O general que não sabia conduzir

Circulava tranquilamente pelas avenidas do Rio de Janeiro no seu automóvel, na saudosa década de 1960, ao som dos acordes da Bossa Nova, que no rádio alternavam com Elis Regina e Caetano Veloso.

À frente outro carro, em velocidade regular e bem dentro da sua faixa, cumprindo todas as normas do trânsito carioca. De repente, um estrondo.

Contra aquele que ia à frente choca um terceiro, que vinha fora da faixa, descontrolado e acelerado para se desviar de um obstáculo, acabando por interceptar violentamente o desgraçado que lá ia na sua vidinha sem esperar nada daquilo.

Há uma certa comoção, os dois saem e falam. O infractor era um general, a ditadura militar comandava o país com mão de ferro. U. assistia a tudo aquilo, nervoso e irritado.

Era óbvio que o inocente ia ser transformado em culpado, e vice-versa. Observa com enorme atenção e interesse. Os dois acidentados dirigem-se para a esquadra.

A testemunha acaba por segui-los discretamente. Chega ao posto e ainda a discussão decorria, na presença de agentes. O dirigente da esquadra era uma alta patente militar.

Para aquele cidadão anónimo e distante das lutas políticas, isso fazia a diferença. Seria um homem com alguma educação e capacidade para ouvir…

Foi meter-se tranquila e civilizadamente na conversa e ofereceu-se para relatar o sucedido. Descreveu, com todos os detalhes, como o BMW se tinha enfiado no Volkswagen Carocha.

Falaram e falaram. O responsável que ouvia as três versões, duas das quais coincidiam e desempatavam a questão, acedeu a oficializar aquilo que lhe pareceu ser a verdade.

O infractor ficou a deitar fumo pelos olhos. U. decidiu que, depois de tudo ser formalizado e arquivado, e enquanto ainda estavam a ganhar a parada, era altura de ele e o seu novo amigo se porem a andar. Antes que as cartas mudassem de direcção.

Um amor do outro lado do mundo

Naquela cidadezinha brasileira do fim do mundo, há sessenta anos não abundavam as mulheres interessantes. Ele trabalhava na indústria farmacêutica e fazia a divulgação dos medicamentos. Começou a aparecer por ali uma rapariga jovem, bonita e inteligente.

Era a sobrinha do administrador, e todos os dias falava com os vários vendedores. Com ele, demorava-se mais um ou dois minutos. Claro que lhe agradava, mas o homem passava a vida na estrada, tinha que fazer regularmente viagens de dezenas de horas.

Sentia-se como os marinheiros, que têm uma mulher em cada porto mas não se ligam verdadeiramente a nenhuma. Antes de partir para mais uma deslocação a garota ofereceu-lhe um livro, O Homem que Calculava.

Foi-se embora. Foi transferido de Minas Gerais para o estado de Espírito Santo, e as suas deslocações prolongadas passaram a só acontecer uma vez por mês.

Andou de um lado para o outro, prosseguiu com o trabalho, falou com este e aquele, dedicou-se à sua nova vida na recente localização. Nunca mais pensou naquilo.

Um dia pôs-se a folhear o livro, alegadamente escrito por um autor persa, mas na verdade concebido por um professor brasileiro. Folheou, avançou, recuou, degustou as aventuras imaginárias desse homem da antiga Pérsia que fazia contas.

Chegou ao verso da contra-capa, já depois das folhas de guarda, aquelas páginas em branco que inauguram e encerram cada um dos romances publicados.

Ali alojada, ocupando todo o espaço de cima abaixo, encontrava-se uma calorosa declaração de amor. Da rapariguinha que estava lá longe, a horas de distância, separada dele por muitas centenas de quilómetros, e pela nova existência que a empresa lhe oferecera e aceitara de bom grado.

Explica-me que hoje, se for viva, deve ser “uma velha de 85 anos”, como ele (nas suas palavras). Terá tido filhos, netos, bisnetos… Viveu talvez uma existência feliz, intensa, preenchida. Como o meu amigo, que passa os seus dias recolhido numa instituição, sossegado no seu canto, partilhando todas as suas histórias com aqueles que quiserem ouvi-lo.

Confessa-me que ela foi o único e grande amor da sua vida.

“Mas eu tenho que pagar impostos?!”

– Olá, boa tarde, em que posso ajudá-la?

– Fala inglês?

– Sim, sim, podemos falar em inglês.

– Ok. Eu tenho uma casa alugada através da vossa plataforma, e recebi um aviso vosso a dizer que devia registar o aluguer nas finanças da cidade onde está localizada.

– Muito bem.

– Tenho que me registar?

– Sim, pedimos que faça aquilo que é referido no nosso email.

– Mas vou ter que pagar impostos?

– Sim, embora, para que seja devidamente esclarecida, eu vá passar o caso para o nosso departamento especializado nesses temas.

– Mas tenho que pagar? E posso ter que pagar pelos dois anos em que a casa não esteve registada nas finanças?

– Bem, como lhe disse, vou passar o caso para o departamento. Mas nós pedimos aos nosso utilizadores que encarem esta actividade como aquilo que é, um negócio. Um acto económico que está sujeito às normas legais e fiscais do nosso país, independentemente de ser feito através da Internet.

– Ah, mas é que ninguém me avisou em relação a isso.

– Bem, imagine que aluga uma casa sem o fazer través de uma plataforma online. Esse aluguer está sujeito às regras nacionais para essa actividade. Se, pelo contrário, o fizer através de uma plataforma na Internet, esse mesmo negócio também continua a estar enquadrado nas leis do país: O princípio é o mesmo.

– É que ninguém me avisou em relação a isso.

– …

– Bem, eu vou transferir o caso para o departamento próprio.

– Mas eu não sei se quero registar a casa na cidade!! Vai passar-me para as finanças?!?!

– Não, não, não. Vou passar o assunto para o departamento adequado dentro da nossa empresa.

– Ah, está bem.

De volta à rua

– Faz hoje exactamente um ano saí da rua, depois de terem pegado fogo ao sítio onde dormia. E hoje estou de volta à rua.

– Então, o que aconteceu?

– Estávamos em casa de uma senhora de idade, nos arredores de Lisboa. Ela recebia apoio domiciliário de uma associação. A técnica da associação perguntou quem é que estava naquele quarto, enquanto eu e a minha mulher dormíamos. A senhora disse que não estava lá ninguém. Mas depois a funcionária descobriu. Disse que a moradora da casa, por ter ocultado essa informação, ia ficar sem o apoio domiciliário. E nós, perante isto, viemos embora. Ainda não conseguimos arranjar um sítio onde ficar, que nós possamos pagar. Estamos a tentar que a Segurança Social nos dê um apoio suficiente para nós conseguirmos pôr o resto, mas não está fácil. Está tudo cheio, e é tudo caro.

– As coisas hão-de resolver-se. Força e coragem.

A algumas centenas de metros, a equipa da Comunidade Vida e Paz não consegue encontrar o homem que dormia à porta de um velho e desactualizado centro comercial e oferecia explicações sobre tudo o que tivesse a ver com flippers ou a vida militar, ainda que de uma forma um pouco confusa.

– Pois, já não está aqui. Foi colocado numa instituição de saúde… Passava aqui uma mulher diariamente, e ele pedia-lhe sempre um cigarro. Ela dizia que não e ele chamava-lhe tudo e mais alguma coisa, do mais indecente que possa imaginar. Um dia ela disse-lhe que era da policia, chegou aqui com os colegas, levaram-no e foi internado. E lá ficou.

– Uma atitude prepotente…

– Mas ele devia saber que não podia falar daquela maneira às pessoas.

– Bem, talvez. Mas é uma reacção bastante drástica, embora ele devesse ter mais cuidado com o que dizia.

– O problema é que a cabeça dele não funciona como a das outras pessoas. E o resultado foi este.

A nota positiva da noite é que a comida chegou e sobrou para as Pessoas Sem Abrigo apoiadas pela instituição. E as meias, um bem sempre precioso, também. Foi trazido um lote que fazia parte de uma enorme e valiosa dádiva de todos os tipos de roupa masculina, grande parte dela ainda nova e por abrir, feita por uma amiga de um dos voluntários, após o falecimento do pai. Os homens que vão usá-las nos próximos dias agradecem.