“O senhor ralhou com o cocheiro por não ter ultrapassado a tempo a caravana, enquanto a senhora franzia os olhos e fazia uma careta de repugnância, protegendo-se do sol e da poeira com a sombrinha que colocara de encontro ao rosto”. Rússia, 1899, retratada por Tolstoi em A Ressureição. O horror da dama, acompanhada pelo senhor e pelos dois filhos, é provocado pela passagem do cortejo dos condenados, que se dirigem para a prisão onde passarão os próximos anos da sua vida.
Vários morrerão pelo caminho, dada a forma como são tratados pelos guardas, cuja última preocupação no mundo seria o seu bem estar. Muitos condenados inocentemente, outros vítimas da sociedade de classes czarista, onde o povo não tem direito nem à propriedade nem a algo a que possa verdadeiramente chamar-se existência.
Após a passagem dos condenados, nem o pai nem a mãe deram aos seus filhos a menor explicação sobre o que tinham visto.
“Assim, tiveram que descobrir por si próprios o significado daquele espectáculo. A menina, julgando pela expressão do rosto de seus pais, resolveu o problema dizendo a si própria que aqueles seres eram de uma espécie muito diferente da dos seus parentes e amigos, que eram maus e por isso deviam ser tratados desse modo”.
O rapazinho encontrou outra explicação. “Sabia de maneira firme e indubitável que esses seres eram absolutamente semelhantes a ele próprio e aos outros homens e que, por consequência, lhes estavam fazendo mal; sentiu compaixão e terror tanto pelos seres acorrentados e de cabeças rapadas, como pelos que os tinham reduzido àquele estado”.
Pouco mais de cem anos depois, a forma como, não longe dali – na Húngria e noutros países do Leste da Europa – estão a ser tratados os refugiados e imigrantes, que, como muitos dos condenados do czarismo, também não cometeram qualquer espécie de crime, torna fácil a comparação.
Mas é só um dos paralelos possíveis. Quando o senhor e a dama, nos tempos actuais, passam na Avenida da Liberdade, dentro do seu BMW X6 de vidros fumados, conduzido pelo motorista, com o seu filho e a sua menina a bordo, e vêem o homem de roupas velhas, de barba e cabelo comprido, o olhar perdido no infinito, à espera de quem lhe dê uma sandes ou uma moeda ou um café, o que dirão aos seus meninos?
Ou, mesmo que não digam nada aos pequenos, o que dirão os seus olhos e os seus rostos? Que interpretação fará a pequena, que vê o mundo pelos olhos dos pais e considera verdades absolutas tudo o que sai dos seus lábios? O que pensará o rapazinho, que aprendeu, desde cedo, a olhar para a realidade à sua volta com os olhos do coração, não se deixando levar por aquilo em que gostariam que ele acreditasse?