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O arrumador

Aparentemente devido a misteriosas escavações arqueológicas, o Campo das Cebolas transformou-se numa miniatura da Bósnia, ou de Beirute, nos piores tempos das suas respectivas guerras.

Há um gigantesco buraco no chão, como se ali tivesse aterrado um enorme meteorito assassino. Há um infindável estaleiro, para escavar, destruir ou construir alguma coisa.

Há uma série de lojas, restaurantes, cafés, esplanadas e gelatarias que tentam atrair os visitantes, apesar de tudo. Há uma zona onde aos carros é impossível circular, mas as suas centenas de metros iniciais são aproveitadas para albergar um parque de estacionamento informal, onde pululam arrumadores a lutar por ganhar uns trocos.

Deverão existir por ali uma dinâmica e uma auto-organização próprias, com regras consensuais entre os arrumadores… Mas parece que hoje alguém decidiu quebrá-las.

Vejo um pequeno, magro e fraco arrumador, provavelmente influenciado pelo álcool, a perder a cabeça. Um homem de 50 e tal anos, vestido com boas roupas descontraídas e informais, terá estacionado num lugar onde não seria suposto fazê-lo.

Apanho a discussão a meio, com aquele ser delgado, irritado e transtornado a ameaçar o homem, a chamar-lhe nomes e a insultá-lo. Dizendo que não pode deixar o carro ali, que ninguém pode estacionar ali, que ninguém vai fazê-lo.

Grita, insulta, ameaça e os seus colegas mandam-no calar-se e acalmar-se, que aquilo não faz sentido, que só vai arranjar problemas. Não há nada que o demova.

Aquela figura que abana ao vento quer ir ter com o homem sólido e consistente que o irritou, embora os amigos não o deixem. O que é certo é que o condutor insultado decide voltar atrás umas duas vezes para ir dar uns socos no homem magro, alcoolizado e furioso, e é isso mesmo que faz.

O arrumador bem podia ficar calado e quieto, só que o seu estado alterado não o deixa. E este homem, um tipo de classe média, sem preocupações materiais, que sabe quando e onde vai ser a sua próxima refeição, não podia ter seguido o seu caminho e ignorar as boçalidades do outro?

Que necessidade tinha de voltar atrás para ir descarregar uns murros num ser perdido, temporariamente enlouquecido e que não constitui para ele nenhuma ameaça, porque os colegas não o permitem?

Não podia ter ido à procura do seu jantar, sem perder tempo e sem castigar alguém que não vai conseguir fazer-lhe mal nenhum? Ou será que o saco de boxe do Holmes Place não estava disponível nesse dia?

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