Ébrio e conversador, o homem afirma que os voluntários que apoiam quem dorme ao relento nem sempre se preocupam o suficiente com estes seres humanos que sobrevivem nas franjas da sociedade. Uma das mulheres do grupo pergunta-lhe se ele não gostaria de sair da rua.
Num raciocínio bastante elaborado e determinado, este explica-lhe que, residindo na calçada, é dono da sua própria vida. Torcendo o nariz a um processo de reinserção social, esclarece que as normas e as regras são a mesma coisa, e que nem umas nem outras lhe agradam. Compara a vida numa comunidade de reinserção com a de alguém que está num quarto alugado, e com a de uma pessoa sem abrigo.
Numa comunidade ou num quarto alugado, comenta que não existe, por exemplo, liberdade sexual… “A senhora, se estiver a ter uma relação com o seu marido, não sabe se a pessoa que está no quarto alugado está ou não a ouvir tudo. E não faz sentido, a meio desse momento íntimo, a pessoa que está no quarto ir ter convosco e dizer: ‘Olhem, por acaso não têm um copo de água?’. Em contrapartida, eu, aqui na rua, quantas vezes já não aconteceu trazer aqui uma mulher e estar com ela… Eu consigo controlar perfeitamente se passa ou não alguém, tenho um controlo maior sobre a minha vida”.
Insiste obstinadamente neste ponto. Respondem-lhe que ainda há muitas pessoas a visitar nesta noite, e no próximo encontro continuar-se-á a conversa.
Numa zona mais central da cidade, o homem que sabe sempre quantas pessoas, quais e em que pontos estão a dormir nas ruas à sua volta está aborrecido. “Isto é que são horas?! A esta hora não vale a pena, já não têm ninguém com quem falar aqui!”.
Apontamos que o percurso aumentou bastante, para que se consiga chegar a mais lugares, e a consequência traduz-se em atrasos. O esclarecimento não o satisfaz. Passado algum tempo, deseja-nos uma boa noite e um óptimo ano.
No centro comercial cosmopolita à entrada da capital, é descoberta uma mulher a inclinar sozinha, com os seus braços magros e doentios, um pesado contentor de lixo com restos de alimentos dos restaurantes que ali têm a sua actividade. Aceita a nossa comida e fala um pouco. Vive não longe dali, não tem dinheiro, tem familiares com doenças graves que precisam dela e ela própria está também em péssimo estado.
Foi agredida por um toxicodependente que lhe deixou o rosto num estado lastimável. Já foi atendida num hospital mas precisa de ajuda e trabalho e é encaminhada para o Espaço Aberto ao Diálogo da Comunidade Vida e Paz, onde os técnicos da área da assistência social e reinserção poderão oferecer-lhe um apoio mais especializado.
Quase ao fim da noite, vamos ao encontro do senhor dos beijinhos, homem particularmente afectuoso com as voluntárias. Aparentemente de origens africanas, vive em Portugal há vários anos e está a procurar um caminho para a sua vida.
Anda a receber formação na área da panificação, pastelaria e cozinha. Diz que, para quem já tem alguma experiência nessas tarefas, voltar à escola e misturar a teoria com a prática se torna muito mais fácil. Lá para a Primavera, espera ter os cursos concluídos e dar um novo passo em frente.
O casal que arruma carros no centro da cidade está agora a viver a alguma distância dali, debaixo de um pequenino e frágil rectângulo de cartão. Ela ouve-nos e surge, alegre com a nossa presença, com o seu pijama de meia estação. Uma voluntária oferece-lhe um casaco de Inverno bem quente e mais umas quantas peças de roupa.
Fica satisfeita. “Vou trabalhar uns dias num sítio muito frio, isto vai dar-me jeito!”. Apanhados a meio do sono, discutem um pouco entre si mas agradecem muito a visita dos voluntários.
Em cinco horas são contactadas mais de 70 pessoas, que recebem um saco de comida entre dois dedos de conversa. Amanhã não serão estes os voluntários, já que se revezam quinzenalmente, mas estarão, como nos outros 364 dias do ano, quatro equipas da Comunidade Vida e Paz na rua, tentando levar um pouco de esperança e mudança a quem dela precisa.
Foto Principal: António Gomes