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Viver para os outros

Foi difícil voltarmos a falar, depois do Inferno que foram os seus dias mais recentes. Dedicou estes últimos anos a tornar mais aceitável e suportável a existência de alguém que tinha perdido a generalidade dos prazeres da vida, e que dependia dos outros para tudo.

Agora, chegara a Hora. Tinha que tratar das disposições finais, e dos pormenores macabros que tentamos, a todo o custo, manter sempre bem longe de nós. A meio da viagem de 200 quilómetros, pressões, à distância, do centro de saúde local. Era preciso que chegasse depressa, para autorizar a deslocação, por causa do calor…

Avisar a família, convocar toda a gente para as cerimónias, tratar do último conjunto de roupa, do derradeiro calçado, ficar algumas horas na casa antigamente habitada, agora vazia e sombria, tendo por companhia apenas uma revista.

Quando, depois desses momentos marcantes, nos voltamos a cruzar ao telefone, a voz é a de sempre. A mesma calma, a serenidade habitual. Diz-me que, com o tempo, vai ficar bem. É preciso deixar os dias passar. Pergunta, com preocupação, como estou, se preciso de alguma coisa.

Sem saber o que dizer, começo a falar de algo que nenhum de nós domina ou celebra com particular entusiasmo. Futebol.

Que uma das familiares com quem falara estava muito triste, porque tinham batido no Ronaldo. Eu confirmo que sim, que lhe deram com força, para ganharem o jogo.

Que outra pessoa tinha considerado surpreendente o tiro de Éder, impossível de defender. Eu respondo-lhe que, reza a lenda, o capitão lesionado encomendou o trabalho ao colega: “És tu que vais marcar o golo, por mim e pelos portugueses”. Foi o que me pareceu ouvir, da boca do herói atlético e certeiro que salvou as Quinas, mais tarde, na conferência de imprensa.

Quer saber, mais uma vez, se está tudo bem, o que tenho comido. Diz que está a fazer sopa, e que já tem os tupperwares quase prontos para mim…

Há um punhado de pessoas no mundo que, mesmo nas horas mais negras, pensam em tudo menos em si mesmas. A única coisa que as preocupa é o bem estar e a felicidade dos outros, sejam os mais próximos ou os outros seres em geral. A pessoa mais importante da minha vida é uma delas.

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