Do jornalismo para o call center

O primeiro dia na nova vida de formando do call center começa de forma verdadeiramente inesperada. Às 08H40 encontro na rua o C, que já não via havia décadas.

Jornalista numa rádio, está cansado dos abusos e excessos laborais da profissão. Aproveita os dias de folga para dar aulas daquela que é desde sempre a sua especialidade. Um treino muito prático, sem perdas de tempo.

Nas horas seguintes, conheço uma porção de jovens de muitos pontos da Europa que decidiram vir trabalhar para Portugal. Acordam uma manhã com essa ideia e no dia seguite fazem-se à estrada. Porque não, perguntam eles.

Sendo Lisboa hoje uma capital do turismo mundial, muitas empresas apostam nesses trabalhadores, atraindo pessoas que falem fluentemente uma ou várias línguas estrangeiras. É uma forma de fornecer atendimento a clientes de múltiplas nações, possibilitando que sejam apoiados nos seus idiomas nativos.

Vamos ficar a saber tudo sobre a empresa, o seu cliente para o qual vamos trabalhar e os serviços que fornece. Falam-nos de pessoas que procuram viajar, mas também ser mergulhadas na realidade do país que visitam, não como turistas mas como habitantes locais.

Ou viver experiências totalmente fora do comum. Aulas de desportos de aventura, visitas aos lobos, treinos de cozinheiro na gastronomia nacional… E de outras, que gostariam de obter um rendimento extra proporcionando essas estadias ou momentos únicos.

As duas partes são postas em contacto e aproximadas por uma empresa e comunidade online que existe com esse propósito: a Airbnb.

Aqueles que vão fazer atendimento ao cliente terão como objectivo que todos, tanto hóspedes como convidados, fiquem com vontade de repetir esta opção muitas vezes no futuro.

Outra coisa que também vamos revitalizar é a nossa capacidade para trabalhar em equipa. Com pessoas com quem parecemos identificar-nos de imediato, mas também com aquelas que aparentemente nada têm a ver connosco.

E é assim que começa a minha nova vida…

O fim de um ciclo

Comecei uma formação num call  center, com o objectivo de ficar lá a trabalhar. Assim termina um ano e meio a procurar emprego.

Primeiro, ocupei-me a colaborar com uma nobre e altruísta associação que luta contra o abandono de animais de estimação. Depois, passei o tempo a apoiar uma publicação de fins culturais e bairristas.

Ao mesmo tempo, também dei origem a conteúdos de divulgação dirigidos a pequenas e médias empresas. O livro d’O Cronista está quase pronto, só faltam uns ajustes.

Pelo meio, claro, procurava trabalho todos os dias. Na minha área. Nas adjacentes. E em todas as outras. Laborar por 500 e tal euros, para quem procura, não é muito difícil.

Transpirar por mais uns pózinhos que isso… Já não é fácil. Encontrei algumas vagas (fora do jornalismo, claro) que correspondiam a essa descrição. Mas, naturalmente, eram 70 cães a um osso, e o pitéu ficou para outro.

Depois das primeiras cabeçadas, percebi que o meu inglês precisava de ser revitalizado. Foi o que fiz durante mais de um ano, e foi graças a tal que passei neste último processo.

Neste momento sinto  uma porção de coisas, e algumas nem as percebo bem. Outras, entendo-as. Passei a experimentar menos angústia e vazio em relação ao longo prazo, e uma ansiedade maior face à mudança e às adaptações no imediato.

Não divisava um futuro no meu horizonte e agora vejo que ele pode desenhar-se. Ainda só lhe adivinho as sombras e os contornos, mas já descortino ali qualquer coisa.

Tenho sido bem tratado pela vida, pelas pessoas, pela sociedade. Está na altura de retomar plenamente o meu lugar na comunidade e continuar a contribuir, também eu, para o bem comum.

A desilusão de Hernandez

A carta chegou à abadia e ouviu-se um suave frufru de túnicas agitando-se levemente à esquerda e à direita. No pomar, os amieiros ondulavam com a ventania do final da tarde.

As bagas frescas nos arbustos sobre a terra fria tombaram, ficando à mercê dos ratos e dos cães que por ali passassem. As horas passavam lentamente.

O teor da epístola não viria a ser revelado, um revés embaraçoso para os 12 celibatários encerrados entre quatro paredes. Não se tratava do anúncio de uma profecia cumprida nem da revelação da chegada do Messias.

Lá longe, um século depois, ouviam-se os apitos das sirenes dos navios. As embarcações andavam perdidas no meio do nevoeiro. Na cidade, os transeuntes encolhiam-se de frio e amaldiçoavam o tempo húmido.

Os inúmeros visitantes não se mostravam satisfeitos. Tinham vindo atraídos pelo Sol do estio e acabavam trapaceados.

Um homem sábio continuava sentado à porta de um templo do conhecimento. Tinham ouvido falar dele e da sua luta contra os males do Mundo.

Vinham cada vez mais estranhos, de outras paragens, conhecê-lo. Dez num dia, 15, vinte no outro. Todos queriam ouvir as suas palavras e sentir a sua inspiração.

Uma chegou do teatro e quis falar com ele. Outros disseram-lhe que não devia estar ali sozinho.

Uma moça em idade casadoira levou-o para o primeiro andar de um restaurante. Quis escutar os segredos da vida dele e contar-lhe as suas aflições.

Ele relata-lhe que antigamente, numa outra vida, passava diariamente por um recinto teatral onde a actuação era diferente todas as noites.

Havia sempre belas bailarinas de coxas desnudadas que faziam sonhar os homens que por ali passavam. E mulheres de virtude transitória que pediam um copo de vinho e ofereciam momentos de prazer.

Não lhe custaria pegar num maço de notas e assistir àquele epectáculo de tentação, mas nunca o fizera.

Um dia encontrou o González e o Hernandez. Iam penetrar eles próprios nessa catedral de perdição, e o primeiro convidou-o a ir com eles. O sábio disse que não se importava, desde que cada um pagasse a sua própria despesa.

Depois de muita negociação, e de aceitarem as condições dele, acabaram por entrar. A luxúria da noite seria à medida da imaginação de cada um.

Mas Hernandez teve uma desilusão. Estava convencido que era González que ia pagar a conta dele.

Não foi pelo dinheiro que ela se entregou

Descobriu que aquela longa e demorada viagem podia ser feita de comboio, nessas lentas e pesadas carruagens que circulavam do outro lado do Atlântico há mais de meio século.

Teve azar, porque a composição descarrilou. E para que viessem máquinas, funcionários e material para a reparação, seria preciso esperar vários dias.

Havia uma mulher que viajava nas mesmas circunstâncias. Começaram a falar, a falar, mais e mais. Convidou-a para ir dar um passeio, ela aceitou e continuaram a dialogar.

Já estava sujo e cheio de pó, depois de tantas peripécias. Chegaram a um rio. Perguntou à acompanhante se podia tomar banho.

Respondeu que sim, que era com ele. Algum tempo depois sugeriu-lhe que ela fizesse o mesmo. Começou por não aceitar, mas após muita insistência disse que sim.

Foram-se aproximando cada vez mais. Acabaram por fazer amor. 50 anos depois U., cego e com um quadrado de chão por morada, conta que quis oferecer dinheiro à rapariga mas ela não aceitou.

Tinha-se entregue a ele por simpatia e não por razões materiais. Relata que, na adolescência, perdeu a virgindade com mulheres da vida em Espanha, onde nasceu.

Muito anos mais tarde, quando a sua amante o denunciou falsamente como comunista à ditadura do Brasil, onde vivia então, foi dar aulas de Psicologia. A directora queria que ele passasse uma amiga no exame.

Foi absolutamente rigoroso, não lhe deu nem um segundo a mais do que aos outros alunos. E ela chumbou. Atitude arriscada para quem já não era bem visto pelo regime.

Revela que, há pouco tempo, uma das instituições que lhe levaram comida durante muitos anos deixou de o fazer. Mas não ficou triste ou irritado.

Se alguém nos deixa ficar em sua casa durante uns quantos meses e depois nos diz que temos que ir embora, vamos ficar chateados? Não! Ficamos reconhecidos por todo esse tempo em que nos alimentou ou nos deixou viver sob o seu tecto.

Vai partilhando estes pensamentos enquanto duas raparigas preocupadas e simpáticas o tentam convencer a tratar os seus problemas de saúde num hospital.

Viver na calçada aos 85 anos, cego e em pleno Inverno não é pera doce. U. vai conversando, ouvindo e recusando as ofertas de ajuda, que lhe são feitas ao longo de cinco horas.

Considera que é da rua, que não tem que estar recolhido, tratado e protegido em qualquer instituição. A amiga diz-lhe que é teimoso. Responde: Sim, mais do que você!

O Natal trouxe a felicidade

A vida ficou muito mais saudável para o Chiquinho, a “Gááta!!”, o Jeremias e a Matilde depois do Natal. A sua mamã semi-inglesa, que vive na capital do Império de Sua Majestade, trouxe-lhes prendas espectaculares.

Brinquedos recheados com erva-gateira, uma luva escovadora e uma fonte de água filtrada. Primeiro, esfregaram-se nos pequenos bonecos, morderam-nos, arrastaram-nos, atiraram-nos ao ar e transportaram-nos à velocidade do som de uma ponta à outra da casa.

Depois montei a fonte. Ao princípio não quiseram nada com ela. Claro que a Matildinha teve medo do funcional e silencioso mecanismo. Já a “Gááta!!”, quis brincar e tomar banho nesta preciosa peça decorativa de grande utilidade.

Mais tarde ela, o Jeremias e até a Matilde decidiram-se a usar o instrumento para aquilo a que se destina. O Chiquinho gosta mais de poças, bebedouros e derramamentos de água no chão, que produzem o mesmo efeito.

Deixei os bebedouros secar e azedar e finalmente resignou-se. Para combater a insuficiência renal generalizada cá em casa, já não tenho que ir mensalmente ao Continente buscar dezenas de garrafões de água de Monchique.

Por essa altura, estreei a luva de escovagem. Com a Matilde e o Jeremias não tenho sorte nenhuma, por muito confortável e eficaz que este utensílio seja.

A “Gááta!!” mia, ronrona, vira-se, rebola, tenta agarrar-me a mão envolta em borracha e velcro e consigo extrair-lhe metade de uma bola de ping-pong em pêlos.

O Chiquinho já gostava muito de ser tratado com escovas e pentes. Com esta mudança de método delira completamente. Mia e volta a miar, anda à minha volta, esfrega-se em mim e na luva com prazer indescritível.

Retiro-lhe o triplo dos pêlos do que à “Gááta!!”. Depois passo com um pano húmido e outro seco pelo casaco que a Natureza lhe deu, para que se mantenha bonito, lustroso e hidratado.

Ele continua a fazer ouvir a sua voz, feliz, sentindo-se homenageado e condignamente tratado.

“Brasileiras?! Não, não, nem pensar!!”

– Boa noite!

– Boa noite.

– Espere só um bocadinho que o dono já aparece.

– OK.

– Aliás, o que é que você quer? Não se preocupe que eu sirvo-o.

– Obrigado.

– Eu costumo estar aqui, conheço o proprietário. Já que eu bebo, não custa nada vir cá consumir. Faço-lhe o jeito. Moro naqueles prédios, está a ver?

– Ao pé das arcadas?

– Não é ao pé das arcadas. É mesmo nas arcadas.

– Posso pagar com multibanco?

– Não, só a partir de cinco euros. Mas tem um ali. Vá aqui por trás, não por aí, que é mais longe. Faltam dez minutos para fechar.

– Está bem, mas tenho que ir lá para conseguir pagar.

 

Regressa o detentor do bar e o amigo põe-se a falar com ele.

 

– … e o míudo é amoroso. Gosto muito de crianças, adoro!

– Ah, ainda estás a tempo. Há aí muitas mulheres que querem ter filhos. Ah, ah! Portuguesas não, mas brasileiras é o que não falta.

– Hã? Brasileiras, venezuelanas, sul-americanas? Não, nem pensar! Nem quero conhecê-las. Isto não é racismo. Até podem ser muito boas pessoas, mas não quero nem falar com elas. São piores que as pre… Aliás, que as africanas. Ainda é pior do que África. Não, não, nem pensar!

 

Responde timidamente o interlocutor, com aspecto e sotaque de ser do continente de Nelson Mandela, só para fazer conversa:

 

– Pois, são países com situações complicadas. Não é fácil ser de um desses sítios.

 

Engulo a minha cerveja e regresso ao frio da 12ª noite de Janeiro. O homem não racista continua a beber e a discutir mulheres e etnias com o amigo africano.

A mim, que já conheci alemães, espanhóis, cabo-verdianos, angolanos, brasileiros, chineses, italianos, afegãos, sírios, libaneses, egípcios e muitas gentes dos dois sexos e com todos os tipos de personalidade, fará sempre muita confusão alguém dizer que “os venezuelanos” ou “as habitantes da Cochinchina” são todos assim ou assado.

Eu por mim não tenho mesmo, mesmo nada contra as brasileiras, guineenses, filipinas, japonesas, holandesas ou haitianas. Nem contra nem mais a favor do que em relação a quaisquer outras, ou outros.

O frio das palavras

O fumo separa-se do capitel e desce pela coluna da catedral, enrolando-se em volta do sátiro esculpido por mãos cuja vida há muito se apagou.

O botequim abre as portas ao cair da noite e acolhe hordas de conspiradores que atacam a governação da nação. Os frades oram e prenunciam o dia da chegada do Juízo Final.

Um frio acre penetra nos ossos de quem percorre as avenidas. O mordomo da mansão do governante repara na sebe mal aparada e equaciona as medidas a tomar.

Os dois tribunos defrontam-se na praça pública. “Eu sou mais sério e honesto que tu”, garante um. “Eu é que vou ajudar o povo”, jura. “Mas tu já foste governante”, dispara o outro. “Que fizeste tu? Quem auxiliaste? Só a ti próprio!”.

A população assiste à contenda sem saber o que pensar.

Se nas décadas anteriores poderia ser difícil escolher quais os mais adequados para assumirem responsabilidades no país, quarenta anos após não será mais fácil.

Os homens de poder não são muito diferentes uns dos outros, e quase nenhuns são os que se preocupam na verdade com os interesses dos cidadãos.

E esses ficarão muitas vezes escondidos. A arte da política não é o brio da competência e não coincide com o altruísmo, a vontade de agir pelo bem comum.

A política deste século é o ofício do engano e da palavra bela e sem substância. O político triunfante é o que fala bem e adormece o povo, esquecendo-o assim que se acha nas cercanias do Olimpo.

Não admira, pois, que os poucos que seguiam o debate entre os dois homens ficassem sem saber o que concluir.

Um pouco dizia e menos acertava. O outro lançava frases bonitas. Mas o que havia verdadeiramente atrás desses conjuntos de sílabas que sibilavam melodiosamente…?

Os que já não existem

O fogo e o ouro dos primeiros raios de sol emprestavam o seu brilho às gotas de orvalho frio que caíam na madrugada. No primeiro andar de uma casa envelhecida, ouviam-se as notas tímidas de um piano desafinado.

A aluna da escola de música lia a pauta à luz da vela e treinava intensamente para o exame. Sonhava com um baile de jovens ociosos que certo dia fora encomendado por um sultão árabe para se distrair nas suas longas horas de solidão, depois de observar a constelação de Andrómeda a partir do seu quarto.

No adro da Igreja, sombras nefastas perpassavam pelas paredes. Era um grande homem, comentava a multidão que se acotovelava junto às arcadas.

No centro da sala, o féretro brilhante e acetinado. Ao lado, lírios e rosas brancas simbolizando a paz de quem partiu. À porta, amigos e conhecidos cruzam-se enquanto uns entram e outros saem.

Os colóquios são os que a ocasião inspira. Um sujeito de grande sobrancelhas descreve o desaparecimento de um primo e uma tia, ambos levados na flor da idade.

Ninguém está livre dela. Noutros tempos, as pessoas eram extintas por meia dúzia de fatalidades ou circunstâncias. Mas no novo século, a quantidade de males que apagam a vida parece infinita.

Tentando varrer todo esse negrume, dois funcionários de meia idade recordam os tempos da juventude, aqueles em que o próprio defunto se encontrava no auge dos seus dias.

Os lugares onde jogavam às cartas, os bares que os acolhiam na noite escura, a boémia das horas de estudante.

Entra mais um parente, deixando um comentário oportuno. Olhe, deixou de sofrer. É isso que importa.

Agora, aquele que era um grande homem já não existe. É tão real como a nuvem de cinza lançada sobre a estrada, ou o pó de que são feitos o sol e as outras estrelas.

Não é bem assim, responde outro. Viverá sempre no coração e nas memórias daqueles que o amaram…

Uma luz de esperança

Veste roupas de apresentação impecável e mostra um brilho de esperança nos olhos. O jovem africano aceita dois sacos de comida e deixa ver os dentes brancos, simpático e alegre.

Mostra o bloco com os desenhos que está a preparar. Bonitas figuras de cavalos, pessoas, presépios e tudo o que lhe dita a imaginação.

Está contente porque várias pessoas elogiam a sua arte inspiradora e há entidades que estão a encomendar-lhe trabalho. As páginas onde aparecem cavalos bem delineados destinam-se à preparação de pinturas que vão figurar num hipódromo.

Sorri e comenta que muitas pessoas vão para a faculdade estudar arte. Mas a ele, segundo alguns dos apreciadores dos seus traços, as formas surgem naturalmente sem ter recebido essa formação.

Enquanto revela uma folha onde experimenta misturas de cores, agradece muito os alimentos fornecidos pela Comunidade Vida e Paz.

Ao encontro da carrinha surge um homem na casa dos 30, muito nervoso. É epiléptico. Tinha vindo a Lisboa com a intenção de ficar um ou dois dias, mas surgiram imprevistos.

Há 24 horas que se lhe acabou a medicação e está preocupado. Diz que com cada crise que sofre a cabeça fica mais afectada. É cada vez pior, desde que teve um violento acidente que o deixou com esta doença. O facto de ter sido toxicodependente não ajuda.

A equipa leva-o ao hospital para que possa ser convenientemente medicado e acompanhado.

A meio da noite o profeta da calçada, cego e octogenário, prepara-se para descansar. Dispõe pequenas e finas mantas em cima de uma esponja de pouco mais de um metro de comprimento, e um delgado cobertor por cima. À cabeceira uma almofada gasta pelo tempo.

A segurar tudo no chão de pedra, prendendo a improvisada cama contra um degrau de escada, garrafas de água e de sumo e um saco para fazer peso.

Sobre a Humanidade comenta que todos nós, ao contrário dele, somos escravos. Fazemos o que nos mandam. Obedecemos e não temos opção.

Isso não lhe interessa. Vive em absoluta liberdade, e aos 85 anos sente que não ficará muito mais tempo por cá.

Não é o caso de um conversador quarentão, que nos conta tudo sobre a sua condição diabética. Recorda que sempre teve uma higiene oral irrepreensível.

Apesar disso acabou por perder quase todos os dentes. Por culpa da diabetes, diz. Critica quem não cuida bem da boca, já que as outras pessoas não têm que aguentar o nosso mau hálito quando falamos com elas.

Informa-nos de que falou com a equipa do programa televisivo do apresentador Manuel Luís Goucha sobre os seus problemas de saúde e a impossibilidade de resolvê-los.

Afirma que a estação de TV vai oferecer-lhe um tratamento dentário.

O momento mais inspirador da noite ainda está por acontecer. No centro da cidade, pessoas carenciadas juntam-se à volta da carrinha da Comunidade Vida e Paz.

Chega de mota um rapaz da empresa de entrega de comida Uber Eats. Desmonta do motociclo e entrega uma caixa com uma refeição a um dos homens que recebem os sacos da instituição de solidariedade.

Um minuto depois os voluntários metem-se à conversa com o jovem. A comida tinha sido encomendada para uma morada incorrecta e substituída por outro pedido, para o endereço certo.

Aquela refeição ia perder-se… Foi entregá-la a alguém que precisava dela.

Quer saber tudo sobre o nosso trabalho. Diz que mesmo que sejamos agnósticos ou ateus, somos os verdadeiros cristãos, aquele que seguem os ensinamento de Cristo. Apoiar, amparar, compreender. Dar algo a quem não tem nada.

Ficamos então a saber: Ainda que possamos estar desprovidos de fé religiosa, estamos aqui a fazer o trabalho de Cristo…

As coisas demoram mas a espera compensa

Oferece-me um cobertor dobrado para me sentar ao seu lado na calçada, porque assim fico muito mais confortável. Viajamos no tempo até 1959.

Era delegado de informação médica no Brasil. Deslocava-se de Minas Gerais para o Rio de Janeiro. Conduzia havia muito tempo, debaixo de um calor escaldante, faltava bastante para a próxima cidade e estava cheio de fome.

Viu uma construção isolada, que podia ser eventualmente um restaurante de beira de estrada, embora não tivesse nenhum carro ou camião por perto. Decidiu entrar.

Era mesmo um desses lugares. Com frangos, criados ali à volta pelo proprietário. E cervejas, que tinham mais ou menos o tamanho de uma mini.

O dono explicou-lhe que ia ter que esperar um bocado, mas podia servir-lhe um frango com salada, acompanhado com cerveja. Esperou. A comida agradou-lhe. Fez algo que jamais repetiria.

Comeu dois frangos e bebeu uma dúzia de cervejas. Se fosse hoje, esclarece, nem quereria carne.

A vida de um delegado de informação médica no Brasil dos anos 1950 era peculiar. Eram obrigados a decorar, até à última letra, várias folhas carregadas de informação sobre cada um dos medicamentos, para depois os apresentarem aos médicos.

Mais de meio século depois, ainda se lembra de alguns parágrafos inteiros, que recita de cor para mim.

Em tempos, foi colocado numa cidadezinha do interior, onde os farmacêuticos nunca compravam medicamentos do seu laboratório, por causa de um mal-entendido relacionado com nomes e marcas.

Todos os dias ia fazer conversa com os donos das farmácias, perguntar como estavam, se tudo se encontrava bem. Mas já sabia que nunca queriam nada.

Um dia, os serviços da multinacional onde trabalhava enganaram-se. Em vez de lhe enviarem as pequenas amostras dos remédios para demonstração, mandaram-lhe os originais, nos tamanhos e quantidades normais, como se fossem ser vendidos.

O que ia fazer com aquilo? Pôs-se a pensar. Ofereceu o carregamento de medicamentos aos farmacêuticos da cidade. Esteve para ser despedido.

Mas não seria esse o destino. Depois disso os donos das farmácias, que nunca queriam adquirir nada, mudaram de ideias. Quando entrou na primeira disseram-lhe logo isso.

E informaram-no de que todas as outras da cidade também iriam fazer-lhe encomendas.

Não o despediram, foi promovido e mais tarde tornou-se director.

Seis décadas depois, cego, octogenário e a viver na rua apenas porque quer, comenta que esta história tem uma moral. As coisas às vezes demoram, muito tempo até. Mas o esforço e a persistência (e a sorte) acabam por compensar.