Cinco da madrugada, certinhas, e são cinco utentes à porta da Loja do Cidadão. Um grupo de quatro rapazes asiáticos simpáticos e bem dispostos, e eu, em quinto lugar. Eles entretêm-se e divertem-se a jogar algo parecido com o Super-Mário, no tablet.
O sexto homem, de ar saudável e descontraído, chega a seguir, de manga curta e calção, soltando palavras de poucas sílabas e queixando-se do frio e do vento da manhã. Percebo, mais tarde, que veio de carro. Estacionou a umas dezenas de metros, e passa lá dentro a maior parte das três horas e meia de espera.
De vez em quando aparece, já com uma camisola confortável, e depois de ter descansado mais uma hora no quentinho do automóvel.
Chega mais um homem, e depois uma mulher. Senhora de alguma idade, origens africanas, gordinha e gentil, trouxe um cobertor e uma cadeira de praia.
Ao lado, senta-se, mas no chão, sem cadeira, uma jovem loira, bonita, aparentemente da Europa de Leste. A mulher prevenida oferece-lhe um pedaço da manta. Ela responde: “nóum précisa”. A amiga improvisada acomoda-se na cadeira. Durante algumas horas a rapariga vai lendo um livro no smart-phone, antes de cobrir com a roupa os braços, as mãos, a cabeça e a cara, e adormecer.
Uma comunidade auto-organizada
Algumas famílias e grupos ocupam, em conjunto, uma “vaga” individual na fila, no sistema de organização universal utilizado por esta comunidade temporária. Alguém vem para as primeiras horas, mais tarde é substituído pelo filho, o irmão ou o amigo, e ainda pode haver uma terceira pessoa para preencher depois o mesmo lugar. Ninguém se importa.
Outro homem traz uma cadeira, mas não a usa. Cede-a a uma senhora idosa, débil e muito pesada, pensando, provavelmente, que é um crime alguém assim ter que passar por esta espera matutina de três horas e meia na rua.
Por volta das oito, um homem chinês, possivelmente de uma loja da mesma nacionalidade, vem com umas rodelas de madeira, uns artefactos asiáticos. “Para a dor de cabeça. Conhece? É muito bom, muito bom!”. Propõe estes objectos a toda a gente. Ninguém parece aceitar. Os rapazes bem dispostos que chegaram antes de mim olham-me e riem-se, com gestos faciais muito expressivos, divertidos e surpreendidos com aquela tentativa de negócio.
“Filha, acorde, já está quase na hora!”
A senhora da cadeira de praia acorda a jovem loira, para que esta possa recompôr-se e retocar a maquilhagem: “Filha, acorde, já está quase na hora!”.
Já em cima das oito e meia, há centenas de pessoas acumuladas em torno do edifício. Chega um jovem de barba, chapéu, óculos, calções e T-Shirt. Vai colocar-se perto da pessoa número 10, ou 20, pretendendo saltar à frente das centenas de utentes. Quase é linchado, verbal e colectivamente.
Mostra-se extremamente surpreendido, diz que é a primeira vez. Vai lá bem para longe, para o fim da fila interminável, mas os protestos ainda continuam durante alguns minutos. Os meus companheiros do lado começam outra vez a rir-se, continuando a dizer tudo com os olhos e o rosto, sem precisar de palavras.
Oito e meia. Abrem-se as portas. O homem que, em vez de passar as três horas ao relento, esteve quase sempre aquecido e confortável dentro do carro é o sexto na ordem geral, mas o primeiro no grupo dos que vêm renovar o Cartão do Cidadão. Entra, com ar orgulhoso, importante e muito apressado: “Bom dia! É para renovar o Cartão do Cidadão!”.