Passeava pelo Barreiro, no início da década de 1990, na companhia do meu grande e melhor amigo, como habitualmente… Os ferrenhos comunistas da cidade operária e os socialistas que também por lá havia andavam de ânimos acesos, na segunda campanha presidencial de Mário Soares.
Embora a cidade ainda pertencesse ao PCP sem grande margem para dúvidas, o que é facto é que quando o presidente socialista em tentativa de reeleição lá apareceu, foi a loucura, depois de um primeiro mandato em que conquistou as inimizades da praxe mas também, ao mesmo tempo, um sólido culto nacional que o levou a ser reeleito confortavelmente.
Ou seja, mesmo com inúmeros detractores da sua figura, o Barreiro estava em festa, e os muitos e sonoros apoiantes vieram todos para a rua. A comitiva passou por nós num bonito e invejável Audi escuro e reluzente. Com menos de 20 anos, não tinha uma noção realista do papel que este político desempenhara na segunda metade do século XX.
Ingénuo e contestatário, achei que havia por ali muita ostentação. Tive a infeliz ideia de gritar “chulo”, e mais qualquer coisa pior. As gentis, determinadas e muito socialistas velhinhas que militavam no Movimento de Apoio a Soares Presidente (MASP) não deixaram a defesa do seu Chefe de Estado por mãos alheias. Levei com os paus das bandeirinhas do MASP na cabeça, e retirámo-nos estrategicamente.
Durante as presidências abertas, figura que ele inventou para estar mais próximo do povo, fazendo a vida difícil a Cavaco Silva, primeiro-ministro totalmente de direita que não fez nada de especial pela democracia mas ajudou muitos amigos a enriquecer, deslocou-se ao Barreiro.
Mini-jornalista local jovem e inexperiente, recordei-lhe uma crítica de Pacheco Pereira, que, ao contrário do que acontece hoje, na época ainda podia considerar-se de direita. Soares despediu-me com uma frase qualquer que queria significar que aquilo não tinha importância nenhuma.
Estudei, em notícias, artigos, perfis e entrevistas, a vida d’“O Bochechas”, e das várias figuras políticas que marcaram a nossa vida, da década de 1970 à década de 1990, período em que se consolidou a nossa democracia.
O homem que foi Ministro dos Negócios Estrangeiros, primeiro-ministro (repetidamente) e Presidente (ídem) foi um dos últimos grande políticos portugueses, com Francisco Sá Carneiro, Álvaro Cunhal, Adelino Amaro da Costa e Adriano Moreira.
Houve um conjunto de homens, de uma fibra muito própria, que arriscaram a sua vida e tudo o mais para deixarem para trás as brumas obscuras do fascismo e colocar de pé em Portugal um sistema político diferente: Onde existisse democracia e liberdade. Soares foi um deles.
Depois, participou activa, convicta e corajosamente na consolidação desse sistema. Não deixou que os comunistas transformassem a nação em mais um país satélite da União Soviética, um estado de inspiração estalinista. Não permitiu que os militares tornassem Portugal um regime militar anti-democrático de teor altamente duvidoso.
Há quem diga que Salazar era um grande estadista e economista. Como, se milhares morriam de fome ou na prisão, por não concordarem com isso? Há quem tenha ficado ressabiado com a descolonização. Que outra descolonização era possível fazer, quando a colonização se prolongou no tempo, até ao impossível e impensável? Como e com que meios?
Um regime fascista cego e parado no tempo, e os excessos da revolução, como as nacionalizações, levaram o país à bancarrota, que foi o que Soares enfrentou quando chegou ao poder.
Além de nos afastar da sovietização e da militarização, conseguiu, com a sua habilidade diplomática, a ajuda externa de que o país precisava para não mergulhar no caos. Empurrou-nos para dentro da Europa e da Comunidade Económica Europeia, para que não fôssemos um calhau perdido no Oceano.
Governou como pôde, e não parece que fosse nada fácil fazer melhor. Era um homem, que tinha defeitos e cometia erros como todos os homens, e esteve tanto tempo em funções de alta responsabilidade que impossível seria não errar, e bem à vista de todos. Para mim, que sou eleitor do partido Pessoas Animais Natureza, foi o último grande político do século XX.