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Ana Karenina e a fita-cola

É muito, muito obsessiva. E não estou a falar de Ana Karenina, a quem, talvez, também pudesse aplicar-se esse epíteto. Falo da Amélinha, aliás a “Gááta!!”, único som que reconhece como o seu nome. Obceca-se com frequência e facilidade, por variados motivos ou estímulos. Metais. Plásticos. Sacos. Papéis. Comprimidos.

Às vezes, quando tenho que lhe dar a medicação, começo por tentar enfiar-lha na garganta mas acabo por deixá-la a seus pés. A pirralha, que acha piada a estas reduzidas cápsulas eventualmente apetitosas (o que já se revelou muito perigoso noutras ocasiões), acaba frequentemente por engolir o pequeno fármaco acastanhado sem necessidade de persuasão. Hipoteticamente, o dela e os dos meus outros gatos.

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Tenho na minha estante uma edição de 1946 de Ana Karenina, obra eterna e imortal de Tolstoi que povoou e iluminou a minha infância, a minha juventude e a minha vida. Com os seus setenta anos de existência, esta preciosidade literária de gloriosas memórias está, na verdade, a desfazer-se.

Não sendo bibliotecário e tendo apenas uns 400 livros, sei, pelo menos, que a fita cola não é um material de restauração livresca muito apropriado ou eficaz. É também o único que tenho. Assim, este precioso e amado volume está coberto por sucessivas camadas do dito material auto-colante mas não restaurativo, para que o que resta desta maravilhosa obra prima possa manter-se minimamente unida e coesa.

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A questão é que, sendo o plástico a obsessão número um da “Gááta!”, o que é facto é que a fita-cola, na mente pragmática e empreendedora da minha bebé felina, também cabe exactamente na mesma categoria.

Já vão uns bons anos desde que vivo nesta casa com a irrequieta e enérgica Amélinha, o Chiquinho, o Jeremias e a Matilde. E com o referido romance, que se encontra comigo há mais de três décadas. Mas por estes dias, a minha esguia pantera negra decidiu que andava a deixar os seus créditos por patas e dentes alheios. Dedicou-se a atacar com fúria Ana Karenina, e a camada protectora que cobre a sua lombada.

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Tirei o livro da estante.  Voltei a restaurá-lo. Recoloquei-o lá. Várias vezes tal sucedeu, e sempre de novo o atacou. Equilibrada nas patinhas de trás e encostada sobre os outros livros, enfiava a cabecinha e as patinhas da frente por trás, para fazer cair Karenina e se dedicar a ela com fervor. Dei com ela a comer pedaços de fita-cola, e, naturalmente, ainda que seja grande o meu amor a Ana, não se compara à minha paixão por Amélinha…

Virei as páginas ao contrário, lombada metida para dentro. Coloquei um outro livro à frente, a tapar. No dia em que esta mania persecutória se manifestou com maior furor e intensidade, deixei até a célebre e atormentada aristocrata russa fechada à chave, para que a minha amada de quatro patas não voltasse a entrar em conflito implacável com a sua rival do século XIX.

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Agora, parece-me, já regressámos à normalidade, e Ana encontra-se de novo no seu lugar de sempre. Continua virada ao contrário e coberta por outra obra mais contemporânea e, comparativamente, sem qualquer resquício de História a marcar a sua existência. E eu, atento e vigilante, aguardando os próximos capítulos…

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