Em quem votaria Justina?

A velhinha frágil e indefesa, carregando consigo um saco com algum peso, inclina-se e cambaleia para tentar sair da carruagem do metro, e instintivamente todos se viram na sua direcção para ajudá-la. O homem africano do banco da frente, a mulher ucraniana que está ao lado, Justina.

Surgem alguns comentários de circunstância. “Ela nem devia ter que estar a fazer aquilo”.

Pois, mas sabe, estas pessoas idosas estão muito sozinhas e isoladas. Em muitos casos ninguém quer saber delas”.

Na Ucrânia, nós nem sequer temos lares de terceira idade”.

Aqui temos, mas estão quase sempre sobrelotados e muitas vezes não tratam, ou não conseguem tratar as pessoas como deve ser”.

Na Ucrânia, a minha avó e o meu avô ficaram a viver connosco, em casa, até ao fim. Eu agora estou a trabalhar aqui em Portugal, mas tenho que ajudar o meu filho. Ele fez o curso de bioquímico, mas ainda não conseguiu trabalho. Eu, felizmente, estou a trabalhar numa casa muito boa, é como se fizesse parte da família e vivesse lá”.

Eu sei como isso é. Conheci uma senhora, da Europa de Leste, que vivia cá. Trabalhava muito, ajudava a família, e tinha que apoiar o filho, que fez um curso superior e não conseguia encontrar trabalho. Ela acabou por ir para Inglaterra, com mais de 40 anos, com o marido e o filho, para melhorar a vida”.

Pois. Eu não vou sair daqui. Tenho trabalho, sou bem tratada, não tenho razão nenhuma para me ir embora”.

É por vezes idealista e utópico, mas a verdade é que penso sempre que uma mulher como a Justina, se tivesse que optar entre Le Pen e Emmanuel Macron, entre Trump e Clinton, ou entre votar a favor da esperança numa Europa melhorada, social, justa e igualitária ou, em alternativa, um partido fascista, racista, xenófobo, inimigo da Liberdade, da Democracia, da tolerância, da igualdade e dos direitos humanos, não teria dúvidas nenhumas em relação à sua escolha.

Mas depois às vezes surpreendo-me…

Fez com que ele partisse mais depressa

Ia a passar na rua e viu um gatinho envenenado. Estava morto, praticamente, mas ainda resistia e respirava. Nada havia já a fazer.

U. sabia que ele ia morrer, mas ainda ia demorar longos minutos a sofrer até sucumbir. Trabalhara na indústria da saúde, tinha experiência com animais, sabia que não havia qualquer esperança.

Eutanasiou-o da forma menos violenta, para que partisse depressa e não agonizasse mais. Esperou pelo seu fim e foi-se embora. Não foi o primeiro gato ou cão que passou pela sua vida.

Teve alguns e salvou outros. Há 66 anos, tinha ele 18, trabalhava perto de um porto onde havia um ancoradouro de barcaças enquadrado por uma parede intransponível.

Ia para a reunião encomendada pela seguradora onde estava empregado, quando viu uma grande multidão que se demorava, imóvel e expectante, a observar algo lá embaixo. Um cão tentava sair do ancoradouro, sem qualquer hipótese de se salvar sozinho.

Ninguém fazia nada. Observavam enquanto se afogava. Quando o bicho se afundou, U. percebeu que tinha que se mexer.

Engendrou um plano para descer por uma corda, pegar no cachorro ao colo e depois exigir que a multidão o auxiliasse, poupando assim a vida do animal.

A sua iniciativa acordou outro moço jovem e mais forte, que, quando o viu a descer e a molhar-se, decidiu aderir ao projecto. Graças a U., toda a multidão despertou do seu torpor e salvou o pequeno de quatro patas.

A meio destas duas histórias, vivia U. no Brasil, onde alimentava dezenas de felinos com a ajuda de uma vizinha que se ofereceu para ajudá-lo nessa tarefa, por saber que tinha muito mais dinheiro que ele…

A gata de U. era tricolor e chamava-se Malvina, por causa da guerra das Malvinas, ou Maldivas, nos anos 1980. Venerava-o e ele adorava-a.

Havia um vizinho que tinha um cão de caça inteligente, atlético e infalível, especializado em eliminar coelhos.

Os outros cães, a Malvina atacava-os; deste, como também ela era profundamente inteligente, fugia como uma bala. Não teria hipóteses contra um especialista em matar coelhos.

O caçador de quatro patas encurralou a Malvina em cima de uma árvore e U. foi falar com o vizinho, com a sua tranquilidade e sensatez proverbial. Que disse ele?

Sabe, se o seu cão encontrar a minha gata na rua e a matar, eu não posso dizer nem fazer nada em relação a isso.

Mas se ele entrar no meu jardim privado, como acaba de fazer, e matar a minha gata, aí temos um problema, entre mim e o senhor, já que está a entrar em propriedade privada, e o senhor é responsável por aquilo que acontecer.

Disse isto com toda a calma e frieza do mundo, de forma a que não houvesse a mínima dúvida possível. O caçador e o seu dono foram-se embora. E não voltaram.

A gata que se deixa hipnotizar

Agora também pratica a habilidade de abrir armários.

A Amélinha, aliás, a “Gááta!!” tem impressa nos seus genes a obsessão profunda por plásticos.

Muitas vezes, quando estou a arrumar as compras, tenho que me fechar na cozinha, sem ela, para que não roa, morda, destrua e engula todos os plásticos que esta periódica actividade envolve.

Acontece-me acordar a meio da noite, com um barulho meio “Psycho” e ao qual é impossível ficar indiferente. Scratch, scratch, scritch, scritch.

É o som de plásticos a serem destruídos. Mas quais plásticos?! Os que estão dentro do armário, e que ela libertou da sua inglória prisão, abrindo-o durante a noite.

Sempre achei que a minha “Gááta!!” era um ser extremamente obsessivo, determinado e capaz de estabelecer objectivos absolutamente claros, não hesitando diante de nada para os concretizar. E tenho provas disso a todos os dias e todas as horas.

Quando vou à rua ou chego a casa, este ser doce, meigo e negro voa para o exterior da porta do apartamento. Mia, dá gritinhos e protesta porque sabe que, nos momentos seguintes, vou tentar voltar a pô-la em casa. O que não é fácil.

Rebola-se e estica-se no chão, além de fugir de mim velozmente em círculos, para que não consiga apanhá-la, pegar-lhe e reconduzi-la.

Esta bebé de quatro anos e nove meses é plena de originalidades bizarras e enternecedoras. Todos os dias, dou-lhe um pedacinho de comida húmida renal, e outro ao Jeremias, o meu lindo tigre-gato-cão, para que fiquem bem hidratados e os seus rins funcionem melhor.

Às vezes, o Jeremias não quer este petisco. O pratinho fica ao lado dele, ele cheira-o e não lhe pega.

A “Gááta!!”, com a naturalidade mais desconcertante do mundo, termina o prato dela e a seguir limpa o do Jeremias, que está ali perto. “Se isto está aqui, é porque é para mim!”.

Enquanto preparo, duas vezes por dia, os tratamentos da “Gááta!!”, do Jeremias, da Matilde e do Chiquinho, esta pequena pantera doidinha fica ao meu lado. A um milímetro de mim. Praticamente em cima dos pratos com a medicação que estou a preparar. Estática como uma esfinge, ronronando sem fim, feliz e satisfeita com a perspectiva da comida húmida que vai engolir avidamente a seguir.

Se está enroscada nos meus pés, no sofá, pomo-nos a piscar devagarinho os dois olhos ao mesmo tempo um para o outro, o que faz com que ela adormeça. Uma espécie de hipnotismo felino.

Às vezes, isso tem o efeito contrário. Mia, dá um dos seus gritinhos ternos e amorosos e vem para o meu peito, para ficar mesmo bem coladinha a mim, enquanto a abraço, a acaricio e lhe dou beijinhos infinitos. A “Gááta!!” é assim!

Uma reportagem fatal

Ganhei uma montada estranha, para quem só estava habituado a conduzir pequenos automóveis utilitários…

Trabalhava, na altura, numa empresa de telecomunicações. Nesse tempo, já se faziam reportagens em vídeo para alguns sites informativos, e foi isso mesmo que fui fazer.

O tema era um espectáculo de ópera, e as sessões eram em Aveiro. A forma mais eficaz que a empresa encontrou para me colocar lá foi deixar-me usar um carro da companhia, que, por acaso, era um enorme e clássico Saab.

As dificuldades começaram logo à saída.

Era preciso utilizar um apertado e nada prático elevador de garagem, para retirá-lo do lugar onde se encontrava estacionado.

Ao contrário de todas as outras tarefas que a reportagem envolvia, esta revelou-se demasiado difícil. O prestigiado bólide ganhou um risco bem longo e visível na pintura, ainda antes de sair de Lisboa.

À excepção desse detalhe, o trabalho correu bem.

O incidente logístico foi prontamente comunicado aos superiores.

Após o regresso, cruzei-me com o director mais destacado, já devidamente informado. Não fez nenhum comentário, mas se a sua cara e os seus olhos matassem, nunca chegaria a poder escrever estas linhas.

Não houve qualquer consequência disciplinar, o que já não foi mau. Mas aquela organização nunca mais foi a mesma.

Graças a mim, foi criada uma nova norma interna. Os jornalistas daquele departamento que ainda estivessem a contrato, como era o caso, deixavam de poder usar carros da empresa para os seus serviços exteriores.

Para mim, ficou a experiência diferente e surpreendente de conduzir um exemplar dessa marca, de que sempre tinha ouvido falar mas que nunca tinha visto materializar-se precisamente à minha frente.

O diagnóstico certo e o tratamento errado

Como acontecia às vezes quando vivia na rua, hoje não se mostra muito receptivo à conversa, nos primeiros momentos.

Ignoro a sua disposição menos dialogante.

U. diz-me para ser eu a falar e conto-lhe tudo o que fiz na última semana. Os encontros com amigos, os livros, os filmes.

Acabo por referir o recém-estreado O Jovem Karl Marx, algo que lhe aviva visivelmente o interesse.

Pergunta-me qual a minha opinião acerca de Marx. Enrolo-me e tento explicar que, depois do filme, fiquei com um conhecimento bastante diferente e mais alargado acerca do autor d’ O Capital.

Por esta altura, já conquistei claramente o seu interesse em conversar comigo durante mais de uma hora. Este sábio octogenário cego e filosófico, agora internado involuntariamente numa instituição de saúde, acaba por interromper-me.

Percebe que a minha opinião sobre este assunto é superficial, e avança, entusiástica e convictamente, com a sua… Ouçamo-lo:

Marx, na verdade, não era bem um economista, um pensador ou um intelectual. De facto, era mais ou menos uma espécie de médico.

Um clínico que teria sido enviado para um país remoto e distante, com o objectivo de estudar a doença que mais afligia os médicos na época.

Ninguém conseguia perceber e estudar correctamente essa grave patologia. Ao contrário dele.

Identificou, aprofundou e entendeu claramente, como nenhum outro ser humano, essa terrível doença que a todos afligia.

Estudou-a, dissecou-a, compreendeu-a como nunca se tinha feito. Era o médico mais competente, inspirado e inteligente do seu tempo.

Apurou a patologia, os sintomas, as causas, a forma como se manifestava… Aí, acertou completamente, e foi o único.

Prescreveu um tratamento para esse terrível mal, que detalhou nos seus livros e nos seus textos. O problema é que, se o diagnóstico não podia estar mais correcto, também o remédio não conseguiria ser mais errado, afirma U.

A análise médica acertou na mouche, mas a forma de debelar a doença errou em toda a linha. Como a Humanidade provou nos anos seguintes, e até hoje.

Nunca se conseguiu fazer com que o tratamento resultasse, o que prova que estava errado.

Continuamos a dialogar sobre os livros e os filmes que suscitam o nosso interesse. E sobre Cervantes, Dostoiévsky, Tolstoi.

Refere um livro que analisa a morte dos intelectuais. Segundo diz, os intelectuais estão a desaparecer e já quase não existem nenhuns. Pergunta-me porquê.

Respondo que é uma tendência social. “Não, não é uma tendência social. É uma iniciativa política, uma vontade dos políticos. É uma coisa que interessa ao poder político”.

Um sorriso que ilumina a noite

Tem um caixote “de luxo” por detrás de um instituto, e nesse metro quadrado de espaço concentrou algumas das funções básicas de uma casa, com uma medida abundante de brio e dignidade.

Olhamos para ele, e é mais uma daquelas pessoas que vivem na rua mas se apresentam tão limpas e bem vestidas como se estivessem connosco a assistir a uma sessão de cinema.

D. decidiu viver no chão da calçada porque tem uma reforma de 300 euros: Entre pagar um quarto, comer ou comprar os medicamentos para as doenças de que sofre, tinha que fazer escolhas.

Ironiza com as pessoas que acham que esses 300 euros, pelos quais trabalhou a vida inteira, são um valor fantástico. Afirma que os políticos se lembram sempre dos que nada têm, porque, quando o fazem, conseguem mais votos.

Descreve alguns pontos da cidade onde, à noite, cinco ou seis instituições de solidariedade se amontoam para apoiar as pessoas carenciadas. Alguém de fora chega e diz que este é um país muito miserável.

Para ele, aquela não é a verdadeira miséria, porque “a verdadeira miséria está escondida”, longe dos holofotes das câmaras televisivas e das campanhas eleitorais.

Uma parte dessa carência e pobreza é visível aos olhos das instituições que percorrem a noite e a metrópole, em busca dos que precisam de um pedaço de pão ou dois dedos de conversa.

J. está triste e revoltado e conta-nos parcialmente a sua história, de rosto vermelho e banhado em lágrimas. Saiu de casa e a sua mãe mudou de morada por causa dele, dizendo-lhe que ele já não era seu filho.

O homem deixou o lar e a mãe porque esta estava com problemas graves de saúde e “passou-se” com ele. Para não lhe responder e não entrar em conflito, virou-lhe costas e saiu. Até hoje.

Foi só isso? Não, não foi bem só isso. A mãe não gostava que ele bebesse, já estava farta. É óbvio o desejo de saber se não há reconciliação possível. Garante que não.

G. vive noutro quadrado de cartão, a poucas centenas de metros. A equipa acompanha-o há muitos meses, e há bastante tempo que o rapaz não sorri.

Um elemento novo deste grupo garante que o jovem tem um cão. Toda a gente abana a cabeça de incredulidade… Os voluntários aproximam-se e reparam nuns acessórios que os deixam desconfiados.

Metem conversa mais uma vez. Surge, meio escondida por um cobertor, caladinha, terna e carinhosa como um gato, uma pequena cadela, linda, meiga e doce.

Começamos a conversar com ela e com o dono. Pela primeira vez em meses, abre-se um largo e luminoso sorriso no rosto deste homem sem abrigo.

Agora já sabemos que o simpático animal existe. Na próxima visita, a Comunidade Vida e Paz, que, em conjunto com a associação Animalife, apoia as pessoas sem abrigo de Lisboa e os seus animais de estimação, já irá trazer-lhe ração e tentar fornecer-lhe outros bens e cuidados de que o animal e o dono precisem.

A meio da noite, ouve-se uma voz que se projecta em direcção à carrinha. “Olhem, eu também vos posso ajudar?”. É um homem de camisa branca e calças claras, meia idade, cabelo escuro e curto, que quer fazer alguma coisa pelos outros.

Em cinco minutos fica a saber como é feito o trabalho de reinserção social e mudança de vida levado a cabo pela Comunidade Vida e Paz, através das suas equipas de rua, dos seus técnicos e das suas comunidades de reinserção.

Fica com o nome e os contactos da instituição, para que possa juntar-se a nós e pôr a sua boa vontade ao serviço de quem dela precisa.

A noite passa num instante e mostra-nos as muitas facetas da vida e da rua.

Os que estão revoltados e angustiados por viverem à margem da sociedade e encontram nos voluntários alguém em quem aliviar os seus sentimentos de frustração e abandono.

Os que nos dão lições de vida e dignidade. Os que vêem as equipas a tentar dar um contributo para mudar a existência dos outros e querem juntar-se.

A intensidade e a variedade do mundo e da existência concentram-se no curto espaço de cinco horas que voam.

Tenho uma gata que obedece a gestos

É um ser extremamente doce, meigo, carinhoso e assustadiço.

A vida da minha linda e afectuosa Matilde consiste em saltar para o meu colo em fuga do seu eterno rival, o Chiquinho, do irmão que também aprendeu a persegui-la, o Jeremias, e até da minha Amélinha (aliás, a “Gáata!!, o nome que ela escolheu para si), essa pirralha esguia e negra que me venera, e, claro, também a inferniza desde bem pequenina.

É uma existência difícil, a de Matilde.

Esta princesa cinzenta, sempre que está comigo sem vislumbrar por perto o meu reizinho Chiquinho, presta os seus agradecimentos e homenagens.

Com a passagem do tempo comigo, com a sucessão das duas operações e com a minha insistência em afastar dela os outros três felinos – fofos mas terrivelmente inquietos – sempre que a atormentam, entregou-se-me e passou a olhar-me de uma forma diferente.

Sente-se protegida, defendida e confia absolutamente em mim. Em reconhecimento dessa protecção, esfrega-se em mim, mia-me pedindo atenção e miminhos, deita-se, estende-se e dá-me a barriguinha e o peito para eu acariciar.

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Além de lidar com os ciúmes do meu Chiquinho, as loucuras periódicas do Jeremias e da “Gááta!!” e as constantes exigências de festinhas por parte dos quatro, para a Matilde reservo esta atenção específica: Evitar ao máximo que a perturbem.

Na sala, existem uns magníficos sofás que por cá foram ficando, por simpatia da minha ex-mulher, depois do divórcio. Essa divisão é o lugar onde estão instalados o computador e o “escritório”, pelo que se trata de um local de grande ocupação humana, e, claro, felina.

O Jeremias e a “Gááta!!” adoram afiar as unhas no sofá. Chamo-lhes à atenção, ralho com eles e afasto-os destas confortáveis e preciosas peças de mobiliário.

Também a Matildinha tem o mesmo hábito. Mas se a admoestar de forma audível, a pequenina foge da sala e só volta a vir fazer-me companhia horas depois.

Desenvolveu-se, então, nova metodologia. Estalo os dedos uma ou duas vezes, ela ouve-me e olha para mim. Depois basta abanar visivelmente o meu indicador direito para os dois lados, como um pêndulo. Ela percebe e deixa o sofá em paz.

Para mim não é surpresa, para muitos será de certeza. Venham os leigos dizer-me que estes seres carinhosos e doces não são profundamente inteligentes, sensíveis e sábios… Pois claro que são.

Um homem com uma arma na minha cara

Era uma grande personagem. O Pratas foi talvez o primeiro alcoólico que eu conheci.

Era meu amigo, gostava de mim, preocupava-se comigo e adorava beber imperiais comigo, que, na altura, andava perto dos 16 anos e nem tinha bem a noção do que era um alcoólico.

Conhecemo-nos na Voz do Barreiro, onde ele era colaborador desportivo. Foi o primeiro jornal onde trabalhei, e era coordenado pelo Dr. Baião, “licenciado em ciências sociais”.

Não me lembro de ter queixas pessoais do Dr. Baião, mas uma parte dos seus subordinados não podiam vê-lo à frente. Alguns tinham motivos bem concretos para isso.

Não sei se era ou não o caso do Pratas, mas o que é facto é que não tinha qualquer apreço pelo chão que o chefe pisava. Incompatibilizaram-se, o Pratas foi-se embora e passou a odiá-lo.

Encontrávamo-nos com frequência para beber um copo, e o assunto de conversa dele era sempre aquele.

O Pratas era um tipo muito simpático e afectuoso, baixinho, magro, frágil. Bastante afectado pelos vapores de Baco, mas um bom coração. Havia sempre lugar para mais uma bebida.

Tinha uma voz e pronúncia muito próprias, com um toque meio alentejano.

Quando falava do Dr. Baião, a sua Nemésis, o seu rosto afável e a sua expressão típica contraíam-se todos, junto com os olhos, a ficar pequeninos com a cerveja, e já não largava o tema.

Quando saí da Voz do Barreiro, o Pratas, que achava que eu era um futuro grande jornalista, levou-me logo para o Jornal do Barreiro, já que não admitia que se desperdiçasse o meu alegado talento.

Uma dessas noites foi encontrar-nos n’O Farol, que servia permanentemente imperiais brancas, pretas e mistas, coisa algo inovadora naquela idade.

As horas seguintes acompanharam-nos noutros cafés, com outras bebidas à frente.

Acabámos por ir parar, eu, ele, outra personagem aparentemente mais duvidosa e um quarto homem, que parecia mais atinado, a casa deste último. No famigerado e perigoso Bairro das Palmeiras, onde quem gostava de estar inteiro e não apreciava a comida do hospital era aconselhado a nunca entrar. Também neste caso, nunca tive grandes provas de que o proveito correspondesse à fama.

Na casa do tal homem, ainda havia mais bebida, daquela que facilmente podia servir como desinfectante de sanitas e ele nos ofereceu em canecas, das grandes, em vez de copos pequeninos.

Por essa altura, a madrugada já ia alta e não faltava muito para que o sol nascesse. Às tantas, o homem arrependeu-se do convite, depois de começarem, ele e o outro que parecia ter aspecto menos fiável, a trocar ideias animadamente, sem que chegassem bem a discutir.

O anfitrião considerou necessário dizer que era polícia, talvez para melhor dominar a situação. A seguir, achou que era apropriado ir buscar a arma, um revólver, e exibi-lo na nossa cara.

Não era grande e talvez nem estivesse carregado, e o diálogo continuou em tom suficientemente pacífico até nos irmos embora, já de manhã.

O rapaz a quem a apresentação do objecto se destinava ficou todo ofendido com tal atitude e não se cansou de repeti-lo, antes e depois de sairmos. Mas tudo acabou na paz do senhor.

São do mesmo tamanho mas cabem uns dentro dos outros

Enquanto passa a música mais chungosa dos anos 1980, chegam os tipos mais chunga dos anos 1980.

Duas loiras, uma gorda, outra magra, um moço de pólo clarinho, calças escuras e cabelo bem curto.

Ocupam todo o espaço disponível e anexam para eles a mesa que estava a ser usada por outros, deixando fundadas dúvidas sobre a segurança dos casacos e das malas lá depositados.

Ele abre os braços e as mãozinhas para mostrar que aquele metro quadrado à sua volta, afinal, agora é só dele.

No grupo que foi invadido há uma rapariga para quem todos os dançarinos olham; com ela, uma amiga simpática e outra engraçada, mas claramente ofuscada por aquela que todos fixam.

Os três ou quatro que ali já estavam instalados acendem vários olhares de incómodo e enjoo perante os invasores, alternando faíscas entre estes, os casacos e as malas, agora tidos como inseguros, e não fazem por disfarçar o enfado e a preocupação.

Finalmente, o trio nada bem vindo acaba por perceber o que era impossível não ver e retira-se.

Os momentos seguintes são passados a verificar malas, carteiras e casacos, assegurando que tudo está no lugar. Dinheiro, cartões, chaves, telemóveis e por aí fora.

A discoteca, numa zona central da cidade, fica nos escombros das catacumbas do que em tempos foi um centro comercial prestigiado, ao lado de um hotel ainda mais requintado.

Tem fantásticas noites de temática musical muito específica, e esta não é uma delas.

Salvam-se os temas de David Bowie, Prince e Depeche Mode, que prometiam muito para as horas seguintes. O resto das músicas e artistas são tão maus que nem conseguem pronunciar-se.

Algumas imperiais depois, ficam no ar interrogações próprias do momento e do contexto. Houve alguém que alcançou uma invenção genial.

As dezenas de copos que, nas horas anteriores, contiveram vodka ou cerveja, têm, na aparência, exactamente o mesmo tamanho. Mas mesmo tendo todos exactamente o mesmo tamanho, encaixam-se na mais harmoniosa perfeição uns nos outros, em torres infindáveis.

Um dia mágico antes de uma tarde mística

A caminho da instituição de saúde onde vou visitar o meu ancião e sábio amigo, à saída dos transportes, encontro uma cara conhecida, um protagonista de um momento insólito.

Está com o cabelo muito mais curto e com uma roupa diferente, mas não há dúvidas de que é o mesmo rapazinho que, há uns meses, me visitou, para me propor uns descontos nas contas mensais, e na altura ficou surpreendido por ver tantos gatos cá em casa.

Insisto e esclareço que não, que não vou contribuir para mais uma associação, mas agradeço e elogio o trabalho dele.

Pergunto-lhe se antes não estava numa empresa de telecomunicações. Diz que não. Não fico convencido mas vou à minha vida.

Ao regresso, duas horas depois, corrijo a pergunta: “EDP!!”. “Ah, sim, trabalhei na EDP.”. “Então, você foi à minha casa, viu os meus gatos, a Matilde estava com uma camisola cor-de-rosa, a recuperar da operação”.

Ah, pois, já me lembro!!”. Pois, eu sabia. Mas as surpresas ainda não terminaram.

Um metro à frente, encontro uma loja indiana. Onde trabalha… O homem que costumava estar, até há uns meses, num estabelecimento igual em frente à minha casa. Vou falar com ele.

Conversamos uns minutos. É dono desta e de outras duas lojas, e também de um tuk-tuk.

Pergunta-me se quero levar alguma coisa. Digo que não, não preciso de nada.

Insiste. Só depois a minha barriga, em vácuo desde o almoço há mais de quatro horas, percebe.

O homem encarou a minha entrada  na loja como se fosse uma visita a sua casa. Oferece-me amável e afavelmente uma banana, que o meu estômago vazio colado às costas muito agradece.

É um acto de hospitalidade, a retribuição pela visita.

O diálogo com o meu amigo internado já tinha sido bastante enriquecedor e interessante. Os bastidores dessa mesma visita não foram menos surpreendentes.