Blazer bege, camisa azul desabotoada por cima, calças de tecido, bengala escura, o homem de 80 e muitos anos cambaleia e abana fortemente, dir-se-ia que vai cair a qualquer momento e que não faz a menor ideia do que está a fazer ali. Mas tem um objectivo muito concreto. As outras pessoas estão há mais de três horas na fila, mas, consensualmente e sem chegarem a trocar palavras entre si, dizem-lhe para passar à frente.
A custo, chega ao balcão a que tinha de se dirigir, lamentando-se com gestos e expressões do rosto mas sem que saiam sons da sua boca. Mantém o mesmo ar desorientado que, até agora, o trouxe ao sítio certo.
Começa a manifestar-se de forma audível, mas ainda não são propriamente palavras. As funcionárias, a acordar e também elas confundidas, observam com os olhos húmidos, emocionadas e tristes com aquele espectáculo.
Uma lança a outra que vai a passar, mais alto à segunda vez: “Óh Francisca, tira aí uma senha a esse senhor! Tira aí uma senha a esse senhor!”. Já lhe tinham dito a ele para fazer isso, mas o velho senhor estava demasiado perdido.
Com o precioso pedaço de papel na mão, dirige-se ao balcão e senta-se. Quem o atende tenta perceber a situação. “Sim, mas então diga-me lá o que quer. Diga-me lá o que quer”. Depois de algumas frases que soam a “olhe, se faz favor. Olhe, por favor”, começa a explicar-se.
Ouvem-se então conjuntos de palavras que incluem “o Bilhete de Identidade” e “os correios”, repetidamente. O documento de identificação caducou, e, nos correios, embora todos os funcionários o conheçam há anos e o recebam sempre mensalmente, deixaram de lhe pagar a pensão.
Para a fila que está lá fora, cujos ocupantes têm menos idade e não sofrem das limitações inevitáveis que o atingem, o dia começara muitas horas antes. Pelo menos para um deles, o primeiro a chegar.
Recebe esta aventura matinal com sorrisos e simpatia. Começa a conversar tranquilamente, em inglês, e relata a sua situação. Insiste para que me sente na sua pasta de documentos, para não estar de pé, ao frio.
Revela que a vida está difícil para os que vêm do Bangladesh, da Índia e do Nepal. De países onde a existência humana nada vale e a sobrevivência é um milagre.
Revela que antes, quando chegavam para vir trabalhar em Portugal, mostravam “o dedo” para a impressão digital e os documentos (passaporte com visto) e, ao fim de pouco tempo, obtinham o número da segurança social.
Agora, conta que são meses de espera. Dois, três, seis, mais… Acrescenta que, para poder trabalhar em Portugal, têm que pagar mensalmente 180 euros à segurança social. E que, enquanto vão esperando pelo cartão da segurança social, esses valores mensais se vão acumulando.
“E agora só nos dão o cartão da segurança social se tivermos chegado de avião. Se viermos noutro transporte não nos dão o cartão”. Entristece-o o facto de ele e muitos outros da mesma região do mundo estarem aqui ilegais.
Comenta que estas são pessoas que trabalham e fazem mexer a economia. Têm lojas, trabalham em comércio, têm empregados, compram e vendem. “Isso é bom para a economia portuesa. E vendemos os produtos mais baratos. Mas não resolvem a nossa situação”.
Mesmo assim, depois de mais de três horas ao relento, entra na repartição com um sorriso de orelha a orelha. Embora não perceba “porque é que os portugueses vêm para as filas tão cedo. Se viessem às oito e meia, não precisávamos de chegar antes das cinco”.