Desconfinei-me

Ganhei coragem para ir rapar o cabelo com um super-desconto ao fim do dia.

Aproveitei a onda e, na curta viagem de um dia de semana à noite, passei por Cacilhas, onde a situação parece quase normal.

Restaurantes de carne, peixe e produtos de origem animal não me interessam. Não, não, deixem lá isso.

Ao fim da subida, de frente para a farmácia, a estação de serviço e os bombeiros, perto do Centro de Cultura Libertária, situa-se a PZA Pizzeria Romana Alla Pala.

Roubo a carta.

Há uma pizza vegana Large de 12 euros com cogumelos e uma infinidade de componentes oriundos do reino vegetal. Há vinho e imperial.

Há uma moça brasileira andando pela esplanada de máscara.

Nas mesas ao ar livre estou desmascarado mas ela aproxima-se, com os olhos a cintilar por cima da protecção de tecido.

Explica-me todos os detalhes e aceita o pedido estritamente vegetariano.

Talvez tenha sido morto pelo vírus da felicidade e já esteja a ser recebido por São Pedro. Ouvem-se acordes suaves e melódicos algures no horizonte.

A pizza vem em tábua de madeira e alimentaria bem uma família faminta de 4 ou 5 pessoas.

Devoro até à última migalha. A tábua escapa.

No fim oferecem o italiano licor Limoncello, mas da marca portuguesa Limontejo.

Os dez minutos a andar até casa não digerem nem meia fatia…

A caminho do pós-redesconfinamento

Triunfámos na era do desconfinamento e sentimos o amargo sabor da derrota na época da desconfinação.

Não sabemos ainda como será a Grande Final do Pós-redesconfinamento.

Atacar os ocupantes etários do mundo dos 13-25 anos de idade não será certamente solução milagrosa alguma.

Pode exigir-se a essa malta de boa índole e sangue na guelra, que aceitou enclausurar-se por quatro meses, que, no estio das paixões, continue sempre entre quatro paredes?

Não será por aí que iremos reconciliar-nos, e curar-nos.

Temos outra preocupação.

Assalariados pobres, aos grossos milhares, que não contam com tais burguesias de poder laborar em casa.

São deles, à força, os transportes apinhados e sem condições, as casas pequenas como formigueiros e pouco salubres, a sujidade dos escritórios e das ruas que têm que limpar, o cimento e os baldes de massa que carregam todos os dias.

Para que privilegiados pudessem telétrabalhar, andaram e andam estes operários e trabalhadoras nas ruas e nos transportes, acumulados e acotovelados.

Olhe-se para o drama destas Pessoas e pense-se ainda em formas de explicar este tempo dificílimo e complexo aos mais moços e fazê-los sentir e viver essa preocupação.

Os caminhos serão por aí.

A pele em que eles vivem

Salta para cima das minhas costas e exige obsessivamente que a deixe consumir a saqueta prateada, barulhenta e quase luminosa daquela marca vegan de bolachas de chocolate.

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Sentado a trabalhar, digo à minha bonequinha cor de azeviche que mie à vontade mas não engula o plástico nem os biscoitos negros, ambos lhe dariam cabo do estômago.

Abro e estico os braços para lhe furtar as delícias que me quer subtrair.

“Gatinhaa!!”, a minha mini-felina, caminha ao longo dos meus braços como se fossem uma estrada.

Prosseguimos nestes intensos esforços diplomáticos por alguns minutos.

Acalma-se e desce para o meu colo.

Ali fica a ronronar horas, e eu atendo as chamadas dos viajantes e seus receptores, enquanto flutuo no céu.

À noite, depois de ela comer finalmente a quantidade necessária para manter o seu escasso peso de 2 950 gramas e vermos juntos todos os programas da RTP Memória, é hora de dormir.

Jeremias, o tigre que mia e solicita festinhas com o pé descalço sobre o venerado tapete da casa de banho, passa pela cozinha para deixar profundamente limpos e desinfectados os pratos da ração.

Vem para a cama fazer-me companhia.

“Gatinha!!”, adormecida pelo serão televisivo de outras eras, já só faz “rrrrrrr” sobre as mantinhas, por cima da mesa da sala.

Vou buscá-la.

Coloco-a sobre a minha muito confortável barriga desnuda.

Ali fica.

Dorme. Ronrona. Mostra que se sente segura, tranquila e confiante.

Se muda de lugar e deixa vago o ventre proeminente do humano, é de imediato substituída.

A pele vascal é de pronto ocupada pelo lince Jeremias, que, se há alguma coisa com que delira, é estar deitado sobre a derme do seu tutor, e aí descansar até que venha despertar-nos o brilho da aurora.

Tenho os lábios a saber a morfina

Numa das suas pancreatites, que se espera em vias de ser ultrapassada graças à Medicina da Doutora Mágica dos Felinos, a “Gatinhaa!!” viu-se na iminência de tomar um morfínico, e foi isso que aconteceu na última semana (e mais alguns dias).

O nome assusta um pouco, mas é apenas um analgésico certeiro e eficaz para que não tenha dores no pâncreas e recupere o apetite.

Também tem tomado um antibiótico e tem tido direito a variar as rações, para que a actividade alimentar se torne mais agradável e atraente.

Quanto ao morfínico, ele chegou a casa em pequenas seringas, cada uma com uma reduzida quantidade, para serem utilizadas duas vezes por dia.

O fármaco é um xarope.

Se ela fosse uma criança da espécie humana, dar-se-lhe-ia com uma colher.

Assim, a ideia é pegar na seringa de plástico e introduzir o líquido, de sabor exótico e pouco apreciado por ela, na sua boquinha.

Começámos nisto na terça-feira, há uma semana.

Ela não fica muito feliz e dá-lhe para cuspinhar um pouco no fim. Eu dou-lhe um beijo suave, de pai, na boquinha, limpo-lhe os lábios com um guardanapo e ela acalma-se.

A Doutora diz que ela sabe, sente e percebe que aquilo é importante e útil e lhe ataca a pérfida patologia.

Acaba por aceitar a terapia, que se prolongará ainda por mais dois dias.

A consequência de tal acto médico é que tenho os lábios a saber a morfina, condição etérea que não julgava viesse a suceder nos meus breves dias de passagem pela Existência.

Uma “Gááta!!” obcecada com Oreos

Para sorte da Amélinha, aliás, da “Gatinhaa!!”, e do Jeremias, o seu humano está com eles todo o dia e toda a noite.

Os seis quilos do meu lindo e louco lince gato cão dormem, frequentemente, por cima de mim.

A Gatinha só se espalha com os seus três quilos pelo meu corpo quando me levanto umas horas mais tarde.

Durante o dia, ela fica a adorar-me no sofá ou nos tapetes com que delira.

E, muitas vezes, faz questão de dormir nas minhas pernas, no meu colo, enquanto atendo os clientes ao telefone ou lhes envio e-mails e mensagens.

Descansa, olha para mim e ronrona. Depois contempla-me, fecha os olhos e volta a fazer “rrrrrrrrrrr” baixinho, suave e docemente.

Quando há algum problema, maior ou menor, com os meus filhos patudos, agora torna-se mais fácil intervir e ajudá-los.

Se a Dra. Mágica dos Gatos está disponível (e tem estado sempre, ininterruptamente, desde há nem sei quanto tempo), ajusta-se a medicação, muda-se a alimentação, marca-se uma consulta para o dia seguinte ou até para antes.

De vez em quando lá estamos na esplanada à frente da clínica, à espera que ela e as gentis auxiliares cheguem, às oito da manhã.

Ultimamente até somos atendidos ali, minutos depois do pequeno-almoço.

Os gatos olham, cheiram, ouvem, absorvem os sons, as novidades e os aromas da rua avidamente.

No outro dia fui de Cacilheiro, de Metropolitano e a pé com a mais pequenina, a peso-pluma.

Foi um passeio relaxante, embora estivesse preocupado com o estado de saúde dela.

Depois das últimas consultas, graças aos Céus, os dois parecem muito melhor.

O apetite restabeleceu-se.

O Jeremias come, até demais, e passa o dia a pedir-me ainda mais ração, e a lamber vorazmente copos e pratos.

A Gatinha mia obsessivamente ao meu colo enquanto devoro Oreos ou pão sem nada.

Há dias estava tão doida que até a garrafa de vinho queria atacar.

À hora do almoço joga à bola comigo. Empurramos um esféricozinho de borracha um para o outro, uma e outra vez.

Agora que ambos parecem estar saudáveis de novo, podemos afirmar que a pandemia e o telé-trabalho nos têm tratado bem!