“Quando a gente anda naquilo não queremos saber de mais nada!”

Uma máquina de flippers funciona, naturalmente, com moedas, e felizes de nós os que já brincaram com uma. Mas há muito mais ciência por detrás deste engenho de um ou dois metros, com bonecada, patilhas manipuláveis e uma bola deslizante e incontrolável lá dentro. Não basta ir a um salão de jogos para perceber isso. Há um processo revolucionário que envolve a moeda e uma prata de um maço de tabaco, de preferência mais resistente, como a de um SG filtro.

O homem que vive à frente da garagem domina este conhecimento (também este) com mestria, e transmite-nos essa sabedoria com exactidão e detalhe. O problema é que, a meio destas lições sincopadas, nem sempre coerentes e fascinantes, acabamos sempre por nos perder por completo.

Junto à Igreja, três homens lamentam-se e criticam a voz desconhecida que ali fez chegar uma ambulância do INEM por brincadeira, enquanto aceitam a sandes, o bolo e o iogurte para ludibriar a fome.

O homem que saiu da rua pelos seus próprios meios está esta noite um pouco estranho e diferente. Ao contrário do habitual, todos lhe notam hoje um brilho de tristeza e melancolia nos olhos, mas não quer dizer o que se passa.

Encontramos perto do Marquês de Pombal um homem que já foi toxicodependente e está em pós-recuperação. Tem hipótese de ir temporariamente para um albergue mas ainda está a habituar-se à ideia. Relata que, quando andava metido naquilo, nada lhe importava. Só de manhã, a ressacar, se sentia incomodado. Estar ali na rua, à vista de toda a gente, em estado de degradação, perturbava-o nessas alturas.

Agora que está livre, sente a discriminação de quem passa. Há muita. As pessoas julgam pelas aparências.

Há dias encontrou junto a uma sapataria, no chão da rua e sem dono, uns ténis modernos e novinhos em folha, sem um risquinho sequer. Não eram de ninguém e levou-os. No dia seguinte adormeceu na rua… Quando acordou, já lá não estavam.

O homem simpático que gosta de leite e iogurte só quer a parte líquida da oferta e dispensa o resto. Esta é uma noite de grande agitação, a balbúrdia é completa no centro de Lisboa, há gente e mais gente. Está desconsolado. “Isso é um engano. Vem um, estaciona, e depois já não sai dali e não vem mais nenhum. Já estou farto disto. Estou com uma dor de cabeça… E estou aqui à espera que cheguem três condutores que estacionaram, em vez de ir dormir”!

Com os seus obrigatórios e convenientes coletes reflectores (personalizados com os pins e crachás do seu agrado individual), os voluntários da Comunidade Vida e Paz e da Animalife, que apoiam as pessoas sem abrigo de Lisboa e os seus animais, parecem verdadeiros extraterrestres. Percorrem a Avenida da Liberdade durante a confusão absoluta da Vogue Fashion Night Out, em que todas as meninas de minissaia e decote, namorados de pólo e calça de tecido, senhoras de vestidos prateados esvoaçantes e rapazes de chapéu e camisa bem direitinha e lustrosa saem à rua.

Procuram as promoções, descontos e ofertas das marcas de roupa mais caras da cidade, e do Mundo. Ficam atordoados e espavoridos quando vêem este grupo de oito pessoas que vem alimentar e ouvir  as outras pessoas, as que dormem no chão, se deitam num pedaço de papelão e não têm o que comer, com quem falar ou como encontrar um caminho na vida. “Mas… O que andam eles aqui a fazer?!”, perguntam os seus olhos aturdidos.

Serás sempre o primeiro

De vez em quando apareces-me com umas manchinhas de caspa, e isso é que não pode ser. Descobri, através das fontes mais credíveis, a forma eficaz e natural de combater esse problema. Muitas semanas depois, ontem e hoje, repeti o processo.

Puxei-te o lustro, cuidadosa e dedicadamente, durante um bom bocado. Primeiro com um pano húmido, depois com um seco e depois com outro mais absorvente. Ficaste com um ar ainda mais limpinho, hidratado, liso e brilhante.

Nos últimos meses, e anos, tens-te lamentado muito, na tua voz carinhosa, humana, impossível de ignorar ou de não reagir. Querias ser o único no Mundo para mim, como acontecia no princípio. Não desejavas disputar a minha atenção, o meu carinho e o meu amor com mais ninguém.

Quando me massajas o estômago suave e delicadamente, é isso que me dizes: “pertenço-te, a ti, a mais ninguém e exijo o mesmo de ti”. Quando te esqueces, por uma fracção de segundo, de me dar as boas vindas ao fim do dia, lá vens tu logo imediatamente a seguir. “Olá! Estou aqui! Desculpa! Adoro-te”.

Se estou a almoçar ou a jantar, cobiças sempre gulosamente o meu prato. Não pode ser, faz-te mal, e tu já percebeste. A divertida e engraçada vingança segue-se. Mordes-me docemente o pulso, a pulseira, o relógio, o braço, os óculos que ficam em cima da mesa. De vez em quando tenho que te “ralhar” (pois, está bem!) para conseguir continuar a comer.

Passaram seis anos desde que me saltaste para o colo pela primeira vez e ficámos juntos para sempre, Chiquinho.

Todos os meus quatro pequenos e doces familiares e coabitantes são a coisa mais bela e querida que tenho na vida. Tu serás sempre o primeiro, o Meu Chiquinho, o começo da História. O princípio de tudo. Parabéns e obrigado por estes seis anos de felicidade, Chiquinho. Tantas coisas boas e tantas mudanças na nossa vida, e no teu aspecto, desde esta tua foto, Chiquinho!

Os guerrilheiros invencíveis

Mostrando os dentes, com uma chama de triunfo e de raiva a brilhar nos olhos negros, empunhava tudo o que encontrava sobre a secretária e tudo arremessava ao adversário com tal furor, tanto estrondo, que Balder se deixou cair no soalho protegendo com as mãos o crânio calvo”.

Os nazis chegaram a Krasnodón em Julho de 1942. Na cidade ucraniana da União Soviética foram atacando e desmantelando a rede de resistência, comandada pelo Partido Comunista.

Os guerrilheiros e resistentes retratados em a Jovem Guarda, romance “documental” de Alexandre Fadéiev (uma verdadeira reportagem, feita pelo jornalista e escritor no local e depois composta por ele como um romance), não cedem, não se cansam, não confessam e não vacilam.

Dois deles, Mátvei Chulgá e Valkó, são capturados e reunidos no mesmo interrogatório. Fingem que não se conhecem. Mas a atitude dos interrogadores, que, visivelmente, têm ordens para não os matar, fá-los mudar de atitude.

Segue-se uma cena de pancadaria épica, acima descrita, em que os dois velhos combatentes se sentem invencíveis e agem como tal, perante dezenas e dezenas de soldados nazis.

A prisão enche-se com ainda mais soldados, e, com o passar das horas e a pancada, os dois super-guerrilheiros são dominados. Os alemães, que não conseguem arrancar nada a estes presos nem aos outros que estão na mesma cadeia, decidem executá-los todos.

O método escolhido consiste em enterrá-los vivos. Homens, mulheres, velhos, novos, uma mãe com a criança ao colo. Chulgá, o herói soviético que se mantém de pé até deixar de estar vivo, decide entoar o cântico comunista, a Internacional Socialista.

Os outros presos que estão a ser executados com ele da mesma forma seguem-lhe o exemplo. Ao longe, bem longe, uma mulher caminha na estepe. Não sabe se está a sonhar ou se ouve bem. De entre as trevas mais negras e profundas, no meio da escuridão total da noite, há um som que sai das entranhas da terra. Vindos debaixo do chão, ouvem-se os acordes da Internacional.

Sete décadas depois de todo aquele horror, seria de esperar que se tivesse aprendido alguma coisa. Mas não parece que seja esse o caso.

A água não é toda igual!

Desde que as estatísticas sobre a insuficiência renal cá de casa (75% de casos, sem contar comigo) desaconselharam o uso de água da torneira, os meus companheirinhos ronronantes de todas as horas passaram a ter tratamento (mais) VIP no que toca à hidratação.

Com intervalos máximos de duas semanas, faço uma aquisição especial de água de Monchique. O problema é que a água de Monchique, a mais perfeita, saudável e equilibrada de todas, não é fácil de encontrar. Não existe em todo o lado.

Não há no Minipreço. Não há no Lidl. Não há no Pingo Doce. Há no Continente. Mas não em todos. Então, passei a deslocar-me periodicamente ao Colombo para adquiri-la.

Habituei-me a trazer uns quatro garrafões de cinco litros, que não chegam completamente para duas semanas. Tentei levá-los ao colo para a caixa registadora, mas não correu bem. Passei a empurrá-los com o pé, deixando-os deslizar suavemente sobre o soalho sintético, até chegar o momento de pagar.

Depois disso, furava os dois packs de dois garrafões de cinco litros ligeiramente, na zona da pega de um deles. E levava-os, assim, dez litros de cada lado, até ao parque de estacionamento e ao carro, esperando que se mantivessem suficientemente inteiros até lá.

Naquele dia, aplicava o tal jogo do empurra até à caixa, deixando alguns dos outros clientes surpreendidos. Quando lá cheguei, encontrei uma rapariga jovem, sorridente e simpática. Achou todo aquele esforço um pouco inglório.

Junto com o seu sorriso, ofereceu-me uma ficha para os carrinhos de compras, e indicou-me onde se encontravam. Aquele gesto de gentileza e amabilidade deixou-me, também a mim, a sorrir.

É verdade que a água não é sempre igual. Umas são mais puras, neutras, ácidas, alcalinas… Quem se dedica à sua apreciação e tem o paladar apurado concluirá que gosta mais de umas do que de outras, que esta sabe assim, que aquela se sente de outra forma.

Sobre as empregadas das caixas e as pessoas em geral, pode dizer-se exactamente o mesmo. Algumas pessoas são simpáticas, delicadas, diplomáticas, corteses. Fazem aquilo que têm que fazer, bem, e de uma forma consciente e empenhada. E, depois, há as outras. As que vêem mais longe, e que estarão sempre dispostas a percorrer mais uns metros, ou mais um quilómetro, só para saber que deixaram os outros um pouco mais confortáveis, um bocadinho mais bem dispostos, um nadinha mais felizes…

Medo de andar de metro

Senhores passageiros, a circulação na linha azul encontra-se interrompida. Não sabemos quando será retomada”. Como o funcionário humanamente presente mostra não saber mais do que a voz que sai das paredes, revelando que “podem ser minutos ou horas”, subo para a rua.

Informado por um motorista da Carris, procuro o 712. Surge uma moça morena, simpática e conversadora, de 25 anos, dizendo que veio a pé do Rossio e queixando-se do calor “horrível”.

Diz que não anda de metro porque tem medo, e, embora viaje frequentemente de avião, fá-lo sempre em pânico. Tem família na Alemanha, afirma que andou lá entre as nuvens no dia que se seguiu ao dos atentados do 11 de Setembro, e, noutra altura, apanhou uma tempestade, embora a aeronave voasse algumas centenas de metros acima da turbulência.

Doutra forma seria impensável para a menina de olhos escuros e sonhadores. Uma vez apanhou um voo sozinha, e, apesar dos calmantes que toma sempre nestas ocasiões, chorou até aterrar. Quanto a hoje, ia para o campo de Santa Clara, apanhou o autocarro em Santa Apolónia mas sai na Feira da Ladra.

À minha frente, um trio de homens animados e faladores. Um deles, 50 e muitos anos, ar completamente inofensivo e olhos totalmente roxos, toca uma música no realejo que lhe sai do bolso, após a insistência dos amigos, e depois conta ao outros o que se passou na noite anterior.

Diz que foi algemado, esmurrado e levado para a esquadra, sem que se consiga perceber porquê. Foi na zona do Intendente… Que, hoje em dia, é das mais chiques e cosmopolitas da cidade.

Um dos companheiros, com uns 20 anos a menos, sai do autocarro  antes da Praça do Chile e diz que vai “pôr isso tudo aqui no Magalhães”. Leva com ele a malinha contendo no interior o célebre e pequeno computador portátil infantil lançado na era de José Sócrates, e que mais tarde se tornaria polémico.

O plano era ir de autocarro até à rua da Artilharia Um, e depois subir para o Espaço Amoreiras, não muito longe do Centro Comercial Amoreiras. Chegados ao Marquês de Pombal, toda a gente sai. “Então, não sabe que ao fim-de-semana o autocarro só vem até ao Marquês?!”.

Não há ambulâncias com filósofos

Passo por ele por volta das sete. É um rapaz negro, jovem, musculado, que faz lembrar os velocistas olímpicos. A esta hora da manhã, está sentado na calçada, pernas cruzadas, mãos a cobrir o rosto. Rodeio-o e tento perceber se se passa algo de errado.

Prossigo o meu caminho, em trote acelerado, e percorro uns tantos quilómetros. Quarenta minutos depois, no regresso a casa, passo exactamente pelo mesmo sítio.

O jovem continua lá, precisamente na mesma posição em que se encontrava há quarenta minutos. Sentado no chão, estático, uma perna sobre a outra, braços em torno da cabeça.

Interrompo a corrida. Aparece outra personagem masculina, igualmente jovem, branca, com aspecto e sotaque estrangeiro.

Falamos um com o outro, a tentar perceber se devemos fazer alguma coisa. Explico-lhe que não tenho comigo o telemóvel, para poder chamar alguém.

O visitante, talvez italiano ou francês, conclui que se nota que o jovem solitário está bem. Não está caído, não está adormecido, não está visivelmente embriagado: Está bem, não precisa de assistência médica.

Partimos desse princípio e afastamo-nos. E fico a pensar.

O homem misterioso estava fisicamente bem. Aliás, gostava muito de exibir a boa forma física dele. Mas não estava bem, não podia estar bem.

As pessoas que têm ataques, episódios de doença, quedas ou algo do género no meio da rua, normalmente, são assisitidas. Acaba por chegar um médico, um paramédico, uma enfermeira, um bombeiro, e esses seres humanos são socorridos.

Quando alguém está mal psicologicamente, triste, deprimido, ansioso, apático, sem interesse pela vida, perdido na existência, o que é que se faz? Não há ambulâncias com psicólogos, psiquiatras, filósofos, pessoas que estejam disponíveis para fornecer, de emergência, um ombro amigo, uma palavra de conforto, um caminho, uma ideia, um pensamento…

Dostoievsky nunca poderia chamar-se Tolstoi

Desde a mocidade estava convencido de que se é próprio dos pássaros alimentarem-se de vermes, terem o corpo coberto de penas e voarem no espaço, dele era próprio comer iguarias requintadas, preparadas pelos melhores cozinheiros, vestir-se da maneira mais elegante e mais confortável, montar os cavalos mais rápidos e mais seguros, e que, necessariamente, isto devia estar à sua disposição”, escreveu Tolstoi, em 1899, referindo-se a um ministro do tempo dos czares.

Em 1848 lia-se, em páginas trazidas à vida por Dostoievsky: “‘Que seja claro o teu céu, que seja luminoso e sereno o teu doce sorriso e bendita sejas pelo minuto de felicidade e alegria que deste a outro coração solitário e agradecido’.

Meu Deus! Um minuto inteiro de felicidade! Não será isso o bastante para preencher toda a vida de um homem?”.

Há uns meses, fui levar um gatinho malhado, branco, negro, lindo e meigo à Rafeiros SOS, após trazê-lo da empresa onde trabalhara outrora, já que ali fora abandonado. Mais tarde, foi levado para o maravilhoso Café Aqui Há Gato, onde os livros procuram as pessoas e os felinos buscam amor, companhia e um lar carinhoso e adequado, através de uma família que os visite, se encante com eles e os adopte.

Quando o levei à Rafeiros SOS, as simpáticas e gentis raparigas que dão alma à associação pediram-me um nome para aquele felino doce e sem abrigo. Elas são especialistas em gatos e em amor, e rejeitaram as minhas primeiras sugestões. Aquele ser terno e irresistível haveria de ficar a chamar-se, então, Dostoievsky.

Às vezes ainda penso se Dostoievsky poderia ter-se chamado Tolstoi, tal é o amor e devoção que tenho às palavras que um e outro nos deram, para iluminar os nossos dias…

Fico dividido e com medo de ser injusto. Mas neste momento, em que voltei a ler esta frase de Dostoievsky sobre a felicidade, as dúvidas dissiparam-se no meu ser. Não. Dostoievsky nunca poderia chamar-se Tolstoi.

Declaração de amor

Olhei para ti através da vitrine transparente, que deixava ver perfeitamente a tua beleza, e tudo o que te tornava irresistível. Namorei contigo, à distância, através daquela parede de vidro intransponível, durante três meses.

Todos os dias olhava para ti e pensava. Tentava ganhar coragem. Não sabia se estava a criar expectativas demasiado altas, se irias desiludir-me.

Não sabia se os momentos de prazer e êxtase celestial com que sonhava sempre que passava por ti ao longe iriam alguma vez concretizar-se, ou se serias mais uma das decepções que todos enfrentamos por vezes na vida. Desconhecia se estarias à altura daquilo que estava disposto a sacrificar.

Iria querer comparar-te, saber se eras melhor ou pior do que aquilo que já tinha experimentado antes, se tinhas capacidade para satisfazer os meus desejos mais íntimos e inconfessáveis.

Naquele dia, finalmente, consegui reunir a coragem necessária. Decidi que iria trazer-te comigo. Acerquei-me das tuas profundidades negras e luxuriantes. Dei um passo em frente.

Peguei em ti. Retirei, cuidadosa e carinhosamente, tudo aquilo que te envolvia superfluamente. Dirigi-te os meus lábios com medo e fervor religioso. Entreguei-me e deixei que entrasses em mim com toda a tua intensidade, negrume e doçura. Fechei os olhos. Pensei: “Seja o que Deus quiser”.

Não posso dizer que tenha sido uma experiência do outro Mundo, como intimamente antecipava. Mas mesmo assim, valeu a pena. Tu, mini-bolo de brigadeiro arredondado (e não em fatia ou pequenina bola individual, como seria habitual), não eras exactamente o que esperava.

Não eras uma espécie de brigadeiro aumentado e acrescentado. Tinhas cobertura de massa de brigadeiro por fora (doce, consistente, agradável, capaz de fazer sonhar um bocadinho), e, por dentro, eras um bolo de chocolate, e não um brigadeiro. Um bom bolo de chocolate. Sem chegar a ser enjoativo, fortemente adocicado, húmido, suficientemente sólido para satisfazer.

A nossa história de amor acabou assim, contigo dentro de mim. É um daqueles amores que foi mais expectativa do que concretização, mas, mesmo assim, não me arrependo.

Vivo com quatro gatos

Quando o despertador toca escuto os miados da minha princesa Matilde, que me ama incondicionalmente – e sem medos nem reservas, desde que a operação dela e a minha protecção constante decuplicaram o seu amor.

Oiço no escuro o Chiquinho, o meu reizinho negro, a miar e a esfregar os pêlos no tapete. A Amélinha, aliás, a “Gááta!!”, ronrona suavemente e dispara uns miaus carinhosos e amorosos quando detecta os meus primeiros movimentos.

Sento-me na casa de banho e Jeremias, O Gato Sexual, atira-se para o chão, rebola, solicita que o massaje com o pé descalço e ali fica, a ronronar e a miar.

Rumo à cozinha, o Chiquinho terá que ficar pelo caminho. É o único que não precisa de fazer tratamentos para insuficiência renal, nem comer alimentação húmida para os rins. De qualquer maneira, está demasiado redondinho para fazê-lo!

A Minha Doutora já me disse, repetidamente, que todos, excepto a “Gáta!”, têm obrigatoriamente que perder peso, o que está difícil. Encho os pratinhos de ração de manhã, e depois não há mais nada. Mesmo assim, continuam gordinhos.

O Chiquinho passa parte do tempo a protestar e a ralhar comigo, daquela forma carinhosa, apelativa e amorosa que só ele consegue usar. Vai miar para junto do prato, muito persuasiva e gentilmente. Às vezes, mesmo quando o prato já está cheio. Sente-se indignado com tão pouco alimento. Faz-me lembrar os homens deportados para os campos de trabalho soviéticos da Sibéria.

Se for à rua ou à sala durante cinco minutos, quando regresso, Jeremias, o meu gato-cão, desata a miar para mim, a queixar-se e a exigir atenção. Sempre que passo pela Gáta, ela fica tão feliz que se encaracola toda e solta os seus gritinhos apaixonados, exigindo colo imediatamente, para poder esfregar-se na minha T-Shirt, nos meus sovacos, enrolar-se, desenrolar-se e ronronar de felicidade.

A minha princesa Matilde fica igualmente feliz quando me aproximo. Esfrega-me a cabecinha na barriga, e dá-me a dela, pedindo miminhos. Quando escrevo no computador, na sala, a minha pequena “matilha”, gataria ou ajuntamento de gatos acompanha-me com enorme alegria e felicidade.

A Gáta, a minha “bebé”, fica na cadeira do lado esquerdo, prestando-me assistência, o dia todo. Ou então permanece encostadinha à parte de trás do computador, tranquila, imensamente feliz, calma, serena.

Se eu me mexo um pouco, ou ao computador, ela estica a patinha, preguiçosa, lânguida e voluptuosamente. “Olá, dono. Não sei se sabes, mas gosto MUITO de ti, e estou a precisar desesperadamente de mais festinhas, miminhos, beijinhos e colinho. O que pensas fazer em relação a isso?!”.

Vivo com quatro gatos.

Estou desempregado

Estou desempregado há três meses e seis dias, mas hoje ganhei um pouco mais de consciência desse facto. Às cinco da manhã, os dedos dos pés esticam-se e saem, junto com o resto do corpo, da cama.

Os quatro gatinhos estendem-se também, viram-se para o outro lado ou acompanham-me para a casa de banho. O passo seguinte envolve-os. Têm que ser tratados com Lesperim, Fortekor, Banacep, Rubenal, Cystocure em pó, Specifique Support, Betadine, Cloroexidina e água oxigenada, além de alimentados e hidratados – o que lhes agrada bastante mais!

Sair da cama, fazer isso tudo, tomar o pequeno-almoço e rapar a barba demora cerca de duas horas. Segue-se uma corrida de uma hora e um duche de 30 a 40 minutos.

De manhã, há que fazer e enviar currículos e cartas de apresentação e alimentar as páginas d’O Cronista. Poderá haver também um ou outro dia em que o Cronista se engana no molho das chaves ao ir tomar o café, e fica fechado do lado de fora de casa, sem saber o que fazer…

À hora de almoço, há que destapar um dos deliciosos tupperwares de comida que surgem, em abundância e variedade, de dentro do congelador, descongelá-lo e comê-lo.

Com sorte, não é um dia que envolva passar umas cinco ou seis horas numa fila, para resolver mais alguma burocracia bizarra e misteriosa da Segurança Social, do Instituto do Emprego, da Galp, da EDP…

À tarde, o cafézinho (se possível sem acompanhamento adoçado), e a linha azul do metropolitano, a caminho da associação sem fins lucrativos onde estou até ao fim do dia, a levar para a frente o respectivo departamento de comunicação.

Aí escrevo, para a página do Facebook, as histórias das pessoas carenciadas ou sem abrigo com animais, e das associações de recolha e protecção de animais que a nossa Animalife apoia, lutando assim contra o abandono de animais de estimação.

À noite, uma sopa, a repetição dos tratamentos felinos da manhã, um jornal e ou um livro, (só) um cigarro e cama. Amanhã às cinco há mais, a luta continua e não se detém um minuto. Os poetas, os escritores, os filósofos e os homens da rua sabem que não se pode parar um momento…