“Os porcos e as vacas são como se fossem meus irmãos”

Na placa lê-se Restaurante Asiático, em grandes letras encarnadas, por cima de uma dezena de fotografias de pratos dessa região do Mundo.

Entalado entre o Mac Donald’s mais conhecido da cidade, o cinquentenário Galeto e a estação de Metro do Saldanha, propõe bufete ou menu à la carte.

Há sushi de manga, abacate, morango (com pedaços do fruto e abundantes gotas da sua calda açucarada na cobertura) ou pepino, crepes e chamuças de vegetais, cogumelos doces, rebentos de soja adocicados, massa com legumes, batatas fritas, algas avinagradas e tudo aquilo que se encontra normalmente num japonês ou num chinês (incluindo diferentes tipos de peixe enrolados nos pequenos cilindros de arroz e diversas variedades de carne).

Tudo o que se quiser, por oito euros e meio. No meio de tanta doçura, não há mesmo conversa que azede.

– Então, mas porque decidiste tornar-te vegan?

Porque não queria comer mais animais. Nem produtos que fossem retirados deles.

– Bem, no sítio onde eu vivo, as vacas e os porcos são felizes. Não são maltratados. Imagina que moravas numa quinta, onde sabias que todos os bichos tinham uma vida excelente até ao fim. Não os comias?

– Não. Não vejo os animais dessa forma. Para mim, os bichos que as pessoas comem não são muito diferentes dos cães e dos gatos. Engoli-los seria como estar a alimentar-me dos meus filhos, ou dos meus irmãos, ou dos meus tios.

– Isso é um bocadinho radical. Como é que sentes isso em relação a um ser vivo que nunca viste nem conheceste?

– É a maneira como os encaro. Não olho para eles como se fossem uma pedra, ou uma coisa inanimada. Não sou capaz de apoiar a morte de alguém que sente, sofre, tem pensamentos e sentimentos.

– Mas olha que há quem diga que as plantas também sentem e sofrem.

– Poderão sentir de uma determinada forma, mas não está de todo provado ou fundamentado que sintam e pensem como acontece com um animal. Em relação a uma boa parte dos bichos, a ciência já demonstrou para lá de qualquer dúvida, e repetidamente, que experimentam prazer, dor e que são totalmente dotados de consciência.

– Hm… Eu gosto de espicaçar as pessoas e ouvir os argumentos delas.

(Risos)

– O que vale é que para ti isto não é novidade. Andas a participar neste tipo de conversas há muito tempo, já nem te faz diferença.

– Pois… Nham, nhom, chomp, crunch. Cogumelos doces… Que maravilha! Só mesmo os chineses para se lembrarem disto!

Até às últimas consequências

O oficial do exército russo abotoou o seu dólman e dirigiu-se para o centro da Praça Vermelha. Era hora de comemorar a revolução e a ditadura do proletariado.

Atravessou a ponte Bolshoy Moskvoretsky e ouviu o som de uma canção que lhe pareceu vinda do outro Mundo.

A neve que caía sobre a estrada, o frio sólido e pesado e a luz matinal branca e alaranjada davam a tudo um ar feérico.

O veículo decrépito transportou-o ao seu destino. Sentia-se enjoado como uma dama em alto mar. O astro subia no horizonte.

O jovem prematuramente calvo completou o seu breve percurso e penetrou com candura na multidão. Não encontrou o fausto que seria de imaginar, os ânimos acirrados, os estandartes no ar.

O povo pareceu-lhe alienado, mas já não pela revolução. Talvez pelas redes sociais, ou pelo desejo de um novo imperialismo.

Os velhos jogavam às damas nos cafés. Nos campos, a turfa continuava a ser colhida.

Os cientistas não deixavam de estudar as partículas microscópicas, colocadas entre duas lamelas de vidro para posterior observação.

Parecia que nada de nefasto ou glorioso se tinha passado.

Mesmo assim, havia apenas cem anos, Lenine tinha desembocado em Moscovo, trazido numa carruagem “selada a chumbo, como se fosse o bacilo da peste”, diria Winston Churchill.

Antes de pôr o pé no chão já estava a discursar. Incendiou as multidões com a sua inteligência e fúria radical, e a revolução foi levada às últimas consequências.

A sociedade anterior foi extinta por completo.

Para a pátria do comunismo, o mundo que nasceu a seguir foi muito pior do que aquele que existia antes.

A utopia levou atrás de si milhões de vítimas.

Nos outros quatro cantos do Planeta, a realidade anterior, uma existência de criados e senhores que nunca deixariam de o ser durante toda a vida, também conheceu o seu fim.

O que se vive um século depois não é um amanhã que canta trazido pelo pai dos povos. É incomparavelmente melhor do que os dias de 1916.

O marxismo-leninismo teve alguma coisa a ver com essa mudança, o capitalismo também.

O comunismo foi derrotado. O sistema capitalista permanece perverso, como já era então.

É altura de encontrar alguma coisa diferente.

É Natal? Onde é que ela está?

Surripiava umas ovelhas e uns Reis Magos de louça de uma loja da Margem Sul quando andava na Secundária e era dessa forma que se exprimia, então, o meu espírito de Natal.

Há muitos anos que me interrogo sobre o que é e para que serve a quadra natalícia. Para levar a cabo um frenesim de consumo, comércio e esbanjamento sem fim.

No seu aniversário e nesta altura do ano, as crianças recebem tantos brinquedos que ficam sem saber quantos têm e desinteressam-se por metade deles.

Para as famílias se encontrarem e celebrarem o amor e a fraternidade. Quando, em muitos casos, passam o tempo a atacar-se e a maltratar-se 24 horas por dia.

Além de que podem reunir-se e confraternizar quando assim desejarem, sem precisarem de uma data para isso. Se quiserem.

Para levar a cabo bonitas e vistosas acções de solidariedade, com ou sem figuras públicas muito carinhosas e preocupadas. Mas esses actos de hipotético altruísmo devem acontecer algumas centenas de vezes anualmente, em vez de estarem reservados para Dezembro.

As Pessoas Sem Abrigo e os doentes de cancro continuam a ser Pessoas Sem Abrigo e doentes de cancro em Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro e Novembro.

Ainda por cima, a celebração natalícia assenta, como todas as outras festividades organizadas por humanos, no massacre, na tortura e no abuso de animais, maltratados e sacrificados para prazer de pessoas ditas civilizadas.

Tenho uma enorme resistência em desejar Feliz Natal e Boas Festas a quem quer que seja, porque não acredito na existência de um Feliz Natal nem de umas Boas Festas.

Desejo a todas as pessoas, conhecidas ou não, prósperas ou desabonadas, um feliz Dezembro. E o mesmo em relação aos outros meses.

Com muita consciência das coisas que podemos fazer por aqueles que nada têm ou que estão totalmente desprotegidos, sejam eles humanos ou outros animais.

Por isso, sempre que alguém diz que é Natal, fico a pensar: “É Na Tal? É Na Tal?! Então, onde é que ela está?!”.

A “Gááta!!” ganhou a taça

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Na alvorada do fim-de-semana, a minha “Gááta!!” começou a consumir quantidades maiores de patê felino – especialmente aqueles a que não está habituada, saudando com entusiasmo a chegada de novos sabores.

Descobri entretanto as latas Schesir, aparentemente o alimento que mobiliza todos os patudos que andam distantes da comida. Apresentei-lhe uma de atum…

Dois dias antes estava completamente desinteressada por dar ao dente, mas nessa tarde teve uma reacção espantosa. Nem me deixava meter o pitéu no prato, completamente ensandecida.

Acabou por absorver uma embalagem inteira. Depois disso tem atacado as renais, diabéticas e digestivas dos seus companheiros cá de casa, mas já lhe comprei meia dúzia de Schesirs. De atum, gambas e galinha.

Sem precisarmos de gastar montanhas de euros como a Presidente da Raríssimas, hoje à noite vai ser um festim por estes lados.

Os antibióticos e os comprimidos para o apetite têm causado o seu efeito. A pequena pantera negra recuperou a sua personalidade com todo o fervor.

Mete-se entre o édredão e os lençóis e tortura-me até de madrugada, impedindo-me de dormir. Retiro-a sucessivamente desse buraco negro e faço-lhe festinhas para a acalmar.

Pegou nuns auscultadores tapa-orelhas para o frio, que adoptara como brinquedo favorito, e entreteve-se a destruí-los. Aproveitei quando ela estava no quarto e deitei-os para o lixo às escondidas.

Chegou ao pé do bebedouro grande da cozinha, que tem metade do tamanho de um prato, meteu as patas lá dentro e decidiu que aquilo era uma banheira, criando assim um lago à sua volta.

De vez em quando começa a miar e a olhar para a indefesa Matilde e atira-se a ela, que foge a cem à hora quando a vê com tal disposição.

Anda particularmente frenética com os fechos do meu casaco. Ao tentar protegê-los, levei uma dentada que me deixou com o dedo inchado.

Mas o momento em que senti que ela ganhou mesmo a taça – de comida – foi quando fez desaparecer em minutos os tais 85 gramas de Schesir. O campeonato aqui da rua já está decidido.

A minha gata tomou ácidos?

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É verdade que no primeiro dia de tratamento a “Gááta!!” chegou a casa e aspirou instantaneamente meia lata de patê digestivo…

Mas nessa noite e na manhã seguinte a sua infecção-febre-gastrite não a deixou comer mais nada. Voltámos à clínica, repetiu o anti-inflamatório, o antibiótico e o anti-vomitivo.

E tomou um comprimido para o apetite, com um hilariante efeito secundário. Depois disso, sugou apenas um quarto de lata e umas dentadinhas de ração…

Mas ficou histérica, hiper-comunicativa, não se cala desde que veio do veterinário. Fala, conversa, dialoga e volta a dissertar. Comer é que é mentira.

Imagine-se a minha “Gáata!!”, sempre hiperactiva e demasiado enérgica, com o seu ânimo duplicado. Como se tivesse tomado cafeína. Ou cocaína. Ou ácidos.

A certa altura transformou-se numa minúscula cobra felina e atacou a inocente e frágil Matilde, vítima de todos os outros gatos cá em casa. E entretanto, não se silencia um minuto.

Amanhã e provavelmente Domingo volta à clínica. Entretanto, apesar da insuficiência renal, e ao contrário do seu humano vegetariano restrito, está autorizada a degustar fiambre, frango, peixe, comida para gatos diabéticos, com problemas de estômago, de rins…

O que quer que seja que ela aceite engolir, quase. Tem é que alimentar-se, ou a médica terá que forçá-la.

Um gato não pode estar muitas horas sem o fazer, ou os seus órgãos começam a deixar de funcionar.

No meio de tudo isto, ainda estamos a tentar imaginar se devorou algum objecto indetectável que esteja a afectar-lhe o aparelho digestivo.

Com a “Gááta!!” tudo é possível. Felizmente está nas mãos da Doutora dos Gatos, e é isso que me deixa dormir durante alguns minutos à noite.

 

A “Gááta!!” fez greve de fome

Ofereci-lhe o seu patê renal matinal depois dos comprimidos e só quis metade. Na ração nem tocou. Os meus gatos agora comem em alturas específicas, duas vezes por dia, porque a sua alimentação é separada. A Amélia (isto é, a “Gááta!!”), o Jeremias e a Matilde têm insuficiência renal e o Chiquinho diabetes. Nesse dia, a primeira destes quatro estava sem apetite.

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Observei-a ao longo do dia. Não estava ela. Não perseguia plásticos, metais, comprimidos, canetas ou fechos de casacos. Faltava-lhe o brilho de saudável loucura no olhar.

Parecia que tanto se lhe dava que fosse azul ou amarelo. À noite não quis comer outra vez. Liguei para a minha doutora e combinámos encontro no dia seguinte às oito da manhã.

Claro que não dormi… Levei-a para a cama e ficou em cima de mim um bom bocado, quieta, a ronronar baixinho. Normalmente fugiria, e só voltava se fosse ela a tomar essa decisão.

No dia seguinte lá estávamos com a nossa especialista em gatos, simpática e bem disposta como sempre. Fez umas quantas perguntas. Se tinha vomitado (sim), se engoliu, lambeu ou mastigou alguma coisa imprópria (difícil de dizer, por mais observador que se seja).

A conclusão foi que tinha um bocadinho de febre, gastrite e uma pequena infecção. Levou 150 mililitros de soro e a primeira – e penúltima – sessão de injecções de anti-vomitivo, antibiótico e anti-inflamatório.

Por um prazo de dois ou três dias ganhou direito a comer patê gastro-intestinal, em vez do habitual renal.

Meia hora depois dos tratamentos já era outra. Entrou dentro de casa de cauda no ar, em forma de ponto de interrogação, a querer questionar tudo, como se tivesse regressado naquele momento do mundo dos sonhos.

Pus-lhe o tal alimento digestivo à frente e devorou meia lata em segundos, embora não se interessasse pela ração sólida.

Regressaram os gritinhos carinhosos, os sons de espanto e encantamento, os saltos pela casa e a curiosidade permanente sobre tudo o que acontece. A minha “Gááta!!” voltou!

Se morresse esta noite iria feliz

Saudoso dum amor que partiu, o rapaz cruza as páginas do jornal, sentado na esplanada do café. Anota cuidadosamente qualquer coisa num pequeno caderno de bolso.

O dedo está ligeiramente azulado, após tanto tempo às voltas com a caneta. A cabeça está ainda virada para o monte Ararat, a montanha mais alta da Turquia.

Deixou a sua terra natal porque a vida era muito difícil. O destino levou-o a um kebab turco, a alguns metros de um mercado chique e a cinco minutos da zona nocturna mais animada da cidade.

Quando uma rapariga bonita entra no estabelecimento, ele e os colegas da mesma nacionalidade riem-se muito e metem conversa, uma palavra no seu português ainda por amadurecer, outra num inglês que desafia ouvidos menos abrangentes.

Junto à esplanada onde o jovem bebeu uma Coca-Cola, há uma feira de Natal.

Aparece um suposto índio americano semi-nu, com um ar pouco convincente, que vai gritando e convida, por detrás dos óculos escuros, os turistas a tirar fotos com ele.

Os rapazes loiros e altos aceitam o desafio, e alguns também se despem parcialmente para o efeito…

No meio de barraquinhas de comida e bebida, encontra-se uma casa com um grande Pai Natal de plástico e um homem de carne e osso, num traje tradicional de inspiração irlandesa, à porta.

Lá dentro, Pais Natais pequeninos, médios, maiores, de todos os tamanhos. Presépios e decorações natalícias para qualquer gosto possível, acompanhados por uma banda sonora de festa de aldeia com letras alusivas a Jesus.

Fora da loja, ouve-se Jazz. Há uma construção de madeira com Ginja de Óbidos em copos de chocolate preto ou branco e vinho quente em recipientes de plástico de dez centilitros.

Uma ruiva que não deixa ninguém indiferente e uma africana de formas perfeitas saboreiam o néctar aquecido, por três euros. Dizem que está forte e tem muitas especiarias, a começar pela canela.

Deitam fora os pedaços de cravinho para não sentir o seu gosto demasiado intenso.

A poucos quarteirões de distância, um homem cego de 85 anos, com as estrelas como abóbada permanente e o vento por único companheiro, conversa com alguém que vai visitá-lo ao seu lar na calçada.

Espanhol, acompanha com interesse as notícias da Catalunha. Para ele, não faz sentido a separação. Era o mesmo que os pedaços que constituem os Estados Unidos quererem tornar-se independentes. Não funcionava.

Ali sentado nas escadas do edifício diariamente, ouve e analisa o que acontece à sua volta. Deu por uma manifestação de sindicalistas que exigiam salários mais altos.

Não concorda com a reivindicação e acha que vai dar maus resultados. Na sua opinião, a economia tem que crescer mais antes de isso acontecer.

Já viu muita coisa na vida e aconteceu-lhe de tudo. Podia estar acolhido numa instituição, bem abrigado e alimentado, mas não quer.

O homem que nasceu no mesmo dia e ano que Adolfo Suárez, antigo primeiro-ministro de Espanha, não tem nada mas sente-se completo e satisfeito. Se morresse esta noite, diz, iria perfeitamente feliz e tranquilo.

Está na altura de amar

Sempre foi uma saga amar, e muitas vezes trouxe maus resultados a quem o faz, mas não menos frequentemente proporcionou felicidade duradoura e digna de nota.

Amar é esquecermo-nos momentaneamente de nós mesmos, dedicando as nossas forças e tudo o que temos no mundo ao outro. Será um erro, possivelmente.

É graças a esse equívoco que existem o mundo e a civilização. O nosso fado é amar alguém, ou algo, ou um conjunto de vidas por quem damos a nossa e de quem depende o nosso bem estar espiritual.

Fomos feitos para estar acompanhados por outros seres vivos, com eles partilhar as pequenas e grandes alegrias da existência, os maiores e menores dramas inerentes a ser. Ou então não somos nada.

Vi alguém sacrificar os anos em que devia descansar e gozar os prazeres que tinha ao alcance, enquanto ainda sentia ânimo para tal, preferindo abdicar desses momentos doces e beatíficos para entegar toda a sua energia a alguém que dos outros dependia para tudo. É isso o amor.

Vejo gentes que põem de parte por algumas horas ou dias a família, a cara-metade, os amigos, tudo o que lhes é mais querido. Para irem, durante esse período, levar um pouco de esperança e carinho a quem nada tem no Universo. Isso é amor.

Vi quem, ao longo da sua existência, desistisse de uma carreira, de alguma prosperidade material, de tranquilidade, para poder sempre ficar ao lado dos filhos, acompanhar o seu crescimento, estar lá para eles a todas as horas. É amor, evidentemente.

O ser humano foi feito para amar e acarinhar, mas esta é uma época da História em que isso não parece tão evidente.

Chegámos a um ponto do nosso percurso em que deixámos para trás a solidariedade, a tolerância, a compreensão, a ciência, a informação e os factos.

Mergulhamos numa idade escura de ódio, ignorância, egoísmo. Olhamos apenas para nós, para os nossos interesses específicos, para o que queremos, para aquilo em que acreditamos, por mais que seja evidente que a nossa verdade nada tem de verdadeiro.

Apenas conta o que pensamos. O outro, o que está lá fora, não existe para nós. É uma época negra e fria que devemos combater com todas as forças. Não apenas com o amor e a tolerância, mas também com a fimeza da verdade e da ciência.

O último voo da águia

O nosso primeiro concerto. Ali, no palco do pavilhão da Quimigal, estavam os cinco artistas que reverenciávamos todos os dias, nos discos e nas cassetes.

Anos 1980. Tudo doido e completamente acelerado, T-shirts, calças de ganga, blusões de ganga ou de cabedal.

À nossa frente um punk grandalhão vestido de couro negro e cheio de picos de metal por todo o lado, como um ouriço. Saltava, pulava, esperneava e distribuía encostos à esquerda e à direita. Estava a limitar-nos o espaço.

O Pedro deu-lhe uma canelada de tal ordem que até lhe ficou a doer o pé. O tipo não se acusou. Mas o nosso cantinho ficou maior, porque os encontrões deixaram de vir na nossa direcção.

Anos mais tarde, em preparação de uma viagem de finalistas, fomos ao escritório dos nossos ídolos, que conhecíamos das gravações veneradas e da actuação ao vivo, os Xutos & Pontapés.

Pedimos-lhes para darem uma sessão de autógrafos na nossa escola. Vieram o Kalu, o Botas (o Roadie) e o Zé Pedro. Foi um sucesso estrondoso.

Antes disso ainda tivemos direito a ir beber um copo num barzito do Barreiro, com aqueles músicos que marcariam três gerações. E que estavam connosco, ali, com a mesma afabilidade e gentileza que mostrariam com alguém que conhecessem havia 20 anos.

Estavam em casa, e nós também. Quando a tal viagem de finalistas a Paris aconteceu, encontraram esses estudantes na Cidade Luz e reagiram com simplicidade desarmante: “Olha os gajos!”.

É a marca de carácter do Zé Pedro, do Kalu (que me deu uma magnífica entrevista décadas depois), do Tim, do João Cabeleira e do Gui.

Era o que transparecia com contundente evidência quando ouvíamos os programas e as entrevistas do Zé Pedro nas rádios nacionais.

Ele dava-nos aulas em directo sobre os Led Zeppelin, os Rolling Stones, os Brian Jonestown Massacre ou os White Stripes, como se ainda estivesse comigo e com o Pedro, no tal café, a beber um copo no Barreiro na alvorada dos anos 1980.

Obrigado, Zé Pedro. Obrigado, Xutos.