by

“Estavam a cumprir ordens. Isto chama-se sequestro”

“Sabe dizer-me onde está aquele senhor que vivia na rua e foi trazido para aqui?”. “Sim, sim, já vieram visitá-lo. É este senhor aqui da lista, está nesta secção”. “E onde fica isso?”. “À esquerda e depois em frente”. “Obrigado”.

Dezenas de minutos de voltas e falsos alarmes depois, o edifício surge, grande e imponente. Há uma campainha, que é necessário tocar para entrar. “Já não está aqui, está ali no primeiro piso”.

Mais uma vez, também há uma campainha para tocar e uma funcionária que abre a porta. Surge um homem simpático e amável, residente mas não funcionário, que conduz à sala certa.

“Tenho estado com ele, a apoiá-lo. Acho que ele agora está mais alegre. Vou com ele à casa de banho, dou uma volta com ele aqui dentro, dou-lhe cigarros”.

Finalmente aparece, a um metro de distância, sentado num sofá. Cabelo muito curto, barba aparada, muito magrinho como sempre, descalço, de pijama e roupão.

“Então, como está?”. “Está tudo bem, estou vivo”. “Soube que o tinham tirado da rua e trazido para aqui, vim ver como estava”. “Obrigado!”. Sai uma pergunta estúpida, motivada pela vontade de conversar com ele.

“Está aborrecido?”. “Experimente vir aqui para o meu lugar. Eu fico onde você está e você fica aqui”. “Pois, claro, tem razão”. “Obrigaram-me a vir para aqui. Não têm o direito a obrigar-me a estar aqui”.

“Trataram-no mal?”. “Não, não, as pessoas que me trouxeram para cá estavam apenas a cumprir ordens. É o que acontece nas ditaduras. Isto chama-se sequestro. Desde que vim para Portugal já me internaram três vezes, embora eu não tenha quaisquer problemas psiquiátricos”.

“E como são as pessoas aqui dentro?”. “São pessoas. As pessoas que estão aqui dentro são as pessoas que estão lá fora. É a mesma coisa”.

Como ele, hoje, pouca coisa diz, falo-lhe da recente visita dos voluntários da Comunidade Vida e Paz às Comunidades de reinserção.

Depois disso, conto-lhe tudo sobre o veganismo. Afirma que, segundo os bioquímicos, precisamos de comer clara de ovo, devido à presença de seis aminoácidos essenciais que, de acordo com os referidos cientistas, não existem em mais nenhum alimento.

Não seguirei a recomendação, mas, naturalmente, não discuto. É a primeira vez que lhe falo tanto sobre mim.

Explico-lhe que a vida dele já inspirou muitas histórias do Cronista Sem Abrigo. Sorri e acena em sinal de aprovação.

Uma hora depois, despeço-me deste homem sábio e humilde. Agradeço ao seu novo amigo, por encontrar tempo, disponibilidade e vontade para apoiá-lo e ajudá-lo nesta nova fase da sua vida.

À saída, volto a passar pelas duas portas que se fecham à chave atrás de mim. E volto a pensar.

Este homem, que conheço há anos, não tem quaisquer perturbações psiquiátricas. É, até, das pessoas mais cultas, sabedoras e interiormente ricas que já conheci.

Vivia na rua e está agora internado nesta instituição. Tem 84 anos e uma saúde frágil. Aqui, naturalmente, a sua saúde será vigiada e acompanhada. Mas a liberdade e a felicidade que dizia sentir na rua, essas, nunca poderão dar-lhas aqui.

Write a Comment

Comment