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Amigos de papel

Parecia estranho um miúdo que ainda mal começara a escola primária agarrar numa página escrita e demonstrar que estava a lê-la, mas havia qualquer coisa de genético naquilo. A minha mãe, claro, não se fez rogada… Se, desde sempre, nos lia, a mim e à minha irmã, as histórias de banda desenhada ao adormecer, acompanhadas dos deliciosos “bum”, “crash”, “poing”, “chuif” e daí por diante, também começou a oferecer-nos imediatamente  grandes quantidades desses  volumes adorados. O Tio Patinhas, o Rato Mickey, a Mónica, Cebolinha, Cascão, Lucky Luke, Astérix, Obélix e os demais companheiros inseparáveis e maravilhosos de papel.

 

A seguir a eles vieram Os Cinco, a Patrícia, a Carlota, Os Detectives Hardy, Os Flibusteiros do Arbalète, A Casa dos 99 Fantasmas, os primeiros livros de ficção científica. A minha biblioteca era alimentada activa e incansavelmente pela minha mãe, pela minha voracidade e pelas ajudas de mais alguns familiares.

 

Engolia as histórias do FBI, as colecções Seis Tiros, o terror, o romance, o policial, a BD, as páginas sem ilustrações. Veio depois o escritor que atravessou e iluminou toda a minha juventude e as respectivas reflexões filosóficas, Milan Kundera e a sua obra completa: Os romances, evidentemente, e os ensaios, as peças de teatro, tudo o que ele se lembrasse de escrever.

 

Chegou o dia em que descobri Dostoievski,  e Tolstoi, Gogol, Gorki… Folheio os livros novos e absorvo o odor da tinta acabada de sair da gráfica. Boas almas fazem-me chegar clássicos em que a edição é tão velha que mais rapidamente recuo, no tempo, até à era das personagens. Deliro ao ser obrigado a cortar o papel para poder passar do prefácio ao primeiro capítulo e continuar a ler.

 

Os meus amigos de papel continuam a acompanhar os meus dias, e bem mais de metade do conteúdo das estantes bem alinhadas e empilhadas ao longo da minha existência foi fornecida pela minha mãe. Continuamos a olhar embevecidos para as páginas antigas como para as novas, e a contemplar, entusiasmados, mais uma relíquia preciosa que apareceu de repente: “Olha, ofereceram-me o Ressureição… E o Almas Mortas”. “A sério?! Que maravilhoso!!”.

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