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“Vocês são as primeiras pessoas com quem falo hoje”

“Vocês são as primeiras pessoas com quem falo hoje”, diz-nos, quando chegamos. São quase onze e meia da noite. Conta-nos como foi parar à rua, há 30 anos. Tinha uma namorada, as coisas não correram bem: Tentaram várias vezes e não deu certo. “Tu segues por esse caminho acima, e eu vou por ali abaixo”. Mas ela não aceitou bem. Eram tempos de ditadura naquele país da América Latina, a mulher inconformada arranjou-lhe problemas com o poder, fez circular que ele era contra o regime… Três décadas depois, continua a habitar numa calçada da cidade, possuindo apenas a roupa do corpo. Não tem nada, mas todas as noites diz que é feliz.

 

É um dia diferente, é feriado e dá a ideia que quase toda a gente está um tanto alcoolizada. Há um homem, noutra parte da cidade, que está com a veia romântica acesa. Aceita a sandes, desfruta bastante da conversa que lhe oferecemos e não nos quer deixar ir embora. Diz que está apaixonado pela nossa nova voluntária, não se quer separar dela. Entre o hálito festivo, as gargalhadas alegres e um estado de espírito instável, pergunta-lhe onde mora, não acredita na resposta e pede-lhe para namorar com ele. Não aceita, até porque é casada e mãe há muitos anos. Implica diversos e profundos esforços diplomáticos, masculinos e femininos, separarmo-nos do homem, deixá-lo terminar a sua noite tranquilamente e prosseguir com o nosso trabalho.

 

A pouco mais de um quilómetro, a dupla de amigos da Europa de Leste também está acentuadamente carregada de álcool, e com uma disposição de espírito ainda mais imprevisível. Após ir a um vão de escada escuro e sombrio assegurar que, de facto, é meia dúzia de homens que está a precisar de comida, e deixá-la aí entregue, os ânimos acalmam-se e pacificam-se por completo.

 

No local citadino mais central e mais concorrido por pessoas carenciadas, a conversa decorre em tom cordial, ordeiro e fluente, com um homem que sofre de doença bipolar e distúrbio obsessivo compulsivo. Mesmo com a medicação completa, considera que nunca se sente humanamente a 100 por cento, apenas a 20. Explica que é uma doença difícil e complicada. Tem que ter as coisas todas extremamente bem arrumadas. Depois, no dia seguinte, pode chegá-las todas um centímetro para a direita, ou um milímetro para a esquerda. Têm necessariamente que satisfazer o seu sentido doentio de ordem, o posicionamento perfeito e impossível.

 

Noite de agitadas e animadas conversas, dos voluntários da Comunidade Vida e Paz com as Pessoas Sem Abrigo de Lisboa. Horas de apoio, fraternidade, momentos em que se oferece uma sandes, um bolo, uma palavra amiga, um caminho…

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