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Agora já não importa

Os quatro telefones tocam quase ao mesmo tempo, não pode ser coisa boa. Atendo, confirmo isso mesmo e sou informado e esclarecido. E fico a pensar…

Trabalhou a vida toda, fora daqui, para se sustentar e ajudar a mãe e a mais de meia dúzia de irmãos. Alguns só tiveram tecto graças à sua intervenção. Ergueu a sua casa, no seu terreno, para que no futuro pudesse viver em paz, sossego e tranquilidade.

Durante a sua vida activa, trabalhando e vivendo longe, terá gozado alguma felicidade e liberdade. Há fotos suas, de ar divertido e malicioso, praticando nudismo, coisa muito incomum na época.

Nunca quis casar nem ter filhos, achou que estava melhor assim e que não precisava que lhe aquecessem os pés. Sempre me recebeu, a mim e a toda a família, ao longo da vida, para ficarmos instalados as semanas ou quinzenas que quiséssemos, sem aceitar o que quer que fosse em troca.

Prezava acima de tudo o silêncio, que respeitassem o seu espaço e não a chateassem. Para isso serviam aquela casa e aquele terreno, pagos com o suor de muitas décadas de sacrifícios. Depois de se retirar do mundo do trabalho, isso ainda aconteceu durante algum tempo.

Mas as suas previsões e desejos não se concretizaram. Diversas doenças de vários tipos lhe declararam guerra. Duas delas, com consequências muito mais graves e profundas. Roubaram-lhe a mobilidade e a autonomia, muito mais cedo do que seria de esperar. Perdeu, pelo menos em parte, a noção do mundo e da existência à sua volta.

Eventualmente consciente de tudo isso, talvez tenha desistido. E quem somos nós para censurar… Obrigado pela hospitalidade desinteressada e principesca, totalmente disponível ao longo de todo o ano durante quatro décadas e meia, em local mais que paradisíaco. Pelos cozinhados específicos e dedicados, pela simpatia, generosidade e boa disposição, pelo sorriso maroto e bem humorado. Descansa, agora que já nada disso importa ou existe para ti.

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