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A caixa de sapatos

Começou a ir todos os dias ao café, brasileiro mas de donos portugueses, onde se comia o bacalhau tradicional, exactamente como em Portugal.

Todas as manhãs, bebia um café e ficava um bocadinho. Foi criando amizade com o dono. Um dia, apareceu-lhe com uma caixa de sapatos:

Pode guardar-me isto, porque eu tenho que ir ao hospital com a minha mulher? Depois eu venho buscar.

O dono do café deixou aquilo na parte de dentro, mas à vista.

Mais tarde, apareceram três tipos, que pediram para ver o interior da caixa. O proprietário não queria ceder, já que o recipiente de cartão não era dele.

Os visitantes mostraram as suas carteiras, e nelas os distintivos. Eram polícias. Abriram a caixa e viram lá dentro uma arma.

Um ficou calado, outro fez de polícia mau e outro de polícia bom. O mau queria prender o homem, o bom tentava convencer o colega a deixá-lo em liberdade.

O silencioso acabou por pedir dinheiro para que os três se calassem sobre o achado. A vítima da extorsão disse que sim, que pagava. Passaram uns dias.

O proprietário do estabelecimento era amigo de um cliente… Que era um general bem colocado no regime militar. A história acabou por terminar mal para os polícias.

U. relata o sucedido e comenta que, ao longo da vida, muitas vezes lhe pediram para guardar alguma coisa, mas nunca aceitou. Às vezes eram mulheres muito bonitas que lhe faziam esses pedidos, aos quais era insensível. Quando nos pedem para guardar uma coisa, nunca sabemos muito bem o que está lá dentro.

Enquanto come o lanche que lhe traz o enfermeiro da instituição de saúde onde vive, queixa-se das cinco doenças. A hérnia do lado direito, uma formação desconhecida do lado esquerdo, as cataratas, um vírus e uma dor dos dois lados do pescoço.

Com o passar dos anos, habituou-se a conviver com as doenças, e o seu grau de tolerância à dor foi aumentando consideravelmente. Suporta-a, brinca com ela. Fala com o corpo, com as células e com os átomos. Acolhe sem preocupações qualquer mal que lhe ataque o organismo.

Isso não tem importância nenhuma, garante, com os seus 84 anos e a sua cegueira. Diz que mesmo que um cancro o escolhesse, encararia a sua chegada sem dramas.

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