Tinha decorrido havia pouco tempo o dia 19 de Maio de 2017. Finalmente, chegou. O Homem dos Livros conseguira encontrar, após infindável pesquisa e porfia, um exemplar d’Os Possessos, de Dostoievsky.
Momentos depois, abria-se o primeiro dos quatro volumes. Regressava, por fim, à companhia dos aristocratas russos de há 150 anos. E com uma vantagem.
O célebre e imortal escritor debruça-se, como aconteceu com Tolstoi, sobre as primeiras manifestações do pensamento socialista, ou pré-socialista, naquele país, em meados do século XIX.
E de forma divertida. Muito diferente da abordagem de Tolstoi – séria, dramática e inesquecível.
O autor de Crime e Castigo dá-nos uma perspectiva irónica e ligeira sobre os primeiros homens a interessar-se pelo socialismo, as “ideias novas”.
Demoramos vários volumes a perceber que as personagens são defensoras organizadas e activas do socialismo e da revolução. E mais alguns capítulos a interiorizar outra coisa.
Aos olhos de Dostoievsky, a estes antepassados dos comunistas de nada interessava o povo. Desejavam, apenas, substituir uma ditadura por outra.
Calculavam, até, que seriam necessárias cem milhões de mortes, ou mais, para instaurar essa nova ordem, o “paraíso terreal”. Parece algo que já se ouviu antes, ou, melhor dizendo, depois.
Os pequenos volumes têm andado para todo o lado. Para o ginásio, para a esplanada, para o café, para a noite, para a Bica, para o Adamastor, para o Bairro Alto.
Mais recentemente, até ao 100 Montaditos, junto ao Mercado da Ribeira. Sento-me com a minha amiga e pedimos frango para ela, salada sem queijo para mim, batatas fritas para os dois, Ketchup para ela, Nachos com Guacamole para ambos.
Falamos sobre o que nos espanta, o que nos aflige, o que nos surpreende e o que nos maravilha por estes dias.
O delicado e apetecido livro que nos faz viajar um século e meio fica sobre a lancheira inteligente dela, de onde sobressaem, no idioma de Shakespeare, as palavras “smart lunch”. Os seus óculos escuros à moda repousam, inquietos, sobre tudo isso.
Comemos e bebemos a primeira e a segunda dose. A dada altura, no calor da discussão, os óculos mergulham na maionese dela.
Limpa cuidadosa e criteriosamente as lentes, as hastes e os parafusos. A cavaqueira continua.
No final, depois de toda aquela comida e bebida saudável, os olhos recaem sobre a capa d’Os Possessos. Dostoievsky está cheio de manchas verdes. É Guacamole.
Um guardanapo leve e cautelosamente humedecido, passado suave e carinhosamente sobre a capa, resolve tudo. A Revolução continua.