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Os que já não existem

O fogo e o ouro dos primeiros raios de sol emprestavam o seu brilho às gotas de orvalho frio que caíam na madrugada. No primeiro andar de uma casa envelhecida, ouviam-se as notas tímidas de um piano desafinado.

A aluna da escola de música lia a pauta à luz da vela e treinava intensamente para o exame. Sonhava com um baile de jovens ociosos que certo dia fora encomendado por um sultão árabe para se distrair nas suas longas horas de solidão, depois de observar a constelação de Andrómeda a partir do seu quarto.

No adro da Igreja, sombras nefastas perpassavam pelas paredes. Era um grande homem, comentava a multidão que se acotovelava junto às arcadas.

No centro da sala, o féretro brilhante e acetinado. Ao lado, lírios e rosas brancas simbolizando a paz de quem partiu. À porta, amigos e conhecidos cruzam-se enquanto uns entram e outros saem.

Os colóquios são os que a ocasião inspira. Um sujeito de grande sobrancelhas descreve o desaparecimento de um primo e uma tia, ambos levados na flor da idade.

Ninguém está livre dela. Noutros tempos, as pessoas eram extintas por meia dúzia de fatalidades ou circunstâncias. Mas no novo século, a quantidade de males que apagam a vida parece infinita.

Tentando varrer todo esse negrume, dois funcionários de meia idade recordam os tempos da juventude, aqueles em que o próprio defunto se encontrava no auge dos seus dias.

Os lugares onde jogavam às cartas, os bares que os acolhiam na noite escura, a boémia das horas de estudante.

Entra mais um parente, deixando um comentário oportuno. Olhe, deixou de sofrer. É isso que importa.

Agora, aquele que era um grande homem já não existe. É tão real como a nuvem de cinza lançada sobre a estrada, ou o pó de que são feitos o sol e as outras estrelas.

Não é bem assim, responde outro. Viverá sempre no coração e nas memórias daqueles que o amaram…

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