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“Quem está a matar aquela pessoa não sou eu. É Deus”

Mudaram-no de lugar. Desta vez, além do pijama, está também convenientemente vestido com um roupão confortável, calçado, e, além de lhe cortarem o cabelo bem curto, também lhe tiraram todos os vestígios de barba.

Ao lado, há uma senhora igualmente idosa, olhos azuis e brilhantes, momentaneamente ausentes. Chinelos, um pé calçado com uma meia castanha, o outro descalço.

O meu amigo E., de 84 anos, internado compulsivamente e fechado à chave neste lugar, está hoje mais falador. Diz que o levam de um sítio para outro, como uma bola de pingue pongue.

Continua a ser visitado por pessoas que o conheceram quando vivia na rua (até há um mês) e querem saber como está. Falamos sobre a tensão entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte, bem como os ataques na Síria e no Afeganistão.

Afirma que americanos e coreanos devem pensar duas vezes antes de fazer alguma coisa. “O armamento atómico deve ficar como está, bem quieto e sossegadinho”. Gesticula expressivamente, com a palma da mão a empurrar para baixo

Diz que Donald Trump pode ser criticado e refreado pelos membros do Governo que escolheu, e que foi buscar ao Partido Republicano. Mas na Coreia do Norte, se o líder disser que amanhã toda a gente tem que sair à rua de calças vermelhas, toda a gente sai à rua de calças vermelhas no dia seguinte e ninguém se atreve a contrariá-lo.

Chega a hora do lanche. É, por assim dizer, Sábado de Páscoa, e a refeição leve é constituída por iogurte sólido misturado com bolachas doces. O meu amigo e a sua companheira do lado mostram gostar bastante da escolha, que deita um cheiro adocicado.

E. sofre de cataratas e não vê. Depois de lhe ser fornecida a tijela e a colher, observo com enorme atenção à medida que vai comendo tudo devagarinho até ao fim, sozinho, sem desperdiçar nem entornar uma gota.

A terceira senhora a contar da esquerda assiste à nossa conversa de grande proximidade física, porque ele ouve mal e eu falo muito baixo, e comenta. “Assim é que é conviver! Assim é que é bom conviver”. Sorrio para as duas mulheres e aceno positivamente.

O meu interlocutor viveu em vários países do mundo, está aqui encerrado contra a sua vontade e, por razões indeterminadas, não consegue ter acesso à sua reforma. Já não vai poder realizar o seu sonho.

Embora não seja português, gostava de poder acabar a sua vida em Portugal, no campo, num sítio onde pudesse estar próximo do animais.

Vai recordando algumas histórias de um dos países onde viveu, o Brasil. Uma vez estava sentado num café com um médico, a conversar. Entrou um homem, cumprimentou toda a gente, bebeu o seu café e foi-se embora.

O médico disse-lhe que aquele era um dos maiores assassinos do Brasil. Já tinha morto mais de 30 pessoas. Uma vez, em tribunal, o juiz disse-lhe isso mesmo.

Você é considerado um dos maiores assassinos. É relacionado com dezenas de homicídios”.

Ao que este respondeu: “Vossa senhoria, eu, se for ameaçado por alguém, vou ter que me defender. E se me defender, vou fazê-lo com uma arma. E se me defender com uma arma, vou apertar o gatilho. E se eu apertar o gatilho, alguém vai morrer.

Mas olhe, Vossa Senhoria: Quem está a apertar o gatilho sou eu. Mas quem está a matar aquela pessoa não sou eu. É Deus”.

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