Circulava tranquilamente pelas avenidas do Rio de Janeiro no seu automóvel, na saudosa década de 1960, ao som dos acordes da Bossa Nova, que no rádio alternavam com Elis Regina e Caetano Veloso.
À frente outro carro, em velocidade regular e bem dentro da sua faixa, cumprindo todas as normas do trânsito carioca. De repente, um estrondo.
Contra aquele que ia à frente choca um terceiro, que vinha fora da faixa, descontrolado e acelerado para se desviar de um obstáculo, acabando por interceptar violentamente o desgraçado que lá ia na sua vidinha sem esperar nada daquilo.
Há uma certa comoção, os dois saem e falam. O infractor era um general, a ditadura militar comandava o país com mão de ferro. U. assistia a tudo aquilo, nervoso e irritado.
Era óbvio que o inocente ia ser transformado em culpado, e vice-versa. Observa com enorme atenção e interesse. Os dois acidentados dirigem-se para a esquadra.
A testemunha acaba por segui-los discretamente. Chega ao posto e ainda a discussão decorria, na presença de agentes. O dirigente da esquadra era uma alta patente militar.
Para aquele cidadão anónimo e distante das lutas políticas, isso fazia a diferença. Seria um homem com alguma educação e capacidade para ouvir…
Foi meter-se tranquila e civilizadamente na conversa e ofereceu-se para relatar o sucedido. Descreveu, com todos os detalhes, como o BMW se tinha enfiado no Volkswagen Carocha.
Falaram e falaram. O responsável que ouvia as três versões, duas das quais coincidiam e desempatavam a questão, acedeu a oficializar aquilo que lhe pareceu ser a verdade.
O infractor ficou a deitar fumo pelos olhos. U. decidiu que, depois de tudo ser formalizado e arquivado, e enquanto ainda estavam a ganhar a parada, era altura de ele e o seu novo amigo se porem a andar. Antes que as cartas mudassem de direcção.