De volta à rua

– Faz hoje exactamente um ano saí da rua, depois de terem pegado fogo ao sítio onde dormia. E hoje estou de volta à rua.

– Então, o que aconteceu?

– Estávamos em casa de uma senhora de idade, nos arredores de Lisboa. Ela recebia apoio domiciliário de uma associação. A técnica da associação perguntou quem é que estava naquele quarto, enquanto eu e a minha mulher dormíamos. A senhora disse que não estava lá ninguém. Mas depois a funcionária descobriu. Disse que a moradora da casa, por ter ocultado essa informação, ia ficar sem o apoio domiciliário. E nós, perante isto, viemos embora. Ainda não conseguimos arranjar um sítio onde ficar, que nós possamos pagar. Estamos a tentar que a Segurança Social nos dê um apoio suficiente para nós conseguirmos pôr o resto, mas não está fácil. Está tudo cheio, e é tudo caro.

– As coisas hão-de resolver-se. Força e coragem.

A algumas centenas de metros, a equipa da Comunidade Vida e Paz não consegue encontrar o homem que dormia à porta de um velho e desactualizado centro comercial e oferecia explicações sobre tudo o que tivesse a ver com flippers ou a vida militar, ainda que de uma forma um pouco confusa.

– Pois, já não está aqui. Foi colocado numa instituição de saúde… Passava aqui uma mulher diariamente, e ele pedia-lhe sempre um cigarro. Ela dizia que não e ele chamava-lhe tudo e mais alguma coisa, do mais indecente que possa imaginar. Um dia ela disse-lhe que era da policia, chegou aqui com os colegas, levaram-no e foi internado. E lá ficou.

– Uma atitude prepotente…

– Mas ele devia saber que não podia falar daquela maneira às pessoas.

– Bem, talvez. Mas é uma reacção bastante drástica, embora ele devesse ter mais cuidado com o que dizia.

– O problema é que a cabeça dele não funciona como a das outras pessoas. E o resultado foi este.

A nota positiva da noite é que a comida chegou e sobrou para as Pessoas Sem Abrigo apoiadas pela instituição. E as meias, um bem sempre precioso, também. Foi trazido um lote que fazia parte de uma enorme e valiosa dádiva de todos os tipos de roupa masculina, grande parte dela ainda nova e por abrir, feita por uma amiga de um dos voluntários, após o falecimento do pai. Os homens que vão usá-las nos próximos dias agradecem.

A morte não o assusta

Não tem muito para relatar porque no dia-a-dia que vive dentro da instituição de saúde onde foi colocado as horas são quase sempre iguais. Conto-lhe do novo trabalho, o que lhe desperta a curiosidade.

Diz que não posso estar parado e tenho que antecipar o que pode acontecer a seguir. Daqui a algum tempo, a empresa pode concluir que já não precisa de tantos trabalhadores e é necessário ter um plano. Saber exactamente a quem me vou dirigir, o que vou propor e quais são as opções.

Há seis décadas, decidiu que ia entrar na indústria farmacêutica, porque as condições eram apelativas. Foi bater a muitas portas e numa delas foi recebido.

O gerente não tinha nada para lhe propor mas disse-lhe para voltar daí a 15 dias, e esse processo repetiu-se várias vezes no tempo. Marcava o dia na agenda, sem falhas, e ia sempre visitá-lo nessa data.

Depois de muita insistência, de fazer os testes e a formação, conseguiu finalmente o que queria. Ao princípio ganhava o ordenado mínimo, e anos depois recebia essa soma multiplicada pelos dedos de duas mãos. É por isso que diz que a arma mais poderosa é a persistência.

Agora vive nesta instituição contrariado, e enfrenta os problemas que todos nós encontraremos se chegarmos a ser octogenários. Não gosta de depender dos outros mas não tem opção.

Diz que já não o vão deixar sair daqui. Neste lugar terminará os seus dias. Apesar de não ser isso que queria, afirma que não se chateia.

Ainda que confinado a estas instalações, garante que consegue ser livre e feliz. Regressado aqui depois de ter voltado a viver na rua, já tem o caminho para a casa de banho quase decorado de novo apesar de não ver, e tenta por todos os meios percorrê-lo sozinho.

Diverte-se com os contratempos do quotidiano, como os pequenos ralhetes de um ou outro funcionário com medo que ele não consiga fazer tudo por si próprio.

Declara que está à espera da morte mas esta não o preocupa nem o assusta. É um homem que viu e viveu tudo, pelo mundo fora, da prosperidade à existência nas calçadas. Como poderia temer alguma coisa?

O italiano observador

O jovem italiano de olhos claros e tranquilos como a água do mar imita alegremente os meus gestos enquanto como a sopa. Explico-lhe que é um alimento excelente, rico e muito saboroso.

Acredita e diz que eu devia estar a escrever numa publicação sobre alimentação, como um especialista que degustasse e caracterizasse cada prato que lhe aparecesse à frente, já que sinto tanto prazer nesse acto necessário a todos nós.

Se fosse ao sul de Itália seria feliz, segundo ele. Por ali as pessoa gostam que os convidados encham bem a barriga, não deixem uma migalha por devorar e depois dêem a sua opinião no fim.

Afirma que quando mordo uma fatia de broa de milho fresca e consistente, faço a mesma cara que ele ao apreciar uma adolescente.

Acrescenta que agora já não faz essa expressão, porque as jovens estão mais amargas. Ninguém decide aprofundar esse tema.

Assinala a falta de companhia feminina mas garante que mais tarde ou mais cedo há-de encontrar uma, algo que também não é discutido pela pequena audiência durante a pausa da manhã.

Quando me vê debruçado sobre o computador a responder a um mail de um utilizador dos serviços, observa que parece que estou a fazer amor com o teclado.

Lamenta o excesso de tecnologia. Hoje em dia as pessoas não estão habituadas a comunicar entre si ao vivo. Só quando faltou a luz lá em casa, no outro dia, é que de repente todos os coabitantes quiseram ir ao seu quarto falar com ele.

Filosófico, assegura que nos primeiros dias no novo trabalho as pessoas queriam apresentar-se umas às outras e falar sobre si próprias, mas depois o entusiasmo perdeu-se. Já ninguém quer dialogar, a não ser sobre os casos que estão a tratar.

A partir de uma certa hora do dia acha que já disse tudo o que tinha para partilhar e apenas quer ficar calado.

Chegou a Portugal num dia e no outro começou a trabalhar. Perguntam-lhe se em Itália há ordenado mínimo. Diz que sim, mas as coisas na realidade funcionam de outra maneira.

O Alberto trabalha por 600. O Luca fá-lo por 500. O mínimo legal pode ser X mais do que isso, mas não interessa. O emprego fica para o Luca.

Não tem vontade de se pronunciar mais sobre questões laborais. O intervalo terminou, é hora de voltar a pegar na chamadas e nas mensagens.

Na terceira idade “já não há prazer sexual”

Quer saber as novidades do Mundo. Fica preocupado com o atentado da Flórida e diz que esta é uma época complicada da nossa História. Mostra-se contente por não ter filhos, já que estes iriam ter uma vida difícil.

Octogenário, afirma que mesmo que tivesse oportunidade de estar com uma mulher isso já não lhe interessava. O Viagra, diz, apenas actua sobre “o membro”: Na terceira idade “um homem já não sente prazer sexual, mesmo que execute o acto”.

Essas sensações, acredita, já estão mortas. Mas isso não o preocupa. Revela que nesse campo fez o que tinha a fazer e sentiu tudo o que lhe era devido.

Alguém achou que este homem idoso e com vários problemas de saúde não devia estar na rua, embora ele quisesse viver sob as estrelas. Fazia-o para reivindicar a reforma do país onde viveu a maior parte da sua vida, antes de vir parar a Portugal.

E se não lhe satisfaziam esse direito, também achava que não devia subsistir de uma caridade oferecida como favor. Contra esse desejo, foi colocado de novo numa instituição de saúde. Não está exposto à dureza dos elementos, mas preferia não estar ali.

Animado com a visita, recorda como há mais de meio século lhe perguntaram se não teria problemas por ter contratado um funcionário mulato. Respondeu que não.

Só se o homem quisesse entrar para as forças armadas desse país então em ditadura é que as coisas se podiam complicar. Não por ingressar numa empresa privada.

Algumas reflexões depois, garante que ser católico ou protestante é a mesma coisa. O que interessa é que aceitam o mesmo Deus, são todos cristãos.

E se há quem diga que Cristo “foi o primeiro comunista”, ele está em completo desacordo. Jesus foi para ele algo muito mais parecido com o primeiro social democrata.

Aquele que morreu na Cruz nunca aceitaria nada daquilo que se passou na União Soviética ou na China.

Considera que, no outro lado do Planeta, Trump até pode ser reeleito mas acabará por desistir dos seus projectos mais absurdos e megalómanos. Por não conseguir governar sozinho e porque os Estados Unidos são uma democracia. Não o tipo de regime em que o líder diz que “as coisas têm que ser assim e assim” e acontece exactamente isso.

A minha primeira chamada

Confesso que estava borrado de medo. Tanto que, inicialmente, até deixei cair a chamada sem querer. Recuperei o fôlego e voltei a atender.

Ainda estava meio em pânico, a bloquear, sem ver nada à minha volta e a tentar lembrar-me de quais eram as teclas em que tinha que carregar e os procedimentos iniciais de atendimento.

Depois disso, lá prossegui. Tive uma sorte do outro mundo. Era uma velhinha brasileira muito querida e amável que estava com um problema que eu, ainda por cima, consegui perceber logo sem ter que pedir ajuda nem consultar informação.

Para esta senhora do outro lado do Atlântico me perceber, fui falando com muita calma e devolvendo a simpatia que sentia na voz dela. Passei alguns momentos a explicar-lhe que ela tinha mesmo que fazer todos os processos de verificação da conta, por uma questão de segurança e protecção dos seus próprios interesses.

Era preciso fornecer o documento de identificação, tirar uma foto com qualidade e carregá-la no site. A minha formadora, mentora e guia espiritual sugeriu entredentes que a utilizadora fizesse a foto com a webcam do computador, para melhorar a nitidez.

Consegui convencê-la a fazer isso. Completei todos os processos necessários do meu lado e, pouco depois, recebi uma mensagem daquela senhora doce, já não para se queixar e lamentar mas para me dizer que tinha conseguido fazer a autenticação e entrar na sua conta do site.

Agradeceu muito, afirmou que eu tinha sido bastante gentil com ela. No final, já um pouco mais tranquilo, recebi uma salva de palmas da senhora professora sábia, afectuosa e sensata, e da turma de gente jovem, rápida, inteligente e eficaz que me acompanha nas aulas.

A grande barreira inultrapassável foi vencida, como tudo na vida. A partir daquele momento fiquei preparado para lidar com os brasileiros, portugueses, ingleses, americanos, simpáticos, agressivos, cooperantes, arrogantes e todos os outros géneros de espécimens humanos que viesse a encontrar.

É um processo, como todos os grandes momentos de transformação na nossa existência…

Já tenho o contrato na mão

É a novidade da semana. Já tenho o contrato na mão, para ser assinado até sexta-feira.

Não vale a pena lê-lo demasiadas vezes. As coisas mudaram muito desde Abril de 2004, data em que assinei o último. Depois disso tivemos a “crise”, a troika, a austeridade, a PAF e mil alterações à legislação laboral.

Os contratos de hoje nada têm a ver com os de há… 14 anos! Mas não é nisso que estou concentrado. E também não estou (sempre) a pensar que ainda me falta muito para me sentir um assistente de apoio e atendimento ao cliente capaz de trabalhar a cem por cento.

Já ajudei algumas pessoas, mas ainda preciso de ser muito amparado pelas formadoras para conseguir resolver as situações com que se deparam os utilizadores do serviço.

Mas não é isso que ocupa a maior parte das minhas ideias. Nem as incertezas, de todos os tipos, relativamente aos próximos meses.

Há uma luz que se acende no infinito e ilumina a minha consciência. Até há três semanas, quando os familiares, amigos, conhecidos e humanos em geral me perguntavam como estavam as coisas, a reacção era a mesma dos últimos meses.

Bem, estou à procura, ainda não encontrei, vou prosseguir a minha busca. Pois é, diziam, as coisas estão complicadas.

Agora já tenho uma resposta diferente para dar. Estou a fazer a formação num call center, ainda tenho muito para aprender mas o meu futuro mais próximo deverá ser ali.

Estou a ser ensinado a apoiar aqueles que nos contactam, de uma forma sempre amável, eficaz e consequente.

Se tudo correr bem vou ficar a trabalhar a 35 minutos de casa, e posso ver o rio, o céu, as nuvens e as estrelas a caminho do local de laboração ou no regresso ao fim do dia.

Ainda por cima, ao fim dos primeiros 15 dias de formação, o Chiquinho passou o primeiro teste. O meu gatinho lindo, quase pessoa e paciente diabético atravessou este primeiro período a ficar mais horas sem comer (já que a sua alimentação tem que ser separada da dos seus três companheiros felinos, comigo presente) e a glucose do seu sangue não subiu!

Tudo aquilo que pode correr bem está a encaminhar-se no bom sentido. É continuar.

Sinto-me ignorante

É claro que isto tem solução. O que há a fazer é deixar o tempo passar e continuar com os olhos, os ouvidos e o cérebro bem disponíveis.

Mas por enquanto sinto-me um néscio acéfalo. Faço parte de uma turma de dezena e meia de pessoas, quase todos de 20 anos, à excepção de alguns que têm 30.

Estou sempre atrasado e perdido. É muita informação, são imensos conceitos, várias ferramentas tecnológicas, diversos endereços de Internet, nomes de utilizador, palavras chave.

É tudo em inglês. Apesar de o meu uso do idioma de Shakespeare ter melhorado a olhos vistos, não é a minha língua nativa.

A senhora professora é cinco estrelas. Assertiva nas doses certas, rigorosa, paciente, clara, explicativa. Está sempre a trazer-nos biscoitos, bolachas, guloseimas de todos os tipos e até fruta, no meu caso.

Atribui-nos todas as actividades possíveis e imaginárias, para dominarmos o conhecimento através da prática. Deixa-nos fazer simpáticos intervalos quando já estamos a cair para o lado.

Brinca connosco, espicaça-nos e capta a nossa atenção. Quando vê que não estamos a conseguir manter-nos concentrados, diz-nos que podemos ficar de pé e mexer-nos, para não nos irmos abaixo.

Gosto de vê-la a explicar as coisas e a puxar por nós. Não sabia que havia formadores tão eficazes e dotados.

Isto quer dizer que, tirando os meus neurónios destreinados e baralhados, tenho tudo a meu favor.

Daqui a umas semanas espero manusear facilmente as ferramentas, resolver os casos, esclarecer as dúvidas dos utilizadores e ser um bom agente de atendimento e apoio ao cliente, por escrito e telefonicamente, em português e inglês.

E a avaliar por todas as informações recolhidas, este parece ser o call center mais agradável e interessante do mercado, nomeadamente para quem não tem experiência na área.

Do jornalismo para o call center

O primeiro dia na nova vida de formando do call center começa de forma verdadeiramente inesperada. Às 08H40 encontro na rua o C, que já não via havia décadas.

Jornalista numa rádio, está cansado dos abusos e excessos laborais da profissão. Aproveita os dias de folga para dar aulas daquela que é desde sempre a sua especialidade. Um treino muito prático, sem perdas de tempo.

Nas horas seguintes, conheço uma porção de jovens de muitos pontos da Europa que decidiram vir trabalhar para Portugal. Acordam uma manhã com essa ideia e no dia seguite fazem-se à estrada. Porque não, perguntam eles.

Sendo Lisboa hoje uma capital do turismo mundial, muitas empresas apostam nesses trabalhadores, atraindo pessoas que falem fluentemente uma ou várias línguas estrangeiras. É uma forma de fornecer atendimento a clientes de múltiplas nações, possibilitando que sejam apoiados nos seus idiomas nativos.

Vamos ficar a saber tudo sobre a empresa, o seu cliente para o qual vamos trabalhar e os serviços que fornece. Falam-nos de pessoas que procuram viajar, mas também ser mergulhadas na realidade do país que visitam, não como turistas mas como habitantes locais.

Ou viver experiências totalmente fora do comum. Aulas de desportos de aventura, visitas aos lobos, treinos de cozinheiro na gastronomia nacional… E de outras, que gostariam de obter um rendimento extra proporcionando essas estadias ou momentos únicos.

As duas partes são postas em contacto e aproximadas por uma empresa e comunidade online que existe com esse propósito: a Airbnb.

Aqueles que vão fazer atendimento ao cliente terão como objectivo que todos, tanto hóspedes como convidados, fiquem com vontade de repetir esta opção muitas vezes no futuro.

Outra coisa que também vamos revitalizar é a nossa capacidade para trabalhar em equipa. Com pessoas com quem parecemos identificar-nos de imediato, mas também com aquelas que aparentemente nada têm a ver connosco.

E é assim que começa a minha nova vida…

O fim de um ciclo

Comecei uma formação num call  center, com o objectivo de ficar lá a trabalhar. Assim termina um ano e meio a procurar emprego.

Primeiro, ocupei-me a colaborar com uma nobre e altruísta associação que luta contra o abandono de animais de estimação. Depois, passei o tempo a apoiar uma publicação de fins culturais e bairristas.

Ao mesmo tempo, também dei origem a conteúdos de divulgação dirigidos a pequenas e médias empresas. O livro d’O Cronista está quase pronto, só faltam uns ajustes.

Pelo meio, claro, procurava trabalho todos os dias. Na minha área. Nas adjacentes. E em todas as outras. Laborar por 500 e tal euros, para quem procura, não é muito difícil.

Transpirar por mais uns pózinhos que isso… Já não é fácil. Encontrei algumas vagas (fora do jornalismo, claro) que correspondiam a essa descrição. Mas, naturalmente, eram 70 cães a um osso, e o pitéu ficou para outro.

Depois das primeiras cabeçadas, percebi que o meu inglês precisava de ser revitalizado. Foi o que fiz durante mais de um ano, e foi graças a tal que passei neste último processo.

Neste momento sinto  uma porção de coisas, e algumas nem as percebo bem. Outras, entendo-as. Passei a experimentar menos angústia e vazio em relação ao longo prazo, e uma ansiedade maior face à mudança e às adaptações no imediato.

Não divisava um futuro no meu horizonte e agora vejo que ele pode desenhar-se. Ainda só lhe adivinho as sombras e os contornos, mas já descortino ali qualquer coisa.

Tenho sido bem tratado pela vida, pelas pessoas, pela sociedade. Está na altura de retomar plenamente o meu lugar na comunidade e continuar a contribuir, também eu, para o bem comum.

A desilusão de Hernandez

A carta chegou à abadia e ouviu-se um suave frufru de túnicas agitando-se levemente à esquerda e à direita. No pomar, os amieiros ondulavam com a ventania do final da tarde.

As bagas frescas nos arbustos sobre a terra fria tombaram, ficando à mercê dos ratos e dos cães que por ali passassem. As horas passavam lentamente.

O teor da epístola não viria a ser revelado, um revés embaraçoso para os 12 celibatários encerrados entre quatro paredes. Não se tratava do anúncio de uma profecia cumprida nem da revelação da chegada do Messias.

Lá longe, um século depois, ouviam-se os apitos das sirenes dos navios. As embarcações andavam perdidas no meio do nevoeiro. Na cidade, os transeuntes encolhiam-se de frio e amaldiçoavam o tempo húmido.

Os inúmeros visitantes não se mostravam satisfeitos. Tinham vindo atraídos pelo Sol do estio e acabavam trapaceados.

Um homem sábio continuava sentado à porta de um templo do conhecimento. Tinham ouvido falar dele e da sua luta contra os males do Mundo.

Vinham cada vez mais estranhos, de outras paragens, conhecê-lo. Dez num dia, 15, vinte no outro. Todos queriam ouvir as suas palavras e sentir a sua inspiração.

Uma chegou do teatro e quis falar com ele. Outros disseram-lhe que não devia estar ali sozinho.

Uma moça em idade casadoira levou-o para o primeiro andar de um restaurante. Quis escutar os segredos da vida dele e contar-lhe as suas aflições.

Ele relata-lhe que antigamente, numa outra vida, passava diariamente por um recinto teatral onde a actuação era diferente todas as noites.

Havia sempre belas bailarinas de coxas desnudadas que faziam sonhar os homens que por ali passavam. E mulheres de virtude transitória que pediam um copo de vinho e ofereciam momentos de prazer.

Não lhe custaria pegar num maço de notas e assistir àquele epectáculo de tentação, mas nunca o fizera.

Um dia encontrou o González e o Hernandez. Iam penetrar eles próprios nessa catedral de perdição, e o primeiro convidou-o a ir com eles. O sábio disse que não se importava, desde que cada um pagasse a sua própria despesa.

Depois de muita negociação, e de aceitarem as condições dele, acabaram por entrar. A luxúria da noite seria à medida da imaginação de cada um.

Mas Hernandez teve uma desilusão. Estava convencido que era González que ia pagar a conta dele.