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O diário do Natal que não aconteceu

Aquela senhora de voz rouca e ar austero não era alguém de quem parecesse muito fácil gostar, mas isso foi mais uma coisa que fui aprendendo com o passar do tempo. Oculto por aquele espírito que parecia zangar-se facilmente, havia um enorme coração de manteiga que não se deixava ver.

Claro que, se eu também começasse o dia irritado ou demasiado acelerado, era provável que desatássemos à traulitada por alguma coisa que não tinha mesmo nenhuma importância. Ao almoço, tudo desaparecia num instante.

Começou a ficar com a garganta particularmente atacada, mas não se decidia a ir ao médico. Quando finalmente o fez, descobriu um problema que já estava a tornar-se demasiado grave.

Nos meses que passou internada, e em que a visitava quase todos os Domingos, conversámos mais do que durante a vida toda. O que mais a entristecia era não saber se alguma vez ia voltar a ver o seu gatinho, que ela amava absolutamente.

Isso para ela era pior do que ter sido abandonada naquela situação pela sua cara-metade, algo que ela aceitou como um facto natural da vida.

Impressionou-me ir ter com ela uns dias antes do Natal e ter dado acidentalmente com umas páginas do diário dela, junto àquelas que ela me tinha mostrado de propósito. Nestas outras, que não eram para ser vistas por mim, descrevia ao pormenor a quadra natalícia que só ia acontecer daí a umas semanas. A festa, as visitas, a chegada da sua velha mãe, as refeições da época, os presentes. Quando me fui embora nesse dia, perturbado, não sabia o que havia de pensar.

Poderia parecer estranho que eu, um dos colegas de quem se tornou próxima neste período, não tivesse ido depois, no fim, prestar-lhe as ultimas homenagens.

Não é estranho. Para mim, o importante foram os colóquios dominicais que tínhamos quando estava internada. Diálogos fortemente enriquecedores para ela e para mim. Senti que, para ela, o mais relevante também foi isso. Até pelo brilho que lhe descobri no rosto, um dia em que tive que voltar atrás porque, com a minha proverbial distracção, me tinha esquecido de qualquer coisa, não sei o quê.

O que guardo comigo são essas trocas de palavras domingueiras, em que contámos toda a nossa vida um ao outro, e parecia ser isso que ela desejava na altura. Teria sido isso que ela também levou consigo, lá para o outro lado, embora nem eu nem ela acreditemos muito que existe alguma coisa depois disto. Até sempre, amiga.

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