47 anos

47 anos. Não sinto o peso da idade. Trabalhei 31 anos como jornalista, estive um ano e meio desempregado e agora encontro-me num call center.

Numa empresa com um ambiente multinacional e multi-cultural onde todos se vestem, penteiam e agem mais ou menos como se estivessem em casa.

Tenho colegas simpáticos e prestáveis, chefes que nos ajudam a lidar com as situações e uma líder de equipa que faz tudo, mas mesmo tudo para que consigamos satisfazer os nossos utilizadores e sentir-nos bem na nossa pele.

Tenho os melhores pais do mundo e os gatos mais ternos e carinhosos que se pode imaginar.

Levanto-me, dou a alimentação e os medicamentos aos pequenotes e vou para a minha corrida diária de uma hora.

Caminho meia hora junto ao rio, entre camones e lisboetas. Leio as notícias do dia e vou ouvir os membros da comunidade, que contam connosco para perceber os nossos serviços e tirarem deles o maior benefício possível.

Chego a casa e deparo-me com os meus companheiros ronronantes. Esperam o jantar, a medicação e muito, muito mimo para compensar a ausência do seu humano durante o dia.

Algum tempo depois, vêm enroscar-se a mim, procurando o calor do meu corpo e fazendo aqueles sons felinos que servem de canção de embalar, proporcionando tranquilidade e bem estar até de manhã. Após umas sete horas, começa tudo de novo.

E quem se pode queixar? Só temos que agradecer a sorte que temos.

O relógio

Eram oito da manhã e já corria havia uma hora. Descia em grande velocidade a rampa virada para o rio, um salto aqui, um desvio ali…

De repente dou comigo a raspar no chão, três ou quatro esfoladelas e umas dorzitas superficiais. Levantei-me e acelerei. Coisas de desportistas amadores.

No final da prova contra mim mesmo, fui ver como estava o meu tempo. Nada. Um pequenino écrã em branco no meu pulso.

O Casio que funcionava tão bem havia mais de três anos, medindo todos os dias os minutos gastos no exercício matinal, entregara a alma ao criador.

E agora, como avaliar a minha corrida amanhã? Era feriado, dia de trabalho a atender chamadas, pouco tempo e menos opções para resolver o problema.

Antes de apanhar o metro, uma ronda pelas lojas asiáticas da estação. Vale a pena comprar um relógio, de preferência com cronómetro? O preço compensará? Irá funcionar bem e durar?

À hora do almoço, e no regresso a casa, o dilema exprime-se nas montras dos comerciantes orientais que abrem as portas nestes dias mortos. Nada do que se apresenta parece valer o pouco dinheiro que custa.

No final do dia, volto ao ponto de partida. O senhor indiano da estação, que me percebe pior do que eu a ele.

Olho para um objecto preto, grande, com um ar sólido. 12 euros. Quer que leve em verde. Não, eu gosto de preto. Não há problema, tem aqui um preto.

Muito bem. Pago, esperando não ficar desiludido. Percebo depois que até tem cronómetro e tudo.

A bracelete tem um sistema de encaixe que me leva a perder cinco minutos cada vez que o tiro do braço. Acabo por cortar a ponta da pulseira, para acabar com essa questão.

Os números são enormes, bem visíveis, como convém a um corredor míope.

Já lá vão 15 dias e continua a funcionar na perfeição. O tempo dirá se esta foi uma boa opção para contar as horas e as unidades em que se dividem.

O meu gato e o pássaro da vizinha

Enquanto guardava as compras, apercebo-me de que a minha pequena pantera esguia e ternurenta, a “Gááta!!” não andava à minha volta a atacar os sacos de plástico, as batatas fritas, os cajus e o pão fresco trazido do supermercado… Não estava em lado nenhum.

Começo a ouvir uns miados distantes e confusos. Aquele ser negro e inquieto estava à porta, às escuras, no espaço entre o meu apartamento e o do vizinho. Voltou para dentro a correr e a ronronar, preocupada por ter perdido a oportunidade de participar nas arrumações.

Desta vez correu tudo bem, mas nem sempre é  assim. Um belo dia, quando levava para dentro meia dúzia de objectos trazidos no elevador, os meus quatro felinos dedicavam-se à mesma actividade, passeando entre o meu tapete e o da professora que vive à minha frente.

De repente, o marido abre a porta. O Jeremias, o meu gato-cão demasiado sociável e interessado em pessoas desconhecidas, entra pela casa alheia adentro.

O seu habitante grisalho e bem disposto fica de repente todo corado. “Ah, é que eu tenho um pássaro!”. Já imaginava a pequena ave caseira nos dentes do meu patudo curioso e meio doido.

Entramos também, atrás dele. A docente, nem vi se estava despida ou vestida, tal a pressa para salvar a sua frágil mascote da minha.

Peguei neste companheiro ronronante de cinco quilos, levei-o e fartei-me de ralhar com ele, tentando não me rir com a situação. Daí para a frente passei a ter mais cuidado com estas entradas e saídas, a bem da vizinhança.

Mas há sempre um dia em que nos distraímos…