos. A pretinha parece uma cópia da minha Amélinha, a “Gááta!!”. Embora seja muito mais gordinha e menos comprida, os comportamentos de ambas fazem delas gémeas.

Esta amiguinha que vejo de vez em quando mia para mim, chama-me docemente, ronrona-me, fica feliz com a minha presença e pede-me festinhas e miminhos. Dá gritinhos amorosos. Como a minha panterinha. Parece quase que estas duas negritas de seis anos partilham a mesma personalidade.

12 horas depois o almoço com os meus pais: Comer e beber que nem um abade vegetariano e guloso e saber tudo o que se passou ultimamente com a família. Sou mimado durante todo o dia, como sempre acontece nestas deslocações à margem sul.

No final da jornada regresso a casa, arrumo as oferendas semanais e estico-me no sofá. Leio o jornal, espreito as parvoíces que acontecem dentro do telemóvel e vejo uns três ou quatro filmes.

Um do Corto Maltese, bastante relaxante e sem pés nem cabeça; um western dos tempos modernos, ainda mais absurdo; e, pela quinta vez, uma película com George Clooney que fala de vida, morte, eutanásia e de um marido traído que vai anunciar o falecimento da esposa à família e a toda a gente – incluindo o amante cuja existência ele desconhecia.

Durante estas lânguidas horas dominicais o Jeremias fica sempre a escassos centímetros de mim. A “Gááta!!” em cima dos meus tornozelos. E a Matildinha, finalmente, faz o que já não acontecia havia dois meses. Vem para a sala, enrola-se, enrosca-se e abraça-se a mim.

Momentos de pura felicidade e leveza espiritual. Mais tarde, ao deitar-me, o meu pequeno tigre doméstico e a Amélinha voltam às suas posições naturais, em cima dos meus pés, da barriga das minhas pernas, das minhas costas e do meu rabo.

A Matildinha permanece do meu lado direito, discretamente, para não a chatearem.

De manhã, estas companhias felpudas e carinhosas sabem-me tão bem, e estou tão cansado do fim-de-semana, que só me levanto já em cima da hora.

Mas ainda consigo ir para o trabalho a pé, junto às águas murmurejantes, e ler uma ou duas notícias a olhar para o Tejo, antes de iniciar a minha actividade laboral.

Eu disse que hoje estava com a neura? Hm… Devo ter-me enganado!

Uma visita especial

A mãe humana da Matilde, do Jeremias e da Amélinha (a “Gááta!!”), a Maria (minha ex-mulher, que vive em Inglaterra há quatro anos) veio a Portugal.

E foi visitar os filhotes felinos em Santa Apolónia.

Os príncipes cinzentos e a esguia pantera negra que viveram com ela desde bebés não a viam havia um ano.

Sempre que há alguém lá em casa que não seja eu, a minha pretinha carinhosa foge imediatamente para cima do armário da cozinha…

Pois estes três seres doces, assim que a Maria entrou, reagiram com toda a normalidade do Mundo, como se a tivessem visto no dia anterior.

Ficaram os três à volta dela enquanto esteve lá, dando e pedindo doses industriais de amor e carinho.

A “Gááta!!” permaneceu ao colo dela, feliz e encantada. Só faz isto com dois seres à face da Terra. Eu e a Maria.

Não pôde estar muito tempo, mas foram momentos de alta qualidade para ela e para eles.

Nesse dia, quando me fui deitar, estes entes felinos em quem concentro o que tenho e o que sou vieram de imediato, ao início da noite, para a minha cama.

Até de manhã. Levantei-me três vezes ao longo da madrugada, mas voltaram sempre.

Incluindo a minha linda princesa Matildinha, que tem medo de tudo e todos, razão pela qual não costuma ir tantas vezes nem tão rapidamente juntar-se a nós quando o Sol se apaga e as estrelas invadem o céu.

Mas estavam tão contentes e enternecidos que nem a chatearam quando veio connosco para cima do édredão.

Passámos essas horas de descanso em perfeita harmonia e tranquilidade doméstica.

A estadia não foi muito longa, mas para os três meninos e para a sua mãe imigrada cada minuto valeu a pena e deixou efeitos permanentes.

Já posso mudar de roupa!!

Uma saga sem fim. Verificar que O Velho Equipamento de Purificação de Vestuário entregou a alma ao Criador, após diagnóstico pronto feito por russos eficientes.

Procurar, comparar modelos e preços, adquirir uma nova Lavadeira. Recebê-la, assistir à sua colocação.

Assegurar-me de que levavam a antiga, como contratualizado e pago – mas que não aconteceu.

Após tais rocambolescos capítulos, não estava ainda concluída a epopeia.

Horas depois de os conterrâneos de Lula da Silva terem instalado o electrodoméstico (que ali ficou, desligado e sem ser usado), algo de novo sucedeu.

Começo a ver água sair de debaixo dele.

As jornadas seguintes foram passadas a exigir que fosse rapidamente lá um técnico  (demorou cinco dias), sempre com a água fechada e sem poder usar o aparelho.

Finalmente, decorrida uma semana, chega o ansiado especialista.

Um homem que tem e adora gatos. Um dos quais, de personalidade doida, canina e excessivamente sociável, como o meu pequeno tigre doméstico.

Assim que chega, o técnico desata a brincar com ele. Puxadelas carinhosas nas orelhas, palmadas meigas no lombo, festas e conversas entre os dois.

Não se largam um ao outro. O meu Jeremias sobe aos píncaros da felicidade felina.

A Whirlpool barata, sofisticada e eficaz tinha sido completamente mal montada.

Um tubo à face do outro em vez de bem enfiado lá dentro, torneiras abertas ao invés de apertadas, tudo mal feito e fora do sítio.

Usá-la assim era um convite à tragédia.

A conclusão final de tudo isto:

– Já posso mudar de roupa!

– O Jeremias tem um novo amigo.

– Compras na Worten? Instalações? Montagens? Muito, muito cuidado!!!

Toda a verdade sobre a Worten

A verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade é esta.

Quando os moços cariocas de uma das empresas de distribuição da Worten vieram trazer a máquina de lavar nova não levaram a velha, por incompetência burocrática da referida entidade, e marcaram outro dia para a recolha.

Depois de esperar sete horas que os jovens do outro lado do Atlântico cheguem, aparecem.

Um deles diz-me que não vão levar com eles este artefacto da civilização… Porque tem água.

Vejamos então. O aparelho deixou de funcionar. Tive que interromper o seu trabalho a meio para não provocar uma tragédia.

Os russos que lá foram a casa levaram-me a perceber que o estado deste objecto de muitos quilos era irremediável.

Se a pusesse a operar para terminar o último programa, corria o risco de originar uma explosão, derreter a cozinha e incendiar o prédio.

Pois os dois potenciais eleitores de Lula da Silva não queriam auxiliar-me fazendo desaparecer da face da Terra este indesejado ítem.

Um deles desce as escadas e liga à Worten para oficializar este desagradável impasse tecnocrático.

Explico ao outro:

Então mas o que é que eu faço?? Está avariada, não posso activá-la, na loja disseram-me que me livravam dela.

O rapaz de sotaque cantante começa a mexer no impopular instrumento e a movê-lo.

Acaba por dirigi-lo até à rua, à porta do prédio. Sugiro que seja deixado do outro lado da estrada, junto ao Ecoponto e aos contentores do lixo.

Não, senão vão-me multar!

E se for eu?

Vão multá-lo a você!

Sem saber o que fazer, acabo por ir trabalhar, com mais de quatro horas de atraso, enquanto os apoiantes da Selecção Canarinha se põem levemente ao fresco.

Chego à uma da manhã. Lá está o sinistro volume à entrada do edifício.

Tomo-lhe o pulso, começo a produzir-lhe rotações e a arrastá-lo para o outro lado da via, para o tal local onde os cidadãos depositam o que já não tem préstimo para a sociedade.

A meio da travessia da rodovia, uma carrinha grande pára à minha frente. Sai um moço simpático, divertido e cheio de energia:

Boa noite, amigo! Vamos levá-la os dois, um em cada ponta, senão nem amanhã!

Segundos depois lá fica ela, ao lado de grandes quantidades de cartão, vidro, plástico e substâncias orgânicas resultantes da actividade humana.

Pelas quatro ou cinco da madrugada, ouço ruídos que associo a cargas e transportes.

Às sete da manhã desperto, vou à janela e espreito o outro lado da rua:

A Samsung de dez programas e com cinco quilos de capacidade não faz mais parte da minha existência.

Quando a minha “Gááta!!” desapareceu

A máquina de lavar entregara a alma ao criador. Fui comprar uma.

Pedi que, na entrega, recolhessem a antiga.

Sim, tudo bem!

No dia seguinte, chegam os dois rapazes da terra de Gabriela Cravo e Canela.

Instalam a máquina mas não têm ordens para levar a velha. Um erro do sistema levou a que não fossem emitidas as guias.

Após meia dúzia de discussões e reclamações telefónicas reagendam o levantamento do vetusto electroméstico para daí a 48 horas.

Peço que venham às oito da manhã porque é dia de trabalho. Chegam às três da tarde.

Com todas as mexidas, máquinas para trás, monos para a frente, homens a entrar, indivíduos a sair, a Amélinha, a “Gááta!!”, desaparece.

Entro, saio, vou à escada e à rua, regresso. Vejo em cima, em baixo, atrás, à frente dos armários.

Longos e angustiantes momentos depois ressurge na cozinha, perto da caldeira de água, a um centímetro do tecto. Descubro mais tarde que durante algum tempo permanecera oculta no quarto, entre o édredão e o colchão da cama.

Terminado este episódio alucinante preciso de fumar um cigarro, ler algumas páginas d’ Os Miseráveis de Victor Hugo e dar 500 abraços à minha “Gááta!!” para me acalmar.