Um sorriso, um abraço, uma dança, uma mão no ombro

O senhor Dias é um caçador gentil e implacável e eu não percebo nada do jogo das Damas. Na Festa de Natal da Comunidade Vida e Paz para as Pessoas Sem Abrigo, no Espaço Ser e Estar, este homem com dentes a menos, falas contidas mas humoradas e sotaque africano dá-me uma tareia neste jogo como nunca tinha levado na vida.

 

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(Foto António Santos/ Comunidade Vida e Paz)

 

Vai-me lembrando: “Tem que ter sempre fome!”, a sua maneira de dizer que sou obrigado a comer uma peça… Para ele em seguida me subtrair três num só movimento, fazer dama e ganhar.

Isto acontece sucessivamente, um jogo após outro, até o senhor Dias ter pena de mim e ir dar um giro pela festa. A seguir eu e a minha amiga somos cilindrados alternativamente pelo senhor António, que nos explica como se joga às Damas.

Aprendemos as técnicas básicas de defesa e ataque mas não temos qualquer hipótese: Os mestres são eles, nós somos caloiros imberbes.

 

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(Foto – Lara Raquel Silva)

 

Na Festa de Natal da Comunidade Vida e Paz, as Pessoas Sem Abrigo têm, durante três dias, refeições, roupa, dentista, serviços jurídicos, burocráticos, médicos, segurança social, emissão de cartão do cidadão, barbeiro, duche, missa, espectáculos de dança, música e teatro para eles.

Têm uma celebração de amor e carinho que existe por eles. E têm uma representação extremamente forte do Espaço Aberto ao Diálogo: O serviço da Comunidade Vida e Paz que começa por resolver os problemas do dia-a-dia das Pessoas Sem Abrigo para, depois, as levar ao caminho da reinserção na sociedade, através das Quintas e comunidades de reinserção da Comunidade Vida e Paz.

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Os voluntário estão na festa para pô-la de pé e receber os seus convidados. Animá-los, alegrá-los, brincar, conversar, sorrir, rir e dançar com eles. Atender às suas necessidades mais pequenas ou mais dramáticas.

Depois de estar na conversa e na jogatina com o senhor Dias e o senhor António, as pernas dirigem-se ao recinto principal da festa e procuram pessoas sozinhas, desamparadas, aborrecidas ou desanimadas, para levar-lhes um sorriso, dois dedos de conversa, um abraço, uma mão no ombro.

Há um homem idoso e frágil que quer coçar-se na cintura por baixo das calças e não consegue. Ponho-o de pé, tento ajudá-lo e coçá-lo, sem sucesso. Deixo-o com algumas palavras de simpatia, depois de ele desistir, e digo-lhe que “qualquer coisa, é só chamar-nos”.

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Levo duas horas a voltar a encontrar, no meio da confusão, a mulher que me pediu um copo de água com açúcar. Persisto, mais três voltas às duas salas de jantar e dou com ela.

O melhor está para vir. O turno dos Motivadores acabou, vou juntar-me às tropas da Animação, esse grupo que sorri a toda a gente e a todas as pessoas abraça entre dois desafios para dançar a música que está a tocar na hora, seja qual for.

Homens e mulheres dos 5 aos 70 anos transfiguram-se ao som da banda que toca os êxitos internacionais mais conhecidos. Tornam-se os reis da brilhantina, os ases do rock and roll e as estrelas cintilantes do Kizomba.

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As voluntárias andam também entre os 16 e os 60 e tal anos. São elas os anjos que fazem brilhar os olhos destes rapazes e homens, oferecendo-lhes o verdadeiro baile a que só têm direito aqui.

Homens de 70 anos pedem números de telefone, dançarinos exímios não largam as voluntárias simpáticas e alegres, um rapaz de 20 e tal diz que ainda vai dançar com mais duas delas antes de se ir embora.

É a magia da Festa de Natal da Comunidade Vida e Paz para as Pessoas Sem Abrigo.

Jeremias na brasa?

Há um ano e tal, o meu Jeremias começou a aparecer com o pêlo chamuscado. Cá em casa não há lareiras, fogueiras, barbecues ou brasas e não é hábito haver equipamentos de aquecimento ligados.

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Não se percebia como raio teria o meu pequeno lince, o meu lindo gato-cão, arranjado maneira de queimar o belo casaco que a Natureza lhe deu.

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Comecei a observá-lo. O irmão da Matilde, congénere da Amélinha (aliás, a “Gáata!!”, único nome que reconhece) e do Chiquinho tinha alguns locais de permanência favoritos. Um dos principais: A box da televisão, que adora e onde passa grandes temporadas, quando estou a ler na sala ou a ver séries.

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Como o aparelho aquece, e ainda mais quente fica com ele em cima, concluí que seria essa a causa. A box passou a estar sempre com um pano, ou mesmo dois, por cima.

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Pode não ser muito bom para ela, mas Jeremias, o gato que gosta de se deitar directamente em cima da pele das pessoas, mesmo nas situações mais embaraçosas, fica protegido. Com a box tapada, não me preocupei mais.

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Durante algumas décadas da minha vida, não tomava banho de água quente nunca, apenas porque não. Quando fui casado, readquiri alguns hábitos e confortos da civilização, como esse.

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Este Inverno, depois de me deliciar com mais algumas efusões do precioso líquido escaldante sobre a minha carne, reencontrei um motivo de preocupação. Percebi que o meu pequeno felino doido e atrevido estava outra vez com algumas pontas queimadas.

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Porquê? Como era possível? Voltei a registar e analisar mentalmente os comportamentos dele. Lembrei-me que este menino gosta muito de se encostar à caldeira no Inverno.

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Já tinha verificado a temperatura dela, e não me parecia suficiente para causar tal efeito. Desta vez decidi abrir uma torneira de água quente durante algum tempo, deixá-la assim e ver, nesse momento específico, o grau de aquecimento da caldeira. Queimei a mão e percebi. Afinal era aqui que estava a causa da mudança de visual do Jeri…

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Demasiado aburguesado para voltar a tomar banho de água fria todos os dias do ano, optei pela solução mais prática.

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Agora, na hora do duche, o Jeremias é instado a deixar a cozinha por uns tempos, e só regressa a essa secção dos seus domínios após o dito aparelho ter arrefecido convenientemente.

Adeus, Tozé. Oh captain, my captain

O Tozé ficou a olhar para mim embasbacado. “Você não se trata nada mal!”. A minha mãe tinha-me feito umas sandes nuns pães gigantes, com refeições monumentais dentro, para levar numa visita de estudo a Peniche, onde todos nós comemos que nem abades e bebemos que nem alarves.

O Tozé era o nosso stôr de Filosofia do 12º ano, um dos grandes responsáveis pela minha paixão por esta disciplina, a mãe de todas as ciências, aquela que estuda o saber e questiona a realidade.

Nas aulas do Tozé aprendíamos a Filosofia histórica e formal, a Filosofia espontânea e a Filosofia da vida. O nosso stôr contava-nos as histórias dos sítios difíceis e complicados onde tinha dado aulas, e de como, com a sua descontracção e o seu metro e oitenta e tal, tinha passado incólume por essas experiências de filme. “Os tipos punham as navalhas e o haxixe em cima da carteira, ali à minha frente, só para me provocar”.

Relatava outros episódios a que tinha assistido, de gente que andava à pancada, jorrava sangue por vários sítios e lavava a cara nesse líquido que contém a vida. Pelo meio, ensinava-nos todas as teorias de Hegel, Kant e Kierkegaard.

Mesmo no meu caso, que amava a disciplina e até quis candidatar-me a esse curso, é escusado perguntar qual a parte da aula de que gostava mais…

Um belo dia, já não sei bem porquê, eu e os matulões que me protegiam e a quem eu ajudava nos estudos demos por nós juntos com o Tozé, algures no Barreiro, sem aulas nem obrigações. “Bora beber uma ginginha ao Manel da Galega?”, atira o nosso líder espiritual.

Seguimos o nosso guru, evidentemente. Foi a primeira e mais deliciosa ginginha que saboreei em toda a minha vida.

O companheiro número um de todas as aventuras daquela época saudosa almoçou comigo na semana passada. “Olha, tenho uma notícia triste. O Tozé morreu”.

Naqueles dias mágicos e goriosos, chamávamos ao Tozé “Oh captain, my captain”, porque para nós ele era como o Professor Keating (Robin Williams) do Clube dos Poetas Mortos, realizado em 1989 por Peter Weir. Era a aventura, o sonho, a ousadia e a orientação espiritual. Adeus. Oh Captain my Captain.

Ser vegetariano é fácil

O meu grande amigo e a sua companheira convidaram-me para a inauguração da sua muito recentíssima casa, mas havia uma pequena dificuldade. A minha alimentação passou a ser cem por cento vegan, sem quaisquer produtos de origem animal.

Ainda por cima não cozinho, pelo que me é difícil fazer sugestões de pratos, embora consiga indicar todos os ingredientes e mais algum, o que não ajuda muito. Deram voltas à cabeça (nem me lembrei de sugerir sequer amendoins, passas ou outros frutos secos thumbnail_IMG_20161211_133923para aperitivos, que acabaram por ser, entre várias outras coisas, umas deliciosas azeitonas!) e o resultado foi qualquer coisa do outro mundo.

Nessa noite comi dois pratos enormes de: Arroz de grelo, beringelas com couve roxa e seitan, e lentilhas vermelhas refogadas. Há muito tempo que não experimentava uma refeição tão deliciosa e inspiradora.

O jantar foi temperado com muita boa conversa, e discussões tranquilas e saudáveis com a tia da minha amiga, sobre as vantagens ou desvantagens de não comer produtos de origem animal.

Por exemplo:“A vitamina B12 é muito importante e só existe na carne, afirmou um especialista na televisão”. “Não, isso não é verdade. É um especialista do lobby da carne. A vitamina B12 está presente em pães integrais com multi-cereais, algumas barras energéticas integrais, soja, bebidas de arroz, de amêndoa ou de coco”.

Mas a vitamina B12 é muito, muito difícil de absorverE ovo? Devias comer um ovo por dia!”. “Não, ele não vai comer um ovo. Se ele tem uma alimentação vegan…”.

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Foi o clímax absoluto de várias experiências gastronómicas vegan altamente positivas. Na vietnamita Pho House, no Atrium Saldanha, por 6,95, euros, um menu que inclui bebida e um fantástico preparado de vegetais salteados, cogumelos shitake, tofu e fitas de arroz, suficiente para alimentar bem duas pessoas de bom apetite.

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Ali ao lado, no Vitaminas, por um pouquinho mais (com a bebida incluída), podemos compor a nossa salada com base de alface ou massa normal ou integral, escolhendo apenas ingredientes de origem vegetal, e vinagrete… Todos os outros molhos têm ovos ou leite ou mel.

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Fazer uma alimentação vegan não é difícil, nem caro.

“Obrigado por fazerem isso. Estas pessoas não deviam estar na rua!”

O voluntário mais alegre salta de dentro da carrinha com um cobertor na mão. Dirige-se automaticamente a um homem destapado e deitado num banco de jardim. Coloca, cuidadosa e carinhosamente, a manta sobre o ser humano que ali dorme.

O rosto desperta, os olhos brilham e da boca saem várias palavras claras e bem articuladas. “Obrigado, muito obrigado!”. O gesto deste voluntário repetir-se-á, horas mais tarde, noutro local.

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Será momentos antes de a equipa encontrar, no chão da avenida mais luxuosa do país, um jovem da República Dominicana que fala cinco línguas, esteve no Algarve atrás de um trabalho que afinal não existia, e apenas quer uma oportunidade para ganhar a vida.

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Mas os potenciais empregadores das dezenas de sítios onde vai procurá-la semanalmente exigem-lhe uma morada e um currículo. “Como?”.

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Duas ruas atrás, o electricista que se nutre com sorrisos continua preocupado. Nesta época festiva ninguém gasta dinheiro em arranjos de electrodomésticos, ou nos restantes trabalhos técnicos e manuais que domina.

Nem em Janeiro. No primeiro mês do ano toda a gente está a pagar os saldos dos cartões de crédito que acumulou na época festiva.

Do outro lado da estrada, o homem sem dentes que apenas aceita iogurtes dá as indicações sobre o novo companheiro de calçada. “Está ali ao lado, é novo aqui, ainda não está orientado, não se esqueçam de lhe levar a sandes, o bolo e o iogurte”.

Há três ou quatro voluntários a conversar junto à carrinha, enquanto os outros quatro ou cinco distribuem comida, uma palavra amiga e caminhos para mudar de vida.

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Ouvem, em surdina, uma voz fina. “Obrigado.”. “Hm?”. “Obrigado.”. Dirigem a atenção para baixo. Um menino tímido, doce e emocionado, de óculos de lentes grossas, ar frágil e carinhoso, pronunciara estas palavras e olha para eles.

Os voluntários conversam com a mãe do menino de três ou quatro anos, que explica. Ao seu filho meigo e sensível, faz muita impressão ver estas pessoas a viver na rua.

O pequeno diz que é Natal, e que aquelas pessoas não deviam estar ali, assim ao frio. Foi por isso que agradeceu aos voluntários, por virem ao encontro destas pessoas, para ajudá-las.

A equipa dirige-se para o quadrado de calçada onde um homem vive só, cego e sábio, há anos incontáveis, no mesmo local onde todas as semanas multidões de jovens que seguem as últimas tendências da sociedade vão assistir aos eventos culturais do momento.

O octogenário invisual que nunca está sujo nem cheira mal continua a enriquecer os voluntários com o seu saber enciclopédico de história, geografia, política e religião .

A morte, Deus e o tabaco são três temas presentes no seu espírito esta noite. Por uma razão inexplicável, um voluntário que raramente fuma saíra de casa com um cigarro, depois esquecido no bolso do casaco após  perdida a vontade.

A dada altura, o profeta da rua pergunta se alguém tem um cigarro, que seria o primeiro e único que fumaria nesse dia. Era esse o destino daquele cigarro. Consumi-lo-á com prazer, sozinho, depois de contar à equipa que já escapou 15 vezes à morte, destacando três.

Num eléctrico, num hospital e num escritório, onde esteve sentado em cima de uma bomba. Mas agora está farto de viver, diz que já chega, não é preciso mais.

Critica as tentações que o Diabo apresenta à Humanidade, esclarecendo que atrás do dinheiro chegam o álcool, a droga e a perversão sexual.

É uma noite em que tudo acontece. Há um homem que é encontrado a dormir profundamente num ponto da cidade, coberto por uma manta, encostado a uma mala, calçando ténis cor de laranja e cinzentos… E é visto, uma hora depois, a vários quarteirões de distância, outra vez em sono cerrado, debaixo do mesmo cobertor, junto à sua mala, calçando os sapatos laranja e cinzentos.

“Esses pratos são vegan?” “O que é vegan?!”

À entrada da zona de restauração do Atrium Saldanha, a palavra mágica: “Vietnamita”. “Tem pratos vegetarianos?”. “Sim, temos quatro”.

E esses pratos vegetarianos são vegan?”. “O que é vegan?!”. “Alimentos que não tenham absolutamente nenhuma substância de origem animal. Carne, peixe, leite, queijo, manteiga, iogurte, ovos, mel…”. “Esses quatro pratos não têm”. “Então quero o Pho Chay. Os crepes também são vegetarianos?”. “Sim, mas olhe que não vale a pena! O Chay tem muita comida!”.

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Está bem, então é o menu Pho Chay”. “São 6,95 euros, com bebida”. “OK”. O Pho Chay é um caldo de vegetais com legumes e tofu marinado, cogumelos, brócolos, cenouras, fitas de arroz e rebentos de soja, mas isso é dizer muito pouco sobre a sua qualidade e quantidade.

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Para já, a rapariga, que não era vietnamita nem asiática, mas de ar africano, cultura bem portuguesa e trato gentil, não se enganou nada quando ao facto de ser “MUITO”.

A parte final do cozinhado é ultimada pelo cliente, já sentado numa mesa com ele à frente. Misturam-se os rebentos de soja, a hortelã, o limão e o molho especial no “caldo” (uma espécie de sopa da pedra vegan deliciosa, nutritiva e saudável, com carradas de pedaços grandes, saborosos e substanciais de ingredientes a boiar lá dentro).

Ganho coragem e progressivamente vou colocando na mistura, devagarinho e gradualmente, as três malaguetas desfeitas . Vou saboreando a belíssima refeição e tudo corre bem, quase até ao fim… O poder das malaguetas foi-se acumulando e crescendo em progressão geométrica.

Termino rodeado de papéis, guardanapos e lenços encharcados, a transpirar em bica como numa tarde de praia em meados de Agosto no Algarve… Ou no deserto de Marrocos.

A rapariga aprende depressa e percebeu rapidamente que nenhuma das suas sobremesas é vegan. Acabo por comprar ali perto, por 80 cêntimos, uns cajus com tâmara… E gengibre. Parecia que já estava a ressuscitar depois das malaguetas mas o gengibre dos cajus acabou com o resto. Esta refeição quase me matou. Mas morria feliz.

Ter coração ou não ter

Calças, blusa e casaco escuros. Cabelo grisalho, óculos, figura um pouco pesada e volumosa. Tem um problema de saúde permanente, que a faz deslocar-se, sempre, de muleta.

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Todos os dias a vejo, no mínimo uma vez por dia, a andar para baixo ou para cima, nesta rua que é mais que íngreme, quase uma verdadeira rampa. No chão, preso por uma trela e a acompanhá-la, um cãozito, que parece um brinquedo. Cinzento como o cabelo dela, é de uma daquelas raças pequenas que muitas vezes vemos com senhoras de idade.

Os seus problemas fazem com que se desloque com bastante dificuldade. Pela interacção com o cãozito, que se resume basicamente a fazer com que ela e ele se acompanhem ao mesmo ritmo paciente e vagaroso, não se percebe muito da relação entre mulher e cão.

Mas deduz-se bastante. Para já, que a mulher, mesmo com as dificuldades que tem, nunca nega ao seu amiguito o prazer e a necessidade diária de um passeio na rua, que não se limita a uma volta de cinco ou dez minutos.

Percebe-se também que os seus eventuais familiares, provavelmente, nunca se ofereceram para substituí-la, ao menos de vez em quando, nesta tarefa que se nota ser-lhe dolorosa.

E quando vejo a senhora diariamente, a andar devagarinho e dificilmente com o seu companheiro, recordo-me de quem faz exactamente o contrário. Vêm-me à memória as alimárias do prédio do lado.

Depois de terem preso no terraço durante toda a vida, à chuva e ao frio, um lindo e enorme cão, que acabou por morrer doente e negligenciado, decidiram repetir.

Têm agora um cachorrinho doce, meigo, carinhoso e carente, que, como o antecessor, também passa o tempo sozinho no terraço, dia e noite, sete dias por semana. Neste momento, em pleno Inverno. Sem uma palavra de amor, um gesto de carinho, uma festinha no pêlo.

Já ali está há meses, e, ao longo desse período, não sei quantas vezes foi à rua. O que é certo é que, durante as muitas horas que passo actualmente em casa, se encontra sempre lá.

Naquela casa vejo regularmente pelo menos três pessoas adultas, saudáveis e cheias de vigor, com boas pernas que podem usar para ir à rua passear, e levar o pequenote. Mas sem uma ponta de sentimento ou consciência, já que nunca os vejo ocuparem-se do forçadamente solitário e triste animal.

Só se lembram dele para lhe ralharem, porque “ladra”. Pois não há-de ladrar, ganir, uivar e lamentar-se inconsolavelmente toda a noite, se o que ele quer é amor, carinho e atenção e tudo isso lhe é estritamente negado… A tal senhora devia lá ir explicar-lhes o que é o compromisso emocional e consciente de ter um animal.

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O Manel não tem máquina de lavar

O Manel não concebe a ideia de fazer chegar ao quinto andar do seu prédio antigo e sem elevador uma máquina de lavar. Até porque já decidiu (há cinco anos) que ia mudar de casa. Portanto, enquanto tal não acontece, não faz sentido resolver esse problema.

Por isso, não tem máquina de lavar. Claro que tal coloca a questão de como lavar a roupa semanal de um casal. Com intervalos de uma ou mais semanas, o Manel desloca-se a uma lavandaria. Quando começa a chegar à conclusão que já não tem roupa para vestir, lá vai ele tratar do assunto.

É, assim sendo, há vários anos um especialista no fascinante universo das lavandarias da cidade. Mas há uns tempos, teve que mudar: O detergente usado naquela a que recorria habitualmente estava a causar-lhe alergia. Estava na altura de procurar outra, e assim fez.

Quando o Manel entra num destes curiosos estabelecimentos, carregado com dois sacos enormes a abarrotar de camisolas, calças, casacos, roupa interior e lençóis, encontra à sua disposição diversas máquinas automáticas. Às vezes há uma ou outra que está avariada… Escolhe uma que funcione e depois tem que seleccionar o programa, introduzir as várias moedas solicitadas e esperar.

Há pequenos letreiros que explicam quanto custa cada programa, quais as moedas que podem usar-se, e… Existe também um aviso. Para não meter simultaneamente várias moedas, juntas e sobrepostas ao mesmo tempo na ranhura. Tudo porque alguém não percebeu o conceito e fez isso mesmo.

Há também cestos, usados para organizar a roupa e levá-la de um lado para outro. Além da tal tentativa de colocar várias moedas ao mesmo tempo, também já houve quem levasse os cestos para casa, junto com a roupa, e ficasse com eles.

Além das máquinas de lavar, há também as de secar. Por alguns punhados de moedas de um euro, as duas fazem o serviço completo. E a questão fica resolvida ao fim de pouco mais de uma hora. É o admirável mundo das roupas lavadas (e bem sequinhas) de quem não usa máquina de lavar doméstica.

Entrevista de Emprego

Boa tarde, Vasco Ventura. O seu currículo fez com que ficássemos com vontade de o conhecer. O que temos para si é isto e isto. Se continuar interessado, apareça no dia tal entre as horas tantas e as tantas”.

No dia tal às horas tantas (um bom bocado antes, para fazer o reconhecimento do terreno), lá estou à porta. Acabo por ir para o café fazer tempo, ainda falta bastante. Peço um chá preto, que se derrama involuntariamente nas calças de tecido escuro, mas não na camisa azul, no blusão de Inverno ou nos sapatos pretos. Limpo com uns trinta guardanapos de papel e espero que seque.

Na televisão sem som passa uma noticia absurda, mas verdadeira, que me desperta algum interesse. Bebo o que resta do chá e aguardo.

Ainda chego um bom bocado antes da hora, mas não sou o único. O processo de recrutamento acaba por começar, também ele, bem antes do tempo. Entro numa sala com 20 e tal candidatos, todos jovens. Um homem simpático, discreto, de aparência ligeiramente tímida, distribui formulários e indica o que está escrito a marcador verde num quadro branco, bem ao fundo da sala.

Há que preencher o formulário-currículo e escrever uma notícia em português e inglês, em 50 palavras, sem necessidade de título. Faço o título na mesma. Não existem notícias sem título. Estico-me um pouco e acabo por riscar algumas frases para não exceder muito o limite. A versão em inglês fica mais curta. Escolho a notícia absurda mas verdadeira que tinha visto na televisão sem som uma hora antes.

Segue-se a conversa-entrevista de emprego. Porque estou aqui, o que espero encontrar, o que tenho para oferecer. O interlocutor é amável, assertivo, respeitoso. Na primeira fase eram 200 candidatos, nesta segunda são cem para cinco vagas. “Tem disponibilidade imediata? Até à data tal já lhe devo dizer alguma coisa. Todas as pessoas têm direito a obter uma resposta”.

A consistência do cocó

Ouça lá, mas eu tenho que falar com alguém. Estou a perder tempo, a faltar ao trabalho, a perder dinheiro e a pagar o estacionamento aqui no centro de Lisboa. Já vim cá não sei quantas vezes e o problema mantém-se. Vocês cortaram-me o subsídio de desemprego, que estou a acumular, legalmente, com trabalho em tempo parcial, porque confundiram trabalho independente com trabalho por conta de outrem!

Eu tenho que falar com alguém! Se não me deixarem falar com alguém volto amanhã, mas amanhã venho para pedir o livro de reclamações! Estão a tirar-me o dinheiro para alimentar as minhas filhas!”.

Enquanto esta situação dramática se desenrola, há outra que decorre em pano de fundo. A senhora da limpeza, enojada e irritada, pede ao segurança, pouco convencido, que vá ver a casa de banho e o estado repugnante em que alguém a deixou.

Ouça, minha senhora, porque é que eu tenho que ir ver a casa de banho? Eu já a informei, é esse o meu trabalho. O meu trabalho é transmitir a informação, não ir ver como está a casa de banho”.

A senhora diz que ganha três euros à hora e tem que lidar com isto, e que já passou do turno dela. Dois homens, provavelmente desempregados, acabam por dar também a sua opinião.

Sabe o que é? Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”, diz o jovem mulato de barba e boné que espera para ser atendido. Mas o homem branco, meio barrigudo, de cabelo escuro e rosto avermelhado que o ouve dizer aquilo tem um parecer muito diferente.

Olhe, sabe o que é que eu lhe digo? Era pegar em quem fez aquilo, levá-lo lá dentro e espetar com a cabeça dele dentro da sanita, com força. E dizer-lhe: ‘Olha, estás a ver como é?! Estás a ver como é?!’ Não, isto já não vai lá com avisos nem pedidos. Isso é a democracia do cocó. As pessoas agora já só percebem de duas maneiras. Ou com porrada ou quando lhes vão ao bolso. Não há outra maneira”.

O jovem a quem ele respondeu, e algumas das outras pessoas ali presentes, riem-se entredentes com a radicalidade da proposta. São os tempos que correm…