Descobriu que aquela longa e demorada viagem podia ser feita de comboio, nessas lentas e pesadas carruagens que circulavam do outro lado do Atlântico há mais de meio século.
Teve azar, porque a composição descarrilou. E para que viessem máquinas, funcionários e material para a reparação, seria preciso esperar vários dias.
Havia uma mulher que viajava nas mesmas circunstâncias. Começaram a falar, a falar, mais e mais. Convidou-a para ir dar um passeio, ela aceitou e continuaram a dialogar.
Já estava sujo e cheio de pó, depois de tantas peripécias. Chegaram a um rio. Perguntou à acompanhante se podia tomar banho.
Respondeu que sim, que era com ele. Algum tempo depois sugeriu-lhe que ela fizesse o mesmo. Começou por não aceitar, mas após muita insistência disse que sim.
Foram-se aproximando cada vez mais. Acabaram por fazer amor. 50 anos depois U., cego e com um quadrado de chão por morada, conta que quis oferecer dinheiro à rapariga mas ela não aceitou.
Tinha-se entregue a ele por simpatia e não por razões materiais. Relata que, na adolescência, perdeu a virgindade com mulheres da vida em Espanha, onde nasceu.
Muito anos mais tarde, quando a sua amante o denunciou falsamente como comunista à ditadura do Brasil, onde vivia então, foi dar aulas de Psicologia. A directora queria que ele passasse uma amiga no exame.
Foi absolutamente rigoroso, não lhe deu nem um segundo a mais do que aos outros alunos. E ela chumbou. Atitude arriscada para quem já não era bem visto pelo regime.
Revela que, há pouco tempo, uma das instituições que lhe levaram comida durante muitos anos deixou de o fazer. Mas não ficou triste ou irritado.
Se alguém nos deixa ficar em sua casa durante uns quantos meses e depois nos diz que temos que ir embora, vamos ficar chateados? Não! Ficamos reconhecidos por todo esse tempo em que nos alimentou ou nos deixou viver sob o seu tecto.
Vai partilhando estes pensamentos enquanto duas raparigas preocupadas e simpáticas o tentam convencer a tratar os seus problemas de saúde num hospital.
Viver na calçada aos 85 anos, cego e em pleno Inverno não é pera doce. U. vai conversando, ouvindo e recusando as ofertas de ajuda, que lhe são feitas ao longo de cinco horas.
Considera que é da rua, que não tem que estar recolhido, tratado e protegido em qualquer instituição. A amiga diz-lhe que é teimoso. Responde: Sim, mais do que você!