“Os jovens vão-se embora e você fica triste”

Então, como está, senhor H?”. “O meu espírito está bem, mas o meu corpo ainda não está muito bom, desde a queda de há um mês e tal.”.

A sua mente culta e inteligente viaja um pouco e relata-nos que, num passado distante, sofreu de herpes zoster, ou zona.

O saber enciclopédico acumulado em 84 anos de vida leva-o a descrever-nos as várias tipologias de herpes e herpes zoster. Nos lábios, no aparelho reprodutor, nos olhos, na cabeça, no abdómen. Na época remota a que se refere, a dor foi tão grande que não conseguiu mexer-se durante muitas horas. Começou, depois, a movimentar-se muito lentamente, um milímetro de cada vez.

Mas hoje, revela que se Cristo voltasse à Terra e olhasse para nós não ia ficar feliz. Iria perguntar: “O quê? Foi por isto? Foi por vocês que eu morri na Cruz?” Acrescenta que temos que mudar muita coisa, especialmente na Economia. E que os chineses, os alemães, os franceses e os ingleses estão em luta uns com os outros, mas sem nada proporcionar ao bem comum da Humanidade.

É necessário fazer grandes alterações, mas isso já não será para ele, que aqui está, vivendo há anos neste quadrado de calçada no centro da cidade. Porque ele já não tem muito tempo.

Comenta que, daqui a muitos anos, um de nós poderá estar ali exactamente naquele lugar onde ele se encontra. A conversar tranquila e animadamente com alguns jovens muito carinhosos e simpáticos. E que depois, quando essas pessoas ternas e afectuosas se forem embora, esse que agora faz parte de nós vai ficar triste e com saudades. Boa noite, senhor H.

À porta de um outro local também citadino e consumista, há outro homem que gosta de falar. Notam-se problemas neurológicos significativos, há sempre uma certa altura do discurso em que deixamos completamente de o seguir.

Mesmo assim, não deixa de impressionar… Um mês depois, reinicia a conversa interrompida, precisamente no ponto em que ficara. Nem nós nos lembrávamos.

Explica-nos detalhadamente o funcionamento de uma máquina de flippers. O que faz a bola de metal dentro da máquina, como e porquê. Para que serve o pêndulo interior… O que sucede quando o mecanismo faz “tilt”.

Daqui passamos para o funcionamento dos gravadores de som de fita magnética, e depois para os posteriores sistemas de reprodução sonora. Para o mundo dos CD, mp3, computadores, Internet. Como funciona a pausa e a gravação em cada um desses ambientes tecnológicos diferentes, as desvantagens e perigos dos computadores…

Haveria diálogo para muitas horas, mas a senhora R, a 20 minutos de distância, continua recolhida numa paragem de autocarro, aos 50 e muitos anos de idade, atacada pela artrite reumatóide e pelo medo do que lhe possa acontecer, à noite, sozinha na rua.

Teme os alcoólicos, os toxicodependentes, os loucos, os que vêm das discotecas de madrugada. E diz que, desde a Baixa até ao Marquês de Pombal, é a única mulher que dorme na rua. Esclarece que para uma mulher, ainda mais com os problemas de saúde dela, “é diferente. O homem faz as necessidades em qualquer lado. Eu preciso de um sítio onde ficar, preciso de fazer a minha higiene, preciso de sair da rua o mais urgentemente possível. Ainda agora tinha aqui um saco com as minhas coisas e roubaram-mo”.

Ana Karenina e a fita-cola

É muito, muito obsessiva. E não estou a falar de Ana Karenina, a quem, talvez, também pudesse aplicar-se esse epíteto. Falo da Amélinha, aliás a “Gááta!!”, único som que reconhece como o seu nome. Obceca-se com frequência e facilidade, por variados motivos ou estímulos. Metais. Plásticos. Sacos. Papéis. Comprimidos.

Às vezes, quando tenho que lhe dar a medicação, começo por tentar enfiar-lha na garganta mas acabo por deixá-la a seus pés. A pirralha, que acha piada a estas reduzidas cápsulas eventualmente apetitosas (o que já se revelou muito perigoso noutras ocasiões), acaba frequentemente por engolir o pequeno fármaco acastanhado sem necessidade de persuasão. Hipoteticamente, o dela e os dos meus outros gatos.

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Tenho na minha estante uma edição de 1946 de Ana Karenina, obra eterna e imortal de Tolstoi que povoou e iluminou a minha infância, a minha juventude e a minha vida. Com os seus setenta anos de existência, esta preciosidade literária de gloriosas memórias está, na verdade, a desfazer-se.

Não sendo bibliotecário e tendo apenas uns 400 livros, sei, pelo menos, que a fita cola não é um material de restauração livresca muito apropriado ou eficaz. É também o único que tenho. Assim, este precioso e amado volume está coberto por sucessivas camadas do dito material auto-colante mas não restaurativo, para que o que resta desta maravilhosa obra prima possa manter-se minimamente unida e coesa.

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A questão é que, sendo o plástico a obsessão número um da “Gááta!”, o que é facto é que a fita-cola, na mente pragmática e empreendedora da minha bebé felina, também cabe exactamente na mesma categoria.

Já vão uns bons anos desde que vivo nesta casa com a irrequieta e enérgica Amélinha, o Chiquinho, o Jeremias e a Matilde. E com o referido romance, que se encontra comigo há mais de três décadas. Mas por estes dias, a minha esguia pantera negra decidiu que andava a deixar os seus créditos por patas e dentes alheios. Dedicou-se a atacar com fúria Ana Karenina, e a camada protectora que cobre a sua lombada.

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Tirei o livro da estante.  Voltei a restaurá-lo. Recoloquei-o lá. Várias vezes tal sucedeu, e sempre de novo o atacou. Equilibrada nas patinhas de trás e encostada sobre os outros livros, enfiava a cabecinha e as patinhas da frente por trás, para fazer cair Karenina e se dedicar a ela com fervor. Dei com ela a comer pedaços de fita-cola, e, naturalmente, ainda que seja grande o meu amor a Ana, não se compara à minha paixão por Amélinha…

Virei as páginas ao contrário, lombada metida para dentro. Coloquei um outro livro à frente, a tapar. No dia em que esta mania persecutória se manifestou com maior furor e intensidade, deixei até a célebre e atormentada aristocrata russa fechada à chave, para que a minha amada de quatro patas não voltasse a entrar em conflito implacável com a sua rival do século XIX.

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Agora, parece-me, já regressámos à normalidade, e Ana encontra-se de novo no seu lugar de sempre. Continua virada ao contrário e coberta por outra obra mais contemporânea e, comparativamente, sem qualquer resquício de História a marcar a sua existência. E eu, atento e vigilante, aguardando os próximos capítulos…

Ela é o meu Mar

Tinha 11 anos, estava-se em 1959, vivia nos confins do Alentejo pobre e profundo do Portugal salazarista e tinha sete irmãos que, devido às dificuldades económicas, comiam quase sempre o mesmo. Com esses 11 anos decidiu ir para Lisboa, servir em casa das famílias que tinham criadas, para melhorar a vida dela e dos irmãos.

Alguns anos depois, conheceu um jovem bonito, simpático e aventureiro, que combatera na guerra. Apaixonou-se por ele. Acabaram por casar-se e emigrar para a Alemanha. Esta coisa de virar costas a uma vida sem perspectivas não é de agora, os portugueses já o fazem há muitas décadas.

Aos 20 anos, depois de algumas tentativas, nasceu a minha irmã, a Sílvia. Dois anos e meio depois, fui eu que apareci cá deste lado. A minha mãe sempre me disse, durante estes 45 anos, que quis ter filhos o mais nova possível. Queria acompanhá-los, vê-los crescer, compreendê-los, estar perto deles, apoiá-los.

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Foi exactamente isso que aconteceu, e ainda sucede. É impossível esquecer uma noite em que, eu e a Sílvia ainda jovens e há pouco saídos da adolescência, demos com os meus pais numa discoteca, com o seu melhor amigo de toda a vida, e todos já com um grãozito na asa.

Essa noite acabou da seguinte forma: Eu, feliz da vida, porque, pela primeira vez na minha existência, também degustei um copito e não me soube nada mal. A Sílvia, nada contente, porque era a única dos quatro que não tinha ingerido uma gota de álcool. O carro – um comprido e pesado Morris Marina branco, de ferro puro – em mau estado, porque se avariou e o meu pai calculou mal a força das pernas e a distância entre a estrada e um muro, enquanto o empurrava para o fazer pegar.

A minha mãe, desde o início da noite, só dizia: “Ca-a-lma, ca-a-lma!”. Depois de termos tentado arranjar um reboque, uma casa de onde telefonar (embora estivéssemos a 500 metros da nossa) e andado perdidos uns dos outros durante uma meia hora (porquê, não sei), tudo se concluiu… O meu pai foi dormir as duas ou três horas que lhe restavam antes de ir pegar no camião e empreender o seu combate diário pelo sustento de todos nós. Eu, a minha mãe e a Sílvia ficámos a fumar cigarros suaves e femininos (marca Peter Stuyvesant – claro que a minha mãe há muito que estava careca de saber que fumávamos, e achava que de nada servia proibi-lo), a conversar e a beber cházinho até às cinco da manhã.

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Quantas pessoas poderão relatar tal episódio rocambolesco, envolvendo os pais e a irmã? Mas com a minha mãe sempre foi assim, sem tabus. Acredita na responsabilização, como arma mais eficaz que a proibição.

Esteve, e está, presente em todas as horas, para falar do que nós quisermos, desejarmos, ou precisarmos. Desde pequenos. Droga, sexo, vida, morte, eutanásia, aborto ou o mais polémico tema de que nos possamos lembrar. Sempre foram assuntos bem vindos lá em casa. Esses ou outros quaisquer.

Da mesma forma, a minha mãe fez vários sacrifícios muito grandes na sua vida, pelos filhos e pela família. Por exemplo, abdicou de ter uma carreira (é uma auto-didacta, os conhecimentos e a cultura que tem estão a anos-luz das suas habilitações formais). Mas prescindiu de trabalhar fora de casa (embora tivesse sempre por lá um bebé de quem tomava conta, substituído por outro quando crescia e ia para a creche)… Renunciou a uma profissão formal, para poder estar sempre perto dos filhos, para os ouvir, apoiar e aconselhar em todos os dias da sua existência. Abdicou de tudo aquilo que estava ao seu alcance ou que podia ter, pelo bem estar espiritual e tranquilidade dos filhos.

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Até hoje, houve apenas uma coisa que exigiu para si. O Mar. Ama-o absolutamente, e faz questão de visitá-lo regularmente, no Outono e no Inverno, porque não gosta de confusões e barulheiras. E quanto mais agitado, bonito, revolto e vistoso, melhor. É assim que ele a acalma. A minha mãe faz anos dia 1. Está mais que visto: Vamos visitar, tranquila e prolongadamente, o seu amado Mar.

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O meu primeiro dia sem carne

A minha vida é um debate. Diga-se o que se disser, ser vegetariano e futuro vegan não é mais fácil do que ser comunista, fascista ou delegado de informação médica. Toda a gente acha que tem alguma coisa a dizer sobre o assunto.

Há mais de um mês, depois de apresentar o livro Cozinha 100% Vegetal e Saudável, da minha ex-aluna Carina Barbosa, iniciei um processo de reflexão profunda e pessoal, que durou uma semana. Sete dias depois, decidi.

Vou tornar-me estritamente vegetariano, não comendo carne, peixe, leite, manteiga, iogurte, queijo, ovos ou mel, não consumindo quaisquer alimentos de origem animal e evitando, o máximo que conseguir, comprar quaisquer produtos ou objectos com substâncias de origem animal.

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Amanhã, depois de gastar as minhas últimas reservas de peixe, será o primeiro dia dessa nova era. Depois desta reflexão prolongada e ponderada que fiz, deixou de fazer sentido para mim promover, apoiar ou participar no extermínio em massa, na tortura permanente e incessante, no massacre, no sacrifício e no abuso infindável e desnecessário de animais.

Há uma extensa, completa e deliciosa lista de alimentos que nos dão as proteínas e nutrientes de que necessitamos, sem que tenhamos que comer cadáveres de animais abusados e torturados. Além de não fazer sentido apoiar esse massacre, o Planeta também não o sustenta.

Para comermos os animais que na verdade não precisamos de ingerir, e para alimentá-los, ocupamos extensíssimas superfícies de terra, para produzir comida para eles.

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A indústria agro-pecuária faz com que poluamos muitíssimo mais do que poderíamos, e do que o Planeta pode aguentar, para continuar a possibilitar-nos viver nele. Derrubamos florestas ricas em fauna e flora para poder plantar alimentação para os animais que comemos. Se a Humanidade não comesse carne, poluiríamos e danificaríamos muitíssimo menos a Terra e o seu equilíbrio ecológico.

Mas ninguém está preparado para esta revolução. Há infinitas questões que vão surgir todos os dias na vida de alguém que anuncia tornar-se vegetariano:

Mas eu gosto muito de carne!”. Na verdade, existem muitos outros sabores novos, diferentes, irresistíveis e saudáveis, que não implicam o uso de produtos de origem animal.

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As plantas também sofrem e sentem? Para podermos comer cadáveres de animais, precisamos de semear e plantar muito mais plantas do que se só comermos alimentos de origem vegetal. Assim, um vegetariano terá na sua consciência infinitamente menos mortes de plantas do que um carnívoro.

As plantas têm sentimentos e consciência? É mais que lógico que as plantas sentem e reagem. Mas que tenham sentimentos e consciência? A ciência humana, que até sabe algumas coisas, não encontrou nestes séculos todos qualquer prova ou indício de que as plantas tenham consciência e sentimentos. São estruturas biológicas e orgânicas bastante mais simples do que os mamíferos e os animais sencientes (sensíveis e conscientes) em geral.

Quanto aos animais, nomeadamente os mamíferos (e não só), em relação a eles é extremamente real e evidente que têm sentimentos e consciência. Que as vacas e porcos que são comidos pela Humanidade são, na verdade, pouco diferentes dos cães e gatos que temos em casa e amamos profundamente, como familiares.

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Ser vegan, não consumir quaisquer produtos de origem animal, é radical, extremista, fanático… É? Ser fundamentalista é algo que se associa normalmente à cegueira intelectual. Há maior cegueira do que não querer ver o sofrimento extremo, desnecessário e injusto de seres vivos sensíveis e conscientes, em nome da manutenção do supremo prazer de comer carne?

Ser vegetariano ou vegan é uma mudança exagerada, radical: Não é normal comer carne uma vida inteira e de repente mudar… A nossa sociedade está muito formatada para a carne e os carnívoros. Embora todos os cientistas e médicos saibam que no Ocidente se ingere um enorme excesso de carne e proteínas, todo o sistema industrial e publicitário, de marketing, fabrico e lavagem cerebral está virado para o consumo de carne.

Desde os desenhos animados infantis aos livros de banda desenhada para crianças, vivemos no reino da manipulação e da mentira. Os animais que são comidos são mostrados vivendo uma existência feliz e idílica, como se gozassem do mais sublime bem estar, quando apenas conhecem o abuso e a tortura.

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O “leitinho” é mostrado como um alimento que precisamos de consumir desde o berço até à cova. Quando qualquer mente lógica e informada sabe que o humano é a única espécie que bebe leite na idade adulta… Para quê?

Do mesmo modo, a carne é um símbolo saloio de prestígio e poder económico e social, sendo ao mesmo tempo retratada como algo essencial e necessário à nossa alimentação, o que é outra falsidade. Até quando viveremos na mentira?

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Até que enfim chegou o Inverno!!!

Há muito tempo que o aguardava, e sentia que já estava a chegar. Aproximamo-nos cada vez mais do Inverno. Mas o que interessa aqui mesmo é que, para a Amélinha (aliás, a “Gááta!!”), o Chiquinho, o Jeremias e a Matilde, ele já chegou há vários dias.

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Claro que para Jeremias, o Gato Sexual, que adora presenciar actividades íntimas humanas e se deleita em deitar-se directamente sobre a minha pele, nem chega a haver Verão, Primavera ou Outono. Ele gosta mesmo é de estar directamente em cima do dono, esteja ele vestido, desnudado, só ou acompanhado.

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Mas nas últimas semanas, já começa a ter vontade de fazer a outra coisa que só pode dar calor e conforto espiritual a quem gosta insanamente dele como eu: Vir para debaixo dos cobertores e enroscar-se em mim. A Gááta, a bebé cujo lugar natural é ao meu colo, a fazer “rrrrrr, rrrrrrrr, rrrrrrrr”, também começa a pensar nisso.

No Inverno, ela encosta-se e aninha-se em mim durante a noite, ronrona como um pequenino motor e dá-me patadinhas fofas e carinhosas de vez em quando, enquanto boceja e estremece.

Neste momento, agora que o calor finalmente se foi embora, eles, o Chiquinho e a Matilde já passam sempre a noite comigo, cada um no seu lugar específico da cama. A Matilde e o Chiquinho do lado esquerdo, ela mais acima, ele mais abaixo. O Jeremias e a Gááta em cima de mim e ou no lado direito.

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A Matilde só chega quando os outros já adormeceram e não podem chateá-la. Também se levanta antes deles pela mesma razão. Mas se eu deixo a cama de madrugada ou a meio da noite, vem imediatamente saudar-me, acercar-se de mim, esfregar-se nas minhas pernas e seguir-me por todo o lado. “Mrrnhéu!! Mrrnhéu!!”.

É possível um gatinho ser ainda mais fofo do que é? É. No Inverno. Nesta época do ano esquecem momentaneamente o facto de lutarem todos os dias com empenho e furor pelo meu amor e dedicação. Embrenham-se, aninham-se, enroscam-se, enrolam-se, todos juntos na mesma exígua cama de gato, sobre o micro-ondas, em qualquer espaço que pouco mais mede do que um deles sozinho. Até que enfim chegou o Inverno!!!

“Não se pode falar ao telefone!”

O olhar passeia-se pela sala cheia e agitada. Instintivamente, o meu cérebro analisa as duas metades do espaço e identifico-me mais com os ocupantes que mostram um aspecto mais limpinho, mais cuidado e mais certinho. Como se não fizesse parte do grupo dos que têm a barba por fazer, uma camisola mais desmazelada, umas calças mais desleixadas.

Quando, na verdade, o meu estilo descontraído (ou “messy”, como diz a cantora portuguesa que divulga um novo penteado no Youtube) até é mais parecido com o deles. Para lá dessas aparências ilusórias mal interpretadas pela minha mente, somos todos exactamente iguais.

A rapariga nova, com um ar fresquinho e asseado que está ao meu lado tem um aparelho verde nos dentes, cabelos loiros bem penteados e apanhados, olhos claros e brilhantes. Atende o telefone… Uns metros ao lado, o segurança avisa-a de que não é possível utilizar telefones.

Brincando com ela, digo-lhe que os responsáveis do Instituto do Emprego devem achar que os desempregados estão numa prisão. Ri-se. A morena ao seu lado, cabelo e roupas escuras, igualmente jovem e bonita, olha para mim em concordância, sem largar o telemóvel.

Não se pode falar ao telefone, mas a campainha do meu messenger apita sonoramente com avisos e mais avisos e não há problema nenhum. Enquanto isso, o mais ou menos smart phone até tira umas fotos à sala. Com flash. Não se passa nada.

A funcionária modelo que me explicou tudo e mais alguma coisa sobre a aquisição, recepção e processo burocrático relativo ao subsídio de desemprego convoca-me. Tenho que entregar o meu cartão do cidadão… Que está desactualizado desde Julho. Apenas posso apresentar o pedido de renovação, e assim faço. Daqui a umas semanas regresso, com o verdadeiro, o legítimo – quando estiver pronto.

O barbeiro alcoólico

Passo por ele às quatro da manhã, às seis da madrugada, de tarde, de noite. “Bom dia! Boa tarde! Boa noite!”. Atravesso a calçada, subo a correr, ao início do dia, e lá estão os escombros esmigalhados da barbearia, onde se acolhe durante parte da noite.

Mistério supremo, está sempre inundada, e as roupas do homem espalhadas pelo passeio, à frente, em cima de um caixote, encostadas a uma parede, sobre uma qualquer estrutura improvável.

Em tempos, quando talvez andasse melhor, já teve um gatito, uma espécie de Jeremias em plena infância, um felino lindo e simpático, que esticava as patinhas sobre as pedras quando se estendia ao sol. Agora o pequeno está com uma amiga.

Já não vai fazer os grandes passeios que fazia, exactamente aos mesmos lugares onde o dono se deslocava, mas em separado. “Ah, ele está bem, ele está bem”, diz o homem.

Às vezes encontro o barbeiro em melhores condições de consciência, e os cumprimentos e conversas são mais alargados. E já vi este meu vizinho da rua de cima na festa de Natal da Comunidade Vida e Paz, onde o diálogo foi ligeiramente mais profundo.

Cruzo-me com ele de vez em quando, perdido no meio de alguma rua ocasional, adormecido a um canto, anestesiado pelos vapores da noite. Penso que o conheci numa época razoável da vida. Ainda chegou a cortar-me o cabelo (sem água nem electricidade), e, tendo em conta as condições em que o fez, não ficou mal.

O amigo dele, enquanto o criticava sem piedade, dizia que ele era um bom barbeiro, que tinha mão. O grande problema era a bebida. Também me parece ter ouvido que chegava a roupa ao pêlo à mulher, motivo pelo qual estará divorciado. E que tinha um filho.

Além de ir buscar comida e apoio emocional às carrinhas das instituições, já dei com ele a sair de um prédio junto à estação, com uma senhora, que poderia eventualmente ser amiga ou familiar. Bem vestido e bem disposto. Era bom que estivesse assim mais vezes. E que não lhe dê na veneta bater nalguma mulher, ou em quem quer que seja.

“Porque é que vêm para as filas tão cedo?”

Blazer bege, camisa azul desabotoada por cima, calças de tecido, bengala escura, o homem de 80 e muitos anos cambaleia e abana fortemente, dir-se-ia que vai cair a qualquer momento e que não faz a menor ideia do que está a fazer ali. Mas tem um objectivo muito concreto. As outras pessoas estão há mais de três horas na fila, mas, consensualmente e sem chegarem a trocar palavras entre si, dizem-lhe para passar à frente.

A custo, chega ao balcão a que tinha de se dirigir, lamentando-se com gestos e expressões do rosto mas sem que saiam sons da sua boca. Mantém o mesmo ar desorientado que, até agora, o trouxe ao sítio certo.

Começa a manifestar-se de forma audível, mas ainda não são propriamente palavras. As funcionárias, a acordar e também elas confundidas, observam com os olhos húmidos, emocionadas e tristes com aquele espectáculo.

Uma lança a outra que vai a passar, mais alto à segunda vez: “Óh Francisca, tira aí uma senha a esse senhor! Tira aí uma senha a esse senhor!”. Já lhe tinham dito a ele para fazer isso, mas o velho senhor estava demasiado perdido.

Com o precioso pedaço de papel na mão, dirige-se ao balcão e senta-se. Quem o atende tenta perceber a situação. “Sim, mas então diga-me lá o que quer. Diga-me lá o que quer”. Depois de algumas frases que soam a “olhe, se faz favor. Olhe, por favor”, começa a explicar-se.

Ouvem-se então conjuntos de palavras que incluem “o Bilhete de Identidade” e “os correios”, repetidamente. O documento de identificação caducou, e, nos correios, embora todos os funcionários o conheçam há anos e o recebam sempre mensalmente, deixaram de lhe pagar a pensão.

Para a fila que está lá fora, cujos ocupantes têm menos idade e não sofrem das limitações inevitáveis que o atingem, o dia começara muitas horas antes. Pelo menos para um deles, o primeiro a chegar.

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Recebe esta aventura matinal com sorrisos e simpatia. Começa a conversar tranquilamente, em inglês, e relata a sua situação. Insiste para que me sente na sua pasta de documentos, para não estar de pé, ao frio.

Revela que a vida está difícil para os que vêm do Bangladesh, da Índia e do Nepal. De países onde a existência humana nada vale e a sobrevivência é um milagre.

Revela que antes, quando chegavam para vir trabalhar em Portugal, mostravam “o dedo” para a impressão digital e os documentos (passaporte com visto) e, ao fim de pouco tempo, obtinham o número da segurança social.

Agora, conta que são meses de espera. Dois, três, seis, mais… Acrescenta que, para poder trabalhar em Portugal, têm que pagar mensalmente 180 euros à segurança social. E que, enquanto vão esperando pelo cartão da segurança social, esses valores mensais se vão acumulando.

E agora só nos dão o cartão da segurança social se tivermos chegado de avião. Se viermos noutro transporte não nos dão o cartão”. Entristece-o o facto de ele e muitos outros da mesma região do mundo estarem aqui ilegais.

Comenta que estas são pessoas que trabalham e fazem mexer a economia. Têm lojas, trabalham em comércio, têm empregados, compram e vendem. “Isso é bom para a economia portuesa. E vendemos os produtos mais baratos. Mas não resolvem a nossa situação”.

Mesmo assim, depois de mais de três horas ao relento, entra na repartição com um sorriso de orelha a orelha. Embora não perceba “porque é que os portugueses vêm para as filas tão cedo. Se viessem às oito e meia, não precisávamos de chegar antes das cinco”.

Devia viver em Monchique

Já me passou algumas vezes pela cabeça o que aconteceria à Amélia, ao Chiquinho, ao Jeremias e à Matilde se a minha casa fosse assaltada. A Amélinha e o Chiquinho ir-se-iam esconder entre as mantas da cama e debaixo da areia das suas casas de banho. A Matilde entraria em estado catatónico.

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O Jeremias iria gentil e educadamente mostrar a casa aos ladrões, guiá-los às diferentes divisões e indicar-lhes o que poderiam levar: “Amigos! Visitas! Espectacular! Isto aqui é sempre tudo tão calmo!”. Mas se, em vez de um assalto, fosse um incêndio?

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Este ano tivemos mais um Verão de terror para todo o país, com o fogo a atingir florestas e zonas habitadas, na Madeira e em Monchique, entre muitas outras zonas do território. Mas em Monchique tudo mudou.

Se, para algumas pessoas, existe a ideia de que soltar os animais pode ser suficiente para que eles escapem às chamas, nem sempre isso é verdade.

Só que, naquela bela e preciosa serra, há agora um plano, que já funcionou este ano, na última “época de incêndios”… E resultou, segundo o jornal Público: foi possível salvar todos os animais das zonas afectadas.

O Programa Animal Seguro fez com que não se repetisse o que aconteceu em 2004, quando centenas de animais morreram. O P.A.S passou por sessões de esclarecimento públicas, primeiro com os numerosos estrangeiros ali residentes, e muito amigos dos animais, e depois com a população em geral.

Os habitantes foram formados e preparados para prevenir incêndios e reagir a uma situação de emergência, salvando-se a si e aos animais. E os próprios bombeiros locais já estão preparados para prestar os cuidados de Suporte de Vida Básico aos animais, e não apenas às pessoas. Existem em Monchique, por exemplo, máscaras de oxigénio para socorrer animais nestas situações, e vão ser compradas mais.

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Se calhar, se quiser evitar transtornos e perigos para a Amélinha, o Chiquinho, o Jeremias e a Matilde, tenho que ir viver para Monchique!

“Só preciso do vosso apoio emocional”

Está sentada na paragem do autocarro, quase como se estivesse num café. Só que está no meio da rua. Vestida e mal tapada com tecidos cor-de-rosa e de tons suaves, recebe-nos com um sorriso doce e simpático.

Com os olhos bondosos enquadrados pelo cabelo muito curto e ruivo, R, de 50 e muitos anos, mostra-nos como a artrite lhe deforma significativamente os ossos, tanto que nem consegue escrever o primeiro e o último nome, a não ser pegando na caneta como se fosse uma colher e arredondando dolorosamente as letras.

Com a sua minúscula pensão de viuvez, vivia num quartinho. Mas a proprietária foi trabalhar para o estrangeiro, e teve que mandar embora todos os que ali residiam. Agora, esse pequeno valor que R recebe não chega para a comida e os medicamentos.

De dia, avança algumas centenas de metros, para uma zona mais central, e pede dinheiro a quem passa. À noite fica aqui sentada, ao frio, e não consegue dormir. Nem chega a fechar os olhos. Tem medo que lhe façam mal.

Conversamos enquanto um prolongado desfile de motoqueiros faz um barulho infernal com as suas máquinas, à meia noite, no centro da cidade. Ruído e confusão são coisas que lhe são familiares mas não lhe agradam de todo, nem a deixam sentir-se segura.

Às vezes, os bêbados vêm bater com força no vidro da paragem. Assustam-me. Nunca adormeço”.

Alguns quarteirões mais acima, também já é quase hora de descansar. H está a preparar o seu modesto e frio quadrado de chão para a noite. Coloca uma superfície ligeiramente macia por baixo, uma pequena manta por cima.

Privado da visão, vai arrumando as garrafas de água, as luvas, o saco. Desloca-se para baixo e para cima nas escadas, tacteia, equilibra-se. É orgulhoso e completamente autónomo.

Mesmo assim, do nosso lado há de vez em quando um braço ou uma mão que não resiste a esticar-se uns centímetros para poder ampará-lo, se necessário.

Há algum tempo, caiu destas mesmas escadas, e não ficou nada bem. Já consegue dormir algum tempo sobre o lado esquerdo. É difícil descansar sempre em cima do mesmo braço, ainda mais sobre a rua.

Ainda não está a cem por cento. Não consegue respirar com muita força ou muito depressa, mas está a melhorar. “Precisa de alguma coisa?”. “Não, não. Só preciso do vosso apoio emocional, da vossa companhia. E a comida também dá jeito!”.