O mais feliz de todos os Homens

Está com bom aspecto. Ele e ela apresentam um ar refrescado.

Há um mês foram vítimas de um incêndio, segundo eles uma tentativa de homicídio, já que os seus caixotes de papelão, de onde ela costumava sair de pijama branco de meia estação a meio da noite para receber comida ou roupa, arderam numa questão de segundos, e havia qualquer coisa que parecia um combustível nas proximidades.

Ela continuou sempre a arrumar carros, ele já saiu do hospital. A rapariga de olhos brilhantes que dançam no rosto está agora com um semblante mais descontraído, ambos têm uma aparência mais limpa e cuidada.

Por enquanto, não voltaram a viver na rua. Estão em casa de amigos, com uma senhora muito idosa, o que, é claro, tem as suas complicações.

Ela anda sempre atrás dele, para que ponha Biafine nas queimaduras das mãos.

Deve colocar a pomada umas quatro vezes por dia, no mínimo, na opinião dela, e, presumivelmente, dos médicos. Especialmente quando o tempo começa a ficar mais quente.

Amanhã vai chover, por isso ele não vai pôr. Mas agora, felizmente, já começa a ouvir-me”.

As assistentes sociais “impecáveis” já lhes trataram de tudo, para que possam refazer os documentos que arderam no incêndio, e tentar encontrar um trabalho ou obter o rendimento mínimo.

Foi necessária uma tragédia, e alguns ferimentos médios, para que, finalmente, saíssem da rua?

Noutra rua, noutro lugar, um ser humano circunspecto, de olhos azuis, que poucas vezes deseja comida e nunca aceita roupa, por mais que esteja um frio de rachar, pronuncia seis palavras para fazer um pequeno alerta útil e bem intencionado.

Alguém deixou um saco de roupa em bom estado, ao lado do caixote do lixo. Ele, naturalmente, não considera precisar dela. Mas avisa, para o caso de os voluntários quererem levá-la, entregando-a a alguém que dela necessite.

Decidem que o saco ali abandonado lá continue e siga o seu ciclo natural de vida, à espera de eventuais mãos que o descubram e lhe atribuam utilidade.

Num clássico das relações das cidades com as suas populações de Pessoas Sem Abrigo, parece que a Mango da Avenida, mais perto de abrir as suas futuras instalações, encheu o seu exterior de taipais de madeira, “enxotando” dali (deverá ter sido esse o sentimento da multinacional) os homens que lá dormiam.

O profeta da calçada não se encontra no seu quadrado de passeio, onde muitas palavras sobre religião, filosofia, política, história, geografia, economia e humanidade se trocaram ao longo de meses.

Aparentemente, alguém decidiu que devia ser retirado das ruas e acolhido numa instituição, embora ele não pensasse dessa forma. É certo que a saúde deste ancião não recomendava que dormisse no chão da cidade.

Num raciocínio percebido por ele e incompreendido pelo resto da espécie humana, isso não lhe interessava nada. Ali, considerava-se livre, e o mais feliz de todos os Homens.

A gata que destrói fechos só com o olhar

O velho casaco comprado numas divertidas férias em Amsterdão apareceu com o fecho rebentado. Uma contrariedade que se resolveu com a ajuda materna e a intervenção de uma costureira da Margem Sul, voltando a ficar rapidamente como novo.

Mais tarde, o blusão de Inverno mais usado este ano apareceu com o mesmo problema… Acabou por ficar como estava, porque a logística do arranjo era demasiado complicada e pouco compensadora.

A seguir, foi a vez de uma outra veste do mesmo género. Estava tudo bem com ele no ano passado. De repente, a meio da única noite em que saiu providencialmente do armário, deixou de fechar. As horas seguintes foram frustrantes, já que cessou de servir metade do propósito a que se destinava.

Dias depois, escrevia ao computador, com a Amélinha, aliás, a “Gáata!!”, ao colo, como habitualmente. Este ano, a esguia e doce pantera negra desenvolveu uma nova, e profunda, obsessão, a que ainda não tinha dado a devida atenção. Casacos, fechos, molas e botões.

Descansando ela sobre as pernas do seu humano, meio acordada, meio a dormir, de repente eis que o tal casaco, já com fecho novo, se encontra aberto, sem que mãos pessoais nada tenham empreendido nesse sentido.

E é nessa altura que se faz luz. Revela-se instantaneamente quem anda a dar cabo da generalidade dos fechos humanos nesta moradia de quatro gatos.

O que é facto é que, quando está ao meu colo, tenta por todos os meios possíveis e imagináveis agarrar e morder fechos, botões, presilhas, fivelas e demais acessórios que se destinem a promover o aquecimento do seu utilizador.

Quando as minhas mãos são interpostas para apaziguar esta luta desigual, acontece levarem aqui e ali uma dentadinha não intencional, já que os seus dentes afiados não vêem o que estão a fazer e não se detêm perante obstáculos de qualquer espécie.

A minha gatinha meiga e ensandecida já me deve uns três ou quatro fechos! O mais misterioso e bizarro de tudo isto é que uma destas peças de roupa acidentadas nem chegou a estar a menos de um centímetro deste ser negro, carinhoso e determinado…

“As recaídas começam quando aparece o vazio”

Saía com os amigos e divertia-se. Ao princípio, juntavam-se e faziam aquilo às vezes. Mais tarde, passou a ser obrigatório, mesmo quando não estava com os companheiros.

Durante algum tempo, continuou a ter uma vida funcional. Até que tudo começou a descarrilar. Os rendimentos e as decisões diárias começaram a girar unicamente em torno da droga.

Fez vários tratamentos de desintoxicação e voltou sempre a cair nela. Não comia, não bebia, nada disso interessava. Habituou-se a ir aos bairros difíceis para comprar, entrar e sair sem dar nas vistas, lidar com os traficantes que vivem do vício.

Gastou fortunas, mentia a toda a gente e tentou várias vezes ingerir uma overdose fatal. Por alguma razão, sobreviveu a tudo isso, o que o deixava sempre espantado.

Da última vez, convidou os traficantes lá para casa e disse-lhes para levarem tudo, em troca da máxima quantidade que lhe conseguissem arranjar. Mais uma vez, decidira que ia gastar tudo até ao fim, consumir até morrer.

Estava com um problema grave na perna, que estava a apodrecer, mas isso também não importava. A sua sorte foi que os vizinhos sentiram a falta das suas visitas ao café. Foram lá a casa, arrombaram a porta e chamaram uma ambulância. Acordou no hospital, onde lhe foi amputada a perna.

A. acha que não tinha conseguido fazer uma recuperação com sucesso até agora porque não era a altura: As palavras que ouvia, os caminhos que lhe mostravam, nada era suficiente para salvá-lo.

Hoje vê tudo de uma forma diferente. Sabe que as recaídas não começam quando tem vontade de usar. Começam quando sente que há um vazio na sua vida que não consegue preencher de forma nenhuma.

A. está a fazer um novo caminho para viver sem substâncias destrutivas, na Quinta da Tomada, uma das comunidades terapêuticas e de reinserção da Comunidade Vida e Paz (CVP).

Nas três quintas da CVP, os seres humanos em sofrimento que ali são levados para começar a reconstruir a sua vida recebem tratamento, apoio, dignidade e uma nova perspectiva.

Têm responsabilidades, horários, regras, trabalho, actividades que lhes ocupam o corpo e o espírito. E lhes revelam que, longe das drogas e do álcool, há inúmeras outras coisas que proporcionam prazer, felicidade e um sentido para a existência.

No longo e difícil caminho de regresso à sociedade de onde saíram, são sempre apoiados e acompanhados em permanência. Na resolução dos seus problemas pessoais, na construção da sua autonomia, na procura de trabalho, de habitação.

Para os voluntários que, todos os dias, saem à rua para falar com quem lá vive e propor-lhes uma mudança de vida, este é o outro lado, e o verdadeiro objectivo, do trabalho que fazem todos os que estão envolvidos com esta associação.

Esta semana, a equipa de voluntários das voltas de quinta-feira à noite esteve na Quinta da Tomada, na Quinta do Espírito Santo e no Espaço Aberto ao Diálogo da CVP, cujos técnicos e assistentes sociais recebem as Pessoas Sem Abrigo que lá se dirigem, ajudando-as a resolver os seus problemas quotidianos e a iniciar o seu processo de reinserção.

Para quem se dedica ao apoio e ao contacto directo com as pessoas da rua, ver como é que essa missão é continuada e aprofundada mais tarde pelas áreas da CVP que trabalham directamente na reinserção destas pessoas é uma verdadeira revelação.

 

FOTO: ANTÓNIO SANTOS

A vida é um comboio

Gostava de caminhar até à estação de comboios que havia a meia hora da minha casa, passear perto da linha férrea e sentar-me a observá-la, e aos comboios que iam chegando e partindo.

Alimentava um dos meus hobbies, as míticas coleccções de latas de bebida portuguesas e estrangeiras que os míudos como eu gostavam de juntar, às centenas, na altura.

Eram duras e indestrutíveis, aparentemente feitas de ferro. Muitas chegavam com os visitantes, e tinham cores, letras e desenhos que nunca encontrávamos por cá.

Aproveitava para conversar com os turistas e praticar o inglês, que, depois de alguma estranheza inicial, se tornou uma das minhas paixões de juventude.

Um dia, um tipo português, meio louco, meio pedófilo, tentou acercar-se de mim, meter conversa e tocar em partes reservadas do meu corpo roliço. Como a atitude era completamente estranha e impossível de perceber para um puto ingénuo e mimado como eu, deitei a fugir com toda a força que as pernas me permitiam.

Vinte e tal anos depois, tive o privilégio de conhecer os comboios decrépitos e carismáticos da Roménia, preenchidos por nacionais que, na grande maioria, não falavam uma palavra de qualquer língua que não a sua.

A sensação de liberdade de fazer uma viagem de comboio de onze horas, sozinho e desconhecedor da língua local, é absolutamente incomparável.

Longos trajectos que levavam a que, mesmo sem compatibilidade linguística, a comunicação se tornasse inevitável, mais tarde ou mais cedo.

Tinha a pequena mochila para duas semanas cheia de livros e uma ou duas T-Shirts. Os livros esgotaram-se, reli-os, e, quando cheguei a uma velha e escondida livraria que tinha policiais muito antigos em inglês, abasteci-me obsessivamente.

Quase no final da estadia, encontrei duas jovens estudantes de Sociologia que… Falavam inglês! Bonitas e simpáticas, o resultado foi que tiveram que me ouvir durante várias horas, e também às crónicas que redigira nos tempos mortos: Um estrangeiro a descrever, com a sua visão, o país onde viviam. Concordaram com as minhas perspectivas.

Hoje, desempregado e com responsabilidades felinas familiares, vivo ao lado de uma estação de comboios, no centro da Meca turística portuguesa.

Gosto de ver chegar e partir as pesadas e velhas máquinas. Não me agrada tanto observar as composições modernas e sofisticadas. Mas sinto-me sempre um turista na minha própria cidade.

Tenho o secreto desejo de me enfiar num daqueles veículos e partir, sem destino, sem amarras, sem preocupações. Seria uma Grande Aventura. Um dia, há-de acontecer.

Num filme qualquer, alguém dizia que a vida é um comboio. Em todas as estações, há pessoas que entram e outras que saem. Um dia, também chegará inevitavelmente a nossa vez de partir nessa grande viagem… Devemos estar prontos. E, até lá, divertir-nos e aproveitar esta breve passagem o máximo possível!

A vida depois da vida na minha vida

A Têtê anda preocupada por minha culpa. A questão é que nós nascemos no mesmo dia, mês e ano.

Ela acha que duas pessoas que tenham chegado ao Planeta em simultâneo partilham o Anjo da Guarda. E isso é um problema. Passo a explicar.

Espetei-me num Morris Marina a 160 à hora, num Clio vermelho e noutro azul, a velocidades semelhantes, múltiplas vezes.

Enganei-me a preencher uma declaração de IRS, e, por isso, a minha dívida foi multiplicada por cem.

Fiz uma pega de caras a um Citroën dois cavalos e fiquei vivo. Caminhei sobre um muro à beira de um precipício e sobrevivi. Atravessei (ou pelo menos assim me pareceu na altura) várias portas e paredes em poucas horas.

Entrei com uma arma no aeroporto de Beirute. Ajudei um terrorista (segundo alegados agentes policiais quenianos). Fiz atrasar um avião egípcio comigo lá dentro.

Dei um passeio a pé sozinho em Luxor, durante uma hora, numa altura em que nunca tinha viajado na vida. Percorri o Libano, a sós, de uma ponta à outra.

Fui arrastado, também sozinho, para dentro de um bar de actividades recreativas, a poucos passos do Moulin Rouge.

Passei várias vezes de uma varanda para outra, à altura do terceiro andar. Estive desempregado, sem subsídio de desemprego, com uma casa, um carro e uma asa de parapente para pagar.

Andei milhares de vezes com o carro na reserva, já mesmo “nos vapores”. Pronunciei, influenciado pelo conteúdo de vários copos, palavras pouco pacíficas, com o cabelo rapado e rodeado de pessoal de bairros difíceis.

Estive, dentro de uma carrinha de safari, à frente de um elefante furioso. Saltei, numa noite de loucura juvenil, o portão de um castelo.

Durante cinco anos, fui diariamente perseguido por uns mânfios que embirraram comigo, até ser salvo por um tipo que era mais louco e perigoso que eles.

Fui acusado de ter uma dívida (fictícia) de cinco mil euros à Segurança Social.

Um Anjo da Guarda que se proponha a tarefa de me proteger não sabe no que se está a meter. É um trabalho a tempo inteiro, 24 horas por dia, sete dias por semana.

Ser-lhe-á impossível atender, simultaneamente, a outra pessoa, que tenha nascido no mesmo dia e hora que eu, como a Têtê. Compreeendo a preocupação dela.

Se existe vida depois da vida na minha vida, já gastei todos os seus créditos. Mesmo que tenha tantas existências quanto os felinos.

Estava escrito que ia ser assim

Havia duas semanas que pensava: “Dia 19 é a corrida da ponte. Tenho que ir pela outra. Dia 19 é a corrida da ponte. Tenho que ir pela outra. Dia 19 é a corrida da ponte. Tenho que ir pela outra”.

Chego à ponte… Trânsito, trânsito e mais trânsito. Ponte com acesso cortado. “Hm?! Porquêê, senhor agente??”. “Então,por causa da corrida”. “Hm… Pois. Achei que a corrida de hoje era na outra ponte, por isso vinha por esta, ao contrário do que faço todas as semanas… Ok”.

Vinte quilómetros extra. Rumo à outra ponte. Trânsito, trânsito e ainda mais trânsito. Hmm…

Há um acidente. O atraso já vai em quase duas horas. Ainda tento enfiar o nariz do carro pela berma, mas levo tal descompostura de um camarada automobilista que me resumo à minha incivilidade e ignorância e me deixo ficar sossegadinho na fila de 20 quilómetros, harmoniosamente compacta, em todas as três faixas.

É Dia do Pai, mas graças a estes imprevistos, já só o vejo de passagem e bem depois da hora de almoço.

A meio da tarde, eu e a minha mãe pegamos um no outro e vamos passear à Fonte da Telha, num desses percursos relaxantes que tanto gostamos de fazer no Inverno. Um erro imperdoável.

Também na bela e selvagem praia da Margem Sul o trânsito está parado e bloqueado (graças a carros estacionados no meio do caminho, impedindo a circulação rodoviária), de uma ponta à outra da nossa estrada adorada, um monte de pó e buracos que gostamos de percorrer saboreando o gosto da Liberdade.

Procuro um buraco para enfiar o carro e começamos o passeio uns quilómetros mais atrás, já que a tal estradinha foi interdita pela realidade. Ao regressar, uma hora e tal depois, continua a ser impossível circular em qualquer sentido e sair da praia, rumo à estrada de alcatrão.

Penetramos numa esplanada, pedimos um chá (de Vialonga, no meu caso), pomos a conversa em dia até ser quase de noite.

Na verdade, foi um dia magnífico, e com mais alguns minutos de conversa com o meu pai, titular da efeméride, no regresso a casa. Mas o que é facto é que a nossa “época balnear” – os nossos passeios na praia, feitos ao longo do Inverno – acabaram agora mesmo. E este já foi um bocadinho fora do tempo.

Boa noite, e boa sorte

Barba de dois ou três dias, pele tostada e avermelhada, ar irritado e aflito.

Épá, oiçam lá, eu preciso de um sítio para ficar esta noite. Esta noite. F. Não, não quero ir para o Espaço Aberto ao Diálogo da Comunidade Vida e Paz em Chelas, se só abre às dez da manhã. Preciso de um quarto em Lisboa, por 250 euros ou menos, para esta noite!

F., quem é que aguenta seis dias sem dormir?! Para esta noite, para esta noite. Épá, nem que vocês me vejam aí uns quartos no OLX e me dêm três ou quatro números de telefone, já ajuda”.

O voluntário mais rápido e despachado, e com o smartphone mais funcional, faz isso mesmo, durante uns 15 minutos, procurando, vendo as condições de cada, eliminando os mais caros.

Ao fim de um quarto de hora, o homem de saco de viagem ligeiro e barba cerrada está orientado, a caminho de um possível quarto em Campo de Ourique. “Boa noite, e boa sorte”.

A conversa decorre a dois metros do profeta da calçada, homem sábio, cego, octogenário e de aspecto irrepreensível, que aqui vive no chão há anos.

“Eu estou feliz. Eu me considero a pessoa mais feliz do mundo. Mas estou preocupado com o que está a acontecer ao planeta. Esse novo presidente dos Estados Unidos…

Ele está mesmo a construir um muro entre o México e os Estados Unidos? E vai mesmo pagá-lo aumentando os impostos dos bens importados do México?

Então… Certamente que os americanos importam uma grande quantidade de produtos mexicanos, e os mexicanos também compram muitos artigos americanos, especialmente de tecnologia, em vários sectores diferentes.

Portanto, os mexicanos também vão aumentar os impostos sobre os produtos americanos. Não para construir um muro, mas para fazer não sei o quê.

E se vão ser aumentados os impostos sobre os produtos mexicanos, é claro que os americanos vão passar a comprar a outros países. Ao Brasil, à Venezuela…

E por isso, a América nunca vai receber nenhum dinheiro desses impostos para construir o muro. Eu sinceramente não percebo. Já houve dois presidentes americanos que foram assassinados, o Lincoln e o Kennedy, que eu admirava muito.

E ele também estava muito protegido, tal como o Trump. Se o Trump continuar a prejudicar os próprios interesses americanos como está a fazer, não sei se não lhe irá acontecer o mesmo.

Acho que os líderes das economias mais poderosas do mundo vão ter que se sentar com o Trump e explicar-lhe que ele não pode fazer estas coisas, não pode prejudicar a economia do mundo desta maneira.

Diga-me uma coisa, como estão as coisas aqui em Portugal? Melhores, depois da austeridade do governo de Passos Coelho? A economia está a crescer? Mais ou menos? A dívida já desceu?

Sabe, quando vim para Portugal, há uns anos, o El País publicou uma infografia muito boa que referia todos os países do mundo. Nessa altura eram 187.

Essa infografia mostrava o crescimento do Produto Interno Bruto de cada um dos países. O Haiti vinha em último lugar. Foi pouco depois do grande terramoto que destruiu tudo. Subindo na tabela, vinha a Itália… E, a seguir, Portugal.

O El País deve ter essas infografias, que faz de dois em dois anos, na Internet. É fácil. Basta ir ver se a posição de Portugal se alterou, desde a altura da austeridade e desde o governo anterior, e se o crescimento do Produto Interno Bruto já aumentou.

Se tiver aumentado, a dívida também terá descido, e a economia já terá melhorado!”.

Assim, a noite termina com uma aula de economia na rua.

Tudo na vida tem um fim

A minha mãe nunca gostou muito dele. Era velho, grande, pesado, volumoso, difícil de conduzir, estacionar e alimentar: Bebia muito.

Para o meu pai, era indiferente. A vida dele foi comandar veículos de todos os tipos e tamanhos, pesados, muito pesados, ligeiros, intermédios.

Para mim, para a minha irmã, para a melhor amiga dela e para o meu grande companheiro, era uma animação. Dentro do Morris Marina branco de matrícula CF-84-12, conversávamos, brincávamos, ríamos até não nos conseguirmos mexer, a tal ponto que, uma vez por ano, a minha mãe tinha que nos mandar calar porque já ninguém aguentava mais.

O Pedro definia aquela clássica viatura, quase mais sénior que eu, como um avião que rugia, subia rotundas e espalhava metros cúbicos de água para os dois lados da estrada quando atravessava as poças. O meu pai de vez em quando fazia razias aos passeios com ele.

Quando tirei a carta, o meu pai muniu-se de uma paciência que, à primeira vista, não se lhe atribuiria. Ia comigo para uma ladeira bem inclinada, perto do sítio onde esta grande máquina, pela primeira vez na sua vida, tinha tido um pequeno acidente, que lhe deixara a fachada em mau estado.

Levava-me a fazer o ponto de embraiagem vezes e vezes sem fim. Eu deixava-o sempre ir abaixo, e ele insistia, calmamente, placidamente, tranquilamente.

Se o Pedro, depois de eu tirar a carta, me ensinou a estacionar de marcha atrás, e o João a ultrapassar depressa em estradas nacionais, o meu pai, mesmo comigo já encartado, mostrou-me verdadeiramente como se conduzia.

Quando fiz cerca de 26 anos, altura em que fiquei legalmente habilitado para a condução, o Marina foi-me oferecido como prenda de anos. Dominar aquele achado histórico era uma verdadeira experiência.

Quando ia sair à noite com o Pedro, o Emanuel e a Paula, explicava-lhes que, às vezes, para ele pegar, tinha que abrir o gás. “Hã?! O gás?!”. Havia alguém a bordo que esclarecia: Não era o gás, era o ar.

Mas tudo na vida tem um fim, e o seu dia chegou. Poucas semanas depois de receber este muito útil e carismático presente de aniversário, ia eu na auto-estrada, a 160km/hora. De repente, rebenta um pneu.

Com a inexperiência da altura, não consegui de maneira alguma controlá-lo. Andou ali aos ziguezagues até bater num separador, que, meses mais tarde, tive que pagar à Brisa (trinta contos, ou 150 euros). Ficou feito num oito, e o seu único destino possível foi o ferro-velho, onde foi vendido a peso. Era ferro puro, ainda rendeu uns doze contos (ou 60 euros). Para mim, nem um único arranhão.

Os meus pais só viram a sucata em que ficou bem depois de me observarem a mim, durante bastante tempo, e de lhes contar a história calma e tranquilamente, ao vivo e a cores.

O CF-84-12 teve uma vida longa, gloriosa e absolutamente irrepreensível… Até chegar às minhas mãos!

A turma dos cadastrados

A rapariguinha aguardou que todos saíssem e veio ter comigo. Tinha, no máximo, uns 15 anos. “Olhe, stor, eu vim falar consigo porque gosto de si e estou preocupada consigo. Isto não está a resultar. Nós estamos habituados a aulas mais interessantes, com mais pica. O stor tem que fazer com que as nossas também sejam assim”.

A míuda tinha toda a razão. Estava a dar aulas de jornalismo havia dois ou três dias, algo que nunca tinha feito, já que tinha sido jornalista toda a vida. Tinha passado algumas noites a estudar os géneros jornalísticos, que praticava diariamente havia décadas, e as regras do exercício da profissão, para poder preparar futuros repórteres.

Em suma, o ensino que estava a começar a fazer estava a ser uma seca para os seus destinatários, os alunos. Fui para o trabalho, e depois para casa, pensar naquilo. No dia seguinte as aulas tornaram-se muito mais práticas: Era essa a parte que não tinha chegado suficientemente depressa, e da qual eles estavam a sentir a falta.

Desse momento em diante, sempre que alguma coisa era explicada em teoria, na hora seguinte era logo aplicada à prática. Os candidatos a profissionais da palavra começaram a dar ao dedo mais cedo do que estava planeado e passaram o resto do ano a escrever todos os tipos de textos de todos os géneros jornalísticos, enquanto aprendiam a fazê-lo. De um momento para o outro deixou de existir a seca que estavam a sentir.

No ano seguinte chegou uma turma em que os alunos, embora pagassem propinas elevadas, pareciam mais estar num território de intervenção comunitária. A direcção da escola chamava-lhes “a turma dos cadastrados”. Não eram nada disso, eram um grupo de miúdos que estava maioritariamente num curso que não escolhera e já passara por experiências demasiado marcantes, demasiado cedo.

Não eram um osso fácil de roer, e a primeira metade do ano foi passada a pensar se de facto fazia sentido continuar a ser “stor”. Houve que puxar pela criatividade.

Houve aulas em que se simulavam manifestações de protesto contra alguma coisa, com alunos a fazer de contestatários, de sindicalistas, de polícias. Em que, de repente, aparece um papel a arder e há que acalmar e tranquilizar as hostes…

Houve saídas nocturnas que serviram para chegar à intimidade e ao núcleo da confiança do grupo. Reuniões em que, quando a direcção da escola dizia que “eles têm um passado”, respondia “mas também têm um presente e um futuro”. Ou em que pedia que não houvesse uma rigidez cega contra eles, evitando que ficassem mais estigmatizados.

Perceberam que havia alguns formadores na escola que não iam sempre partir do princípio que eles tinham errado, antes de os ouvirem e tentarem trabalhar com eles. Reagiram dedicando-se e envolvendo-se com o curso e os respectivos projectos práticos e teóricos. Acabaram por fazer tudo o que se queria e esperava deles. Afinal, não eram a “turma dos cadastrados”. Eram uma turma como outra qualquer. Apenas andavam perdidos e desmotivados, até chegarem ali…

Desempregado: A minha primeira convocatória ao centro de emprego

Um jovem do Espaço Jovem dos Olivais atende e pede a carta de convocatória do Instituto do Emprego, prometendo devolvê-la no final, assinada e carimbada, e, antes disso, chamar toda a gente pelo nome.

Cinco senhoras ciganas e dois homens da mesma etnia fazem parte do grupo de trinta desempregados chamados a comparecer. As mulheres de trança e saia comprida, conversadoras e animadas, e os dois homens, falam convictamente das mortes e doenças da família e do clã, e das múltiplas ligações que existem entre eles, mesmo que nunca se tenham encontrado ao vivo.

As três dezenas de homens, rapazes, senhoras e raparigas de diversa extracção social acabam por ser recolhidas dentro de um pequeno espaço de recepção e conduzidas ordeiramente para uma sala nas catacumbas do Espaço Jovem dos Olivais.

A técnica do IEFP dá as boas vindas. Preenchem-se fichas de inscrição que, diz, são só para ela “e não para o IEFP”. Empresto uma caneta à esquerda, outra à direita e preencho o meu papelinho de cinco centímetros quadrados com o nome, idade, profissão e habilitações.

O rapazinho indiano à minha esquerda nada fala de português e pouco de inglês. Ajudo-o a preencher a ficha, libertando a técnica e formadora, que também tem que ajudar uma senhora, que não sabe escrever, lá ao fundo.

Começa a formação. O objectivo é dar a conhecer as várias ferramentas de apoio ao emprego do Estado socialista que é pago pelos nossos elevados impostos e nos proporciona a segurança social.

A formadora vai apresentando, criticando, traduzindo e interpretando as várias medidas estatais de ajuda à procura de trabalho.

À esquerda, escondido por uma fila de cadeiras, há um homem de trinta e tal anos que coloca perguntas, e mais dúvidas, e novas incertezas.

Ataca e questiona o funcionamento do Estado, produzindo infinitos desabafos sobre a burocracia e a ineficácia do sistema. Ao fim de 15 minutos disto, toda a gente se vai mexendo nas cadeiras e fixando o olhar no infinito, para lá das paredes da sala.

Às tantas, passo-me. “Desculpe lá, temos que estar aqui a discutir o sexo dos anjos?! Não podemos acelerar?!”. Ouve-se um rumor mal controlado de concordância e aprovação geral. “Sim, sim, claro, tem razão”.

O homem cala-se, por fim. O moço indiano à minha esquerda, impaciente e irritado, revira os olhos e encolhe os ombros. Segue-se meia hora um pouco mais fluída e a sessão termina.

Os sete ciganos conversadores e sociáveis pedem para assinar a folha de presença primeiro porque estão com pressa. O resto do grupo aguarda, divertido e paciente, enquanto o pequeno clã assina, junto ao quadro dos slides, volta a trocar comovidos e efusivos abraços e envia cumprimentos e saudações sentidas para todos os familiares e amigos.

O rapazinho indiano comenta, em inglês: “It’s a drama!!” (algo como, julgo entender no seu sentir: “É uma peça de teatro!!”). Rimos os dois e respondo, na língua de Shakespeare: “E ainda por cima é de graça!!”.

Quando finalmente nos é permitido assinar a folha, a mulher à minha direita já está demasiado impaciente e exige que lha passe. “Uma fracção de segundo enquanto procuro o meu nome”, respondo. Mais uma fracção de segundo não faz diferença.

A formadora agradece-nos e pede-nos desculpa, e eu a ela, pelo meu passanço de há pouco. “Ah, não se preocupe, é normal! Nós já estamos preparados para tudo!”.