Uma bala na noite

Uma bala pode ser um mistério para muita gente, mas não para este homem que vive à frente de uma garagem. Durante uns 15 minutos, explica-nos tudo aquilo que alguém precisaria de saber sobre um projéctil de grande calibre. Como é feito, o que tem dentro, o que acontece com ele nesta ou naquela situação. Ficamos esclarecidos.

Se, antigamente, este senhor de barba e olhos brilhantes mal dizia boa noite aos voluntários que vinham trazer-lhe comida e conversa, agora podíamos estar a noite toda a trocar impressões com ele, se não tivessemos mais 30 sítios onde ir a seguir.

O local lisboeta com mais gente em busca de comida não tem quase ninguém hoje. Todas as pessoas foram para um evento organizado por uma entidade também empenhada em apoiá-los, e não precisam de nada desta carrinha, para já. Mesmo assim, a mulher das revistas mostra-nos o vidro partido de uma montra e conta como tudo aconteceu.

O rapaz que ali costuma estar ausentou-se por momentos, e quando voltou tinham-lhe roubado tudo. Ficou tão irritado que partiu a montra aos murros.

À beira da sede da EDP, o homem que, há 15 dias, estava a guardar o dinheiro para publicitar o seu trabalho, em vez de o gastar para ter cama durante a noite, não está presente. Talvez tenha conseguido sair de vez, como garantiu há duas semanas.

Encontramos um senhor sem dentes e com alguma idade. Com frases bastante coloridas e ácidas, diz mal de tudo e de todos, especialmente dos políticos – portugueses e brasileiros. E recorda-nos os tempos em que trabalhava nas vindimas, pela Europa fora, viajando com dinheiro no bolso. Bons tempos, a vida era diferente.

O nosso amigo de bigode e óculos que adora leite também não quer comida hoje, tal como há 15 dias. Já tem, para as próximas horas.

O filósofo da rua, sem tecto nem visão mas sempre mais que apresentável e cheio de reflexões profundas, já dorme. Desta vez não há paragens de reabastecimento de comida, antes do regresso à sede da Comunidade Vida e Paz.

A festa do carinho

As duas raparigas altas, simpáticas, de olhos claros, sinceros e transparentes reagem com ruidosa felicidade quando me vêem. Abraçam-me com enorme carinho. “Vasco, Vasco, Vasco, Vasco!!!”. Não nos víamos há muito tempo, mas parece que não nos cruzávamos havia décadas.

Ainda por cima, têm um triunfo para gozar. Tinha desaparecido há muitas horas “em busca de um docinho” e foram elas que me encontraram.

Um dos companheiros revela que, na noite anterior, esteve perdido num parque de estacionamento durante algumas dezenas de minutos, e só conseguiu telefonar ao resto do grupo quando já se encontrava a metros deles.

Há meia dúzia de concertos diversificados, nacionais e internacionais, a acontecer em diferentes lugares. Há uma festa do livro e do disco para satisfazer o apetite literário e musical.

Há uma sala de teatro com espectáculos para acompanhar. Há uma representação aprofundada da gastronomia e do artesanato de todo o país, espalhada pelo vasto espaço. Há bancas de vários países do Mundo, com comidas e bebidas desses lugares.

Haverá quem chame à Festa do Avante um festival de Verão. Existirá quem considere que é a Festa do Partido Comunista Português. A Festa do Avante é a festa do carinho, da amizade e do companheirismo.

“Você deve cinco mil euros à Segurança Social”

Chego ao balcão da Segurança Social e lá está a senhora M.F.A., rosto escuro, sorridente e bonacheirão. Explico-lhe o que se passa. A Segurança Social anda a pedir-me todas as semanas algo que eu já requeri, paguei e entreguei duas vezes (exactamente o mesmo documento), o histórico de actividade de trabalhador independente de toda a minha vida.

Com as unhas pintadas, os óculos e as faces cheias de serenidade, M.F.A. acha que aquilo é uma duplicação de tarefas, uma falha de informação interna, um não cruzamento de dados.

Mesmo assim, pelo sim pelo não, vai remexer a fundo no meu processo de trabalhador (desempregado), pesquisando no computador e telefonando para a secção de actividades independentes.

Tenho uma actividade que comecei em 1997, fechei em 1999, abri em 2004, terminei em 2005 e reabri em 2013, para encerrar de vez em 2014. OK, tudo bem.

Vamos ver se isto gerou alguma dívida… Bem, você tem uma dívida. E uma dívida bem grande”.

Entre telefonemas sucessivos para a secção de trabalhadores independentes, vai comentando. “Isto não faz sentido nenhum. Você não pode ter esta dívida. Isto não bate certo”.

Sempre ao telefone, esperando meia hora de cada vez para ser atendida, fala com várias colegas da tal outra secção. “Abra lá o processo, diga-me se eu estou a pensar bem. Não, o contribuinte não pode ter estas dívidas nestes anos”.

Parece um filme de Hitchcock, mas comigo. Acaba por desligar o telefone e esclarecer-me. “O seu processo gerou aqui uma dívida de CINCO MIL EUROS, mas não fazia sentido. Era referente a dez anos em que você não teve actividades de trabalho independente, e estava a descontar trabalhando por conta de outrem, por isso não fazia sentido. Já está tudo resolvido, já está tudo colocado a zeros. Pode ir embora descansado, não se preocupe. Não, espere.

Nesta altura M.F.A. dá-me um documento oficial emitido por ela, assinado por ela e com observações suas a caneta de tinta azul. A folha de papel A-4 que contém o meu destino mostra e prova que a minha dívida à Segurança Social é de 00000000. Abaixo, as observações escritas à mão esclarecem que o processo foi resolvido e limpo por M.F.A. Seguro-lhe a mão carinhosamente e abençoo-a.

Vejo o correio duas vezes por dia. Nesta manhã chego a casa, acaba de vir uma carta, em papel, em correio de papel… Diz que a situação que levou ao pedido do histórico de trabalhador independente já “foi rectificada”. Hum?!?!

Ela despede-se de mim e garante que algo vai acontecer

Percebo, pelo sotaque, que não é portuguesa. Está de pé ao meu lado, alta, cabelo comprido, escuro, encaracolado, vestido de Verão, casaco de malha leve e fino por cima. É faladora e sociável. Começamos por nos queixar da burocracia, d’O Sistema Kafkiano que não faz sentido.

Conto-lhe porque estou ali, mais uma vez, àquelas horas. Acaba por relatar-me algumas das suas experiências burocráticas em Portugal, diz-me que reclamou, exigiu, protestou. Às seis, ela é o número 11, eu o número 12.

Em vez de ouvi-la, sou eu a explicar-lhe qual é a nova peripécia que me traz outra vez a estas filas de espera. Convida-me para o café e o pequeno-almoço, que se concretizam um minuto depois, quando a pastelaria abre.

Conversamos sobre voluntariado, catolicismo, cristianismo ortodoxo, literatura. Esta figura feminina, que parece não ser totalmente real, prende-me o olhar. É uma cidadão do Mundo, mas, puxando por ela, consigo que me revele a sua nacionalidade romena. Há muitos anos que já se sente portuguesa.

O seu primeiro e último amor é Dostoievski, mas não pode esconder a sua paixão por Tolstoi, Gogol e Mircea Elíade, ou a sua curiosidade relativamente a Alexandre Fadéiev.

Falamos e falamos e falamos. É uma intelectual que adora as tecnologias, e quando a bateria do smartphone de última geração se descarrega fica triste. Usa o meu chaçomóvel para que eu lhe mande um pedido de amizade.

Continuo a falar sobre mim. Voluntário de duas associações, jornalista desempregado, alvo de uma reestruturação, 45 anos de idade, 30 a trabalhar, desde os tempos como servente das obras às mais de duas décadas e meia de jornalismo.

Dinâmica, activa, enérgica, consegue carregar o telemóvel sofisticado, dar-me sugestões de meia dúzia de livros para ler e de uma dezena de sites, páginas, grupos, anúncios e oportunidades de trabalho às quais eu tenho que concorrer. Acha que as pessoas devem ajudar-se umas às outras, e está firmemente determinada a fazê-lo por mim.

Às dez e meia, chega a minha vez, depois de ela ter sido atendida. Com os olhos brilhantes a brincar em modo dançarino, garante-me que vamos estar em contacto, que vai ajudar-me, que conhece muita gente e que algo tem que acontecer.

Despeço-me deste ser humano que marcou quatro horas da minha vida, dirijo-me ao balcão e sou atendido.

Morrerá sem ter absolutamente nada

Cabelo numa pasta espessa em forma de boina, rosto triste totalmente indiferente à vida. Roupa coberta por sucessivas camadas de pó e sujidade. Corpo e vestuário não vêem água há muito, muito tempo.

O Homem do Semáforo, com a lata das moedas. Passo por ele regularmente, de carro. Está lá sempre. De manhã, à tarde, pela noite dentro.

Alguém uma vez comentou: “Como é possível uma pessoa chegar a um estado de degradação tão grande?”…

Este homem, com a sua existência mínima, aceita uma moeda ou uma sandes, e nenhuma outra ingerência no seu dia-a-dia.

Há seres humanos que as equipas de rua das instituições, até agora, nunca conseguiram ajudar. Homens e mulheres que não se deixaram apoiar. Se alguém se aproxima, seja ou não de uma instituição de solidariedade, acontece uma de duas coisas.

Ou têm a mesma reacção que teriam se uma nuvem tapasse imperceptivelmente o Sol por um segundo… Ou, assustados, intimidados e invadidos, movem-se de repente com um salto, viram costas, fogem, correm, desatam aos gritos.

Um dia, como todos nós, o Homem do Semáforo vai morrer. Sem uma cama. Sem um tecto. Sem um amigo. Sem alguém que lhe faça um funeral e lhe diga um último adeus. Sem nada. Absolutamente nada.