A Têtê anda preocupada por minha culpa. A questão é que nós nascemos no mesmo dia, mês e ano.
Ela acha que duas pessoas que tenham chegado ao Planeta em simultâneo partilham o Anjo da Guarda. E isso é um problema. Passo a explicar.
Espetei-me num Morris Marina a 160 à hora, num Clio vermelho e noutro azul, a velocidades semelhantes, múltiplas vezes.
Enganei-me a preencher uma declaração de IRS, e, por isso, a minha dívida foi multiplicada por cem.
Fiz uma pega de caras a um Citroën dois cavalos e fiquei vivo. Caminhei sobre um muro à beira de um precipício e sobrevivi. Atravessei (ou pelo menos assim me pareceu na altura) várias portas e paredes em poucas horas.
Entrei com uma arma no aeroporto de Beirute. Ajudei um terrorista (segundo alegados agentes policiais quenianos). Fiz atrasar um avião egípcio comigo lá dentro.
Dei um passeio a pé sozinho em Luxor, durante uma hora, numa altura em que nunca tinha viajado na vida. Percorri o Libano, a sós, de uma ponta à outra.
Fui arrastado, também sozinho, para dentro de um bar de actividades recreativas, a poucos passos do Moulin Rouge.
Passei várias vezes de uma varanda para outra, à altura do terceiro andar. Estive desempregado, sem subsídio de desemprego, com uma casa, um carro e uma asa de parapente para pagar.
Andei milhares de vezes com o carro na reserva, já mesmo “nos vapores”. Pronunciei, influenciado pelo conteúdo de vários copos, palavras pouco pacíficas, com o cabelo rapado e rodeado de pessoal de bairros difíceis.
Estive, dentro de uma carrinha de safari, à frente de um elefante furioso. Saltei, numa noite de loucura juvenil, o portão de um castelo.
Durante cinco anos, fui diariamente perseguido por uns mânfios que embirraram comigo, até ser salvo por um tipo que era mais louco e perigoso que eles.
Fui acusado de ter uma dívida (fictícia) de cinco mil euros à Segurança Social.
Um Anjo da Guarda que se proponha a tarefa de me proteger não sabe no que se está a meter. É um trabalho a tempo inteiro, 24 horas por dia, sete dias por semana.
Ser-lhe-á impossível atender, simultaneamente, a outra pessoa, que tenha nascido no mesmo dia e hora que eu, como a Têtê. Compreeendo a preocupação dela.
Se existe vida depois da vida na minha vida, já gastei todos os seus créditos. Mesmo que tenha tantas existências quanto os felinos.