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Não comia há 24 horas

“Eu vi!”.

“Viu o quê? Alguma coisa no facebook?”.

“Não. Vi-o a falar com um homem sem abrigo, na sua pausa de almoço, sentado ao lado dele a ouvi-lo com atenção”.

“Ah, sim, já o conheço há muito tempo, gosto bastante de conversar com ele. E tentar ajudar estas pessoas passa antes de tudo por dialogar com elas e criar relações”.

“Sim, mas nem toda a gente percebe isso”.

Depois destas observações, conta-me a sua própria história. Também passou por uma situação difícil e foi apoiado por uma instituição de solidariedade, que o ajudou a reerguer-se.

O problema é que, há três anos, o Governo decidiu fazer um corte profundo nos programas usados por algumas IPSS para reconstruir a vida destes homens e mulheres.

Se antes era possível fazer um contrato de trabalho de três anos, receber o ordenado mínimo e ter subsídio de férias, de Natal e direito à prestação social de desemprego (caso depois desse contrato não conseguissem uma nova colocação), agora já não é assim.

Estes vínculos contratuais reduziram-se a um ano, a remuneração desceu para 430 euros e os beneficiários deixaram de ter direito a subsídio de férias, de Natal e de desemprego, se precisassem de recorrer a ele no final do contrato. Critica esta mudança profunda e deseja-me bom fim-de-semana.

Horas depois, encontramos o mesmo amigo com quem me tinha sentado, dias antes, a ouvir as histórias da sua vida.

Observa que os recursos do planeta são finitos. Dependemos muito do petróleo, e esse combustível vai acabar um dia.

Quando isso acontecer, como vão voar os aviões? As outras fontes de energia não chegam para abastecer as aeronaves, quando atravessam os continentes e oceanos transportando as pessoas.

E os camiões e comboios, como vão circular e transportar as mercadorias? Um camião poderá usar outro combustível, mas será um veículo muito diferente”.

Ficamos a saber que não comia há 24 horas. “Bem, agora vou jantar. Também tenho direito”, diz, lavando as mãos com água enquanto se prepara para fazer isso mesmo. Damos-lhe mais um saco de comida e um segundo iogurte.

O lacticínio contido no pequeno frasco de plástico faz também as delícias de um arrumador que encontramos no centro da cidade. Aos 40 anos já é avô e mostra, deliciado, as fotos da bebé.

Partilha as imagens das suas duas filhas. Uma deixou-o um pouco triste:

Antes era tão linda, tão feminina. Agora, depois de ter ido estudar para outro sítio e fazer novas amizades, mudou completamente. Veste-se e corta o cabelo à rapaz. Está muito mais masculina. Antes era mais bonita”.

Sublinhamos que o importante é que a rapariga seja feliz e se sinta bem e entregamos-lhe o desejado iogurte…

Dentro de um saco igual ao que foi oferecido, pouco antes, ao efusivo amigo que vive à frente de uma garagem. Quando chegamos ao pé dele está mais que irritado.

Precisava de urinar, eventualmente nalgum café, e não o deixaram. Gesticula e fala em voz alta. Ao longe, abanamos o saco para que o veja. Os gestos e imprecações detêm-se imediatamente.

Ah, não se preocupe! Não estou chateado com vocês, não!”. Explica o que aconteceu, agradece a comida com a simpatia de sempre e diz-nos boa noite.

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