Está com bom aspecto. Ele e ela apresentam um ar refrescado.
Há um mês foram vítimas de um incêndio, segundo eles uma tentativa de homicídio, já que os seus caixotes de papelão, de onde ela costumava sair de pijama branco de meia estação a meio da noite para receber comida ou roupa, arderam numa questão de segundos, e havia qualquer coisa que parecia um combustível nas proximidades.
Ela continuou sempre a arrumar carros, ele já saiu do hospital. A rapariga de olhos brilhantes que dançam no rosto está agora com um semblante mais descontraído, ambos têm uma aparência mais limpa e cuidada.
Por enquanto, não voltaram a viver na rua. Estão em casa de amigos, com uma senhora muito idosa, o que, é claro, tem as suas complicações.
Ela anda sempre atrás dele, para que ponha Biafine nas queimaduras das mãos.
Deve colocar a pomada umas quatro vezes por dia, no mínimo, na opinião dela, e, presumivelmente, dos médicos. Especialmente quando o tempo começa a ficar mais quente.
“Amanhã vai chover, por isso ele não vai pôr. Mas agora, felizmente, já começa a ouvir-me”.
As assistentes sociais “impecáveis” já lhes trataram de tudo, para que possam refazer os documentos que arderam no incêndio, e tentar encontrar um trabalho ou obter o rendimento mínimo.
Foi necessária uma tragédia, e alguns ferimentos médios, para que, finalmente, saíssem da rua?
Noutra rua, noutro lugar, um ser humano circunspecto, de olhos azuis, que poucas vezes deseja comida e nunca aceita roupa, por mais que esteja um frio de rachar, pronuncia seis palavras para fazer um pequeno alerta útil e bem intencionado.
Alguém deixou um saco de roupa em bom estado, ao lado do caixote do lixo. Ele, naturalmente, não considera precisar dela. Mas avisa, para o caso de os voluntários quererem levá-la, entregando-a a alguém que dela necessite.
Decidem que o saco ali abandonado lá continue e siga o seu ciclo natural de vida, à espera de eventuais mãos que o descubram e lhe atribuam utilidade.
Num clássico das relações das cidades com as suas populações de Pessoas Sem Abrigo, parece que a Mango da Avenida, mais perto de abrir as suas futuras instalações, encheu o seu exterior de taipais de madeira, “enxotando” dali (deverá ter sido esse o sentimento da multinacional) os homens que lá dormiam.
O profeta da calçada não se encontra no seu quadrado de passeio, onde muitas palavras sobre religião, filosofia, política, história, geografia, economia e humanidade se trocaram ao longo de meses.
Aparentemente, alguém decidiu que devia ser retirado das ruas e acolhido numa instituição, embora ele não pensasse dessa forma. É certo que a saúde deste ancião não recomendava que dormisse no chão da cidade.
Num raciocínio percebido por ele e incompreendido pelo resto da espécie humana, isso não lhe interessava nada. Ali, considerava-se livre, e o mais feliz de todos os Homens.